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Casa Euclides da Cunha reabre com encéfalo do autor preservado no formol

Casa Euclides da Cunha, em Cantagalo (RJ) - Ricardo Borges/UOL
Casa Euclides da Cunha, em Cantagalo (RJ) Imagem: Ricardo Borges/UOL

Do TAB, no Rio

01/07/2023 04h00

Em 2019, o professor de português Rick da Cunha, 32, testemunhou um evento raríssimo. Uma equipe da Funarj (Fundação de Artes do Estado do Rio de Janeiro) foi a Cantagalo, cidade de 20 mil habitantes no interior do Rio, verificar o estado do cérebro do escritor Euclides da Cunha, preservado há 114 anos numa redoma de vidro com formol.

A relíquia fica guardada em uma caixa de madeira, num túmulo a 40 centímetros do chão da sala principal da Casa Euclides da Cunha, único museu da cidade. A casa em si, sem verba e fechada desde 2013, estava caindo aos pedaços. O medo era de que o cérebro de um dos autores mais importantes do país estivesse na mesma situação.

Ao abrir a tampa de mármore branco do túmulo, a equipe notou que a caixa de madeira estava corroída. "Bateu um desespero geral de não existir mais o encéfalo", lembra Rick. Com todo o cuidado, os especialistas limparam os pedaços de madeira e retiraram a redoma de vidro intacta.

Rick viu o que basicamente se espera de qualquer cérebro humano nessa situação: uma massa rosada retorcida e um pouco inchada por causa do formol. Mas ele não teve muito tempo para analisar a peça. "Só pensei 'ufa, o encéfalo está vivo'", diz ele.

O professor de português é integrante do Movimento Euclidiano Cantagalense, grupo que estuda a obra de Euclides da Cunha como forma de manter viva a memória e o culto do escritor natural de Cantagalo. "E quando se fala em culto, é culto mesmo", ressalta ele.

Local onde está o cérebro de Euclides da Cunha, em Cantagalo (RJ) - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Local onde foi conservado em formol o cérebro de Euclides da Cunha
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Orgulho cantagalense

A presença do encéfalo do autor de "Os Sertões" é a cereja do bolo numa cidade pródiga em referências euclidianas. A começar pelo distrito onde antes ficava a fazenda onde ele nasceu, que foi rebatizado de "Euclidelândia" na década de 1940.

A casa onde o autor morou até os 3 anos foi demolida para a construção de uma fábrica de cimento, mas lá existe um memorial com um busto de Euclides da Cunha, diante de uma praça que, claro, também se chama Euclides da Cunha, assim como a estação ferroviária. O escritor ainda ganhou um segundo busto no centro da cidade, onde há uma farmácia cujo nome é Drogaria Euclidiana. Algumas lanchonetes têm até pizza sabor "Os Sertões", em referência ao livro homônimo do autor, com frango caipira e ovo.

As coisas são assim na interiorana Cantagalo: jogos estudantis são Olimpíadas Euclidianas, um jornal criado por jovens da cidade chama-se O Euclidão e o maternal da escola Euclides da Cunha é apelidado de Euclidinho.

Mas a cidade nem sempre foi sinônimo de Euclides. O servidor público aposentado Celso Frauches, 86, lembra que, no passado, muitos cantagalenses torciam o nariz para seu conterrâneo mais ilustre. Diziam que Euclides havia saído da cidade ainda criança, não conviveu com a população local e nunca visitou a cidade — e portanto não merece as homenagens. Para Frauches, não passa de ingratidão. "O importante é ele ter nascido aqui", argumenta.

Celso Frauches, 86, foi responsável por pesquisar e escrever o projeto que deu origem à Casa Euclides da Cunha na década de 1960 - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Celso Frauches, responsável por pesquisar e escrever o projeto que deu origem à Casa Euclides da Cunha na década de 1960
Imagem: Ricardo Borges/UOL

O aposentado leu "Os Sertões" ainda na escola, quando o calhamaço era leitura obrigatória na cidade. "Foi horrível porque eu tinha só 16 anos, e não é uma obra fácil", diz ele, sorrindo. "Mas continua sendo fundamental. 'Os Sertões' é para o Brasil o que 'Os Lusíadas' representa para Portugal. É a Bíblia de uma nacionalidade."

Partiu dele a ideia de construir a Casa Euclides da Cunha em homenagem ao autor. Ainda jovem, Celso Frauches convenceu o pai, na época prefeito da cidade, a apresentar o projeto ao governo estadual em 1964. Ele mesmo se encarregou de ir a São José do Rio Pardo (SP), onde Euclides morou por alguns anos, para reunir detalhes sobre a história do escritor. Com a ajuda de sua antiga professora, uma ilustre pesquisadora euclidiana em Cantagalo, Frauches escreveu o esboço do projeto.

A Casa Euclides da Cunha foi inaugurada em 1966 como monumento à memória de Euclides e deu vida ao movimento euclidiano na cidade. Era lá que os estudiosos se reuniam para discutir a obra do escritor. Durante 47 anos, a Casa reuniu um acervo respeitável: a primeira edição de "Os Sertões", livros e equipamentos que pertenceram a Euclides, uma biblioteca com 3.000 títulos, cartas inéditas doadas pelos descendentes do escritor, recortes de jornais etc. Também funcionou como um polo cultural (o único da cidadezinha que não tem cinema, nem teatro, nem auditório para eventos). Com foco nas crianças e adolescentes, também eram realizados diversos saraus, oficinas, mesas-redondas e exibição de filmes.

