'Somos normais': Exército joga jornalistas na lama em treino de combate
"Abaixa a cabeça! Vocês querem morrer?", gritavam os algozes para um grupo de jornalistas sequestrados na avenida Brasil, no Rio. Ao som de ameaças e tiros, eles foram encapuzados, algemados e levados a um cativeiro numa noite fria na primeira semana de julho. Na traseira do caminhão que os transportava, os supostos traficantes ligaram uma caixa de som com funk 150 bpm e disseram que levariam os jornalistas ao "baile" para encontrar o "chefão". "Que vontade de cheirar pó! Hoje eu quero usar maconha batizada", disse um deles, aos berros.
Alguns jornalistas não conseguiram segurar a risada. Apesar do clima propositalmente ameaçador, logo ficou claro que não se tratava de um sequestro real: era uma encenação armada por cerca de 50 militares do Exército. O teatro durou cerca de duas horas, com algumas cenas que mais pareciam esquetes. "O que você pensa que está fazendo aqui? Sua jornalista comunista!", disse um dos "traficantes" da simulação. "É fascista!", emendou outro, tentando recalibrar os ponteiros do espectro ideológico.
O roteiro previa colocar à prova os ensinamentos que os profissionais da imprensa receberam durante uma semana de treinamento no Estágio de Preparação de Jornalistas e Assessores de Imprensa para atuar em Áreas de Conflito, que reuniu 23 profissionais indicados por comandos militares do Exército.
O estágio, organizado pelo CCOPAB (Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil) — fundado em 2005, quando o Brasil liderou uma missão de paz no Haiti, e rebatizado desta maneira em 2010 —, tem o objetivo de formar militares e civis para atuar nessas missões. Integrantes do centro são identificados pelos gorros e capacetes azuis. O CCOPAB é a "mão amiga" do "braço forte" e exporta o que os militares gostam de chamar de "brazilian way of peacekeeping" (o jeito brasileiro de manter a paz, em inglês).
Desde 2007, profissionais da comunicação que queiram se aventurar por zonas hostis recebem treinamento por cinco dias, confinados na Vila Militar, na zona oeste do Rio. Na edição deste ano, para a qual a reportagem do TAB foi convidada, as instruções prévias orientavam os jornalistas a levar roupas leves e resistentes. Camisetas, shorts e chinelos eram proibidos.
'Somos normais'
O primeiro desafio foi encarar nove palestras consecutivas, logo no primeiro dia. Antes da inauguração oficial do estágio, um dos jornalistas participantes pediu licença para rezar um Pai-Nosso com o grupo. Terminada a oração, falaram assessores das três Forças, capitães, coronéis e generais.
"Hoje o Exército é um alvo", disse o general Alcides Valeriano de Faria Junior, atual chefe da Comunicação Social da instituição. Em um slide, ele apresentou uma montagem com o símbolo do Exército sendo alvejado por quatro frentes: a imprensa, a esquerda, o público interno (os próprios militares) e a extrema direita. "Os dois primeiros eu já conheço, sei qual é o discurso e sei como lidar. Os dois últimos são novidade", concluiu.
Segundo ele, o desafio é controlar o público interno, "esse povo que achava que deveria ter sido feita alguma coisa em dezembro". O 8 de janeiro (assim como o contexto golpista que envolveu militares do alto escalão nos últimos quatro anos) foi presença constante nas palestras, mas nunca nomeada diretamente. Durante as falas, os atos foram chamados de "incidente", "questão" ou "furacão".
O general destrinchou as rusgas no relacionamento com a imprensa — cujos representantes presentes lutavam contra o sono. "Militares e imprensa parecem seres de espécies diferentes", iniciou ele. "Nós valorizamos a hierarquia e a disciplina e os jornalistas são questionadores por natureza." Segundo ele, no entanto, é possível desenvolver mais compaixão conhecendo os perrengues sofridos pelos dois lados — o Exército é supostamente o lado que apanha.
"Estamos sem liberdade de ação com a imprensa. Hoje ficamos no canto do ringue, nos defendendo dos golpes", disse ele, levantando os pulsos cerrados no canto da sala.
'A semana vai ser osso'
Uma imagem projetada sob o título "Como se sente o militar quando vê o jornalista" mostrava um cachorro gigante (o jornalista) intimidando um filhotinho indefeso (o militar). E dizia: "Lá vem esse cara me massacrar". Segundo o coronel que tomou a palavra, trata-se de um estereótipo que precisa ser combatido, assim como o do "militar troglodita". "Nós somos pessoas normais", garantiu o coronel.
O estágio oferecido pelo CCOPAB foi a oportunidade perfeita de estreitar laços com os jornalistas. Mas nem todos entraram no espírito de confraternização. Naquele primeiro dia, ainda no café da manhã, um primeiro-tenente à paisana sentou-se numa mesa afastada do refeitório e varreu os olhos pelas quatro mesas apinhadas de repórteres animados e falantes. "Isso tudo é jornalista?", perguntou ele a um colega fardado, que assentiu com a cabeça. O tenente, então, vaticinou: "A semana vai ser osso."
'Tiro na melancia!'
As palestras do primeiro dia só terminaram às 20h. Depois das falas institucionais, os jornalistas tiveram aula teórica sobre negociação com sequestradores e como sobreviver a uma situação de cativeiro e tortura (a lição, segundo os militares, é cooperar e não mentir). Outra aula versava sobre ataques terroristas: aprendeu-se, por exemplo, que a distância segura para se proteger de uma explosão de sacola de mercado é 355 metros. No caso de um carro-bomba, 887 metros.
Homens e mulheres foram separados em alojamentos num anexo do CCOPAB, próximo à igreja evangélica da Vila Militar. Como banho gelado não fazia parte do pacote, os jornalistas se revezavam na figura de "fiscal do disjuntor", que ficava a postos do lado de fora do banheiro para religar a chave de energia do chuveiro elétrico, quando ela desarmava.
No segundo dia, depois da aula de primeiros socorros, a imprensa aprendeu a distinguir o calibre das armas pelo barulho dos tiros. O Exército ofereceu uma demonstração ao vivo com quatro atiradores militares. "Tiro na melanciaaaa!", gritou o tenente que comandava a aula, pouco antes de a fruta se espatifar com um tiro de fuzil 7,62 mm, que deixava para trás o som de uma bala traçante.
Dias depois, o general Richard Fernandez Nunes, integrante do Alto Comando do Exército, ironizou a escolha da fruta. "Fiquei triste em saber que escolheram a melancia porque me chamam assim", gracejou ele, na palestra de encerramento. Verde por fora e vermelha por dentro, "melancia" é uma referência a militares que, no fundo, seriam comunistas ou esquerdistas.
A mesma dinâmica foi reproduzida com quatro armamentos diferentes, em tijolos, placa de sabão e vidros blindados. Os jornalistas também foram apresentados a uma divisão especialíssima do Exército: a dos precursores paraquedistas, a primeira equipe