Acervo da Casa Euclides da Cunha, em Cantagalo (RJ), cidade natal do escritor de 'Os Sertões' - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Obras do acervo da Casa Euclides da Cunha
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Revolta na cidade

O espaço foi fechado em 2013, depois que a antiga diretora se aposentou e o governo estadual não substituiu a funcionária. Iniciou-se então um imbróglio burocrático entre estado e prefeitura. O estado ofereceu a gestão ao município, que não quis aceitar por causa dos custos. No meio da confusão, os moradores saíram perdendo. "Foi um atraso para a cultura de Cantagalo", diz Celso Frauches.

O advogado Matheus Camara, 28, passou os últimos 10 anos realizando um périplo pelos labirintos da burocracia, em busca de uma solução. Frequentador assíduo da Casa quando criança, fundou em 2012 a Juventude Euclidiana, um coletivo que busca desmistificar a imagem de Euclides entre os mais jovens e contribuir para a renovação dos estudos euclidianos em Cantagalo.

Além da perda do único aparelho cultural do município, o fechamento também acabou esfriando o movimento euclidiano como um todo porque os integrantes ficaram sem espaço para realizar as reuniões. "Essa era minha revolta", afirma Matheus, que se elegeu vereador da cidade pelo PP em 2020.

Depois de uma década de luta, cartas abertas, abaixo-assinados e manifestações organizadas pela Juventude Euclidiana, a Funarj designou um novo diretor para o espaço e marcou a data da reinauguração. A essa altura, porém, o abandono do prédio era visível. Quando as portas foram reabertas, o cheiro de mofo era tão forte que provocou crises alérgicas na escola vizinha.

Procurada, a Funarj disse que o espaço foi fechado por uma década "para que pudesse passar por obras de reformas" e aprovação do espaço junto ao Corpo de Bombeiros.

A Casa voltou a funcionar totalmente repaginada em 16 de junho, o "dia mais importante do euclidianismo cantagalense nos últimos 11 anos", segundo uma nota publicada pelo movimento euclidiano da cidade. Parte do acervo de livros está sendo higienizada e restaurada para voltar à exposição. Felizmente, a joia da coroa permaneceu intacta no formol.

O cortejo do encéfalo

O cérebro de Euclides da Cunha tem uma história própria. Em 1909, quando o escritor foi assassinado pelo amante de sua mulher, o órgão migrou para a mão de cientistas que buscavam na relíquia de 1,5 kg alguma marca de genialidade. Em 1918, a peça foi transferida para o acervo do Museu Histórico Nacional, no Rio.

Na década de 1980, a família de Euclides decidiu dividir o espólio macabro do escritor: os ossos foram enviados a São José do Rio Pardo (SP) e o cérebro saiu da capital do Rio para Cantagalo, acompanhado por pesquisadores e intelectuais.

Reprodução de quando o cérebro de Euclides da Cunha chegou a Cantagalo (RJ) - Ricardo Gomes/UOL - Ricardo Gomes/UOL
Reprodução de quando o cérebro de Euclides da Cunha chegou a Cantagalo (RJ)
Imagem: Ricardo Gomes/UOL

A cidade recepcionou o órgão em clima de festa. As ruas por onde ele passou foram enfeitadas pelos moradores, que abriram as janelas das casas e decoraram os parapeitos com flores para assistir ao cortejo do encéfalo. Escolas organizaram desfiles cívicos e as imagens foram transmitidas pela emissora de televisão local. "Foi um grande evento para receber o novo morador", lembra a bióloga Fabiana Corrêa, que participou dos festejos.

O encéfalo foi primeiro levado à prefeitura, onde ficou alguns dias exposto para visitação, e depois foi solenemente enterrado no túmulo da Casa Euclides da Cunha. Hoje é um pilar da cidade de Cantagalo.

O órgão não fica exposto ao público por decisão da Funarj — uma decepção para as curiosas crianças que visitam o local pela primeira vez. "Uma geração inteira perdeu o contato com Euclides nesses últimos 10 anos e queremos trazê-la de volta", diz o novo diretor da Casa, Vinicius Stael. "Não precisa obrigar ninguém a vir, as crianças veem a porta aberta, entram e já começam a fazer perguntas."

planeja fazer da Casa novamente um polo cultural com exibição de peças, filmes e colocando a sala de exposição temporária à disposição de artistas locais. "O encéfalo é só a isca", brinca ele. - Ricardo Borges/UOL - Ricardo Borges/UOL
Vinícius Stael, natural de Euclidelândia e atual diretor da Casa Euclides da Cunha, em Cantagalo (RJ)
Imagem: Ricardo Borges/UOL

Agora o diretor planeja fazer da Casa novamente um polo cultural com exibição de peças, filmes e colocando a sala de exposição temporária à disposição de artistas locais. "O encéfalo é só a isca", brinca ele.

A Funarj não autorizou a abertura do túmulo do encéfalo durante a visita do TAB à Casa Euclides da Cunha. Mas é justamente o mistério envolvendo a presença do órgão que confere uma aura solene ao espaço.

Em setembro de 2009, por exemplo, o escritor paraibano Ariano Suassuna visitou a Casa durante os eventos de 100 anos da morte de Euclides. Na sala de exposição, ele se ajoelhou ao lado do túmulo, encostou no mármore branco da tampa e conversou com o cérebro de Euclides aos sussurros. Não se sabe exatamente o que ele disse — ou se o encéfalo, por meio de alguma operação mágica, lhe respondeu. Ninguém teve coragem de se aproximar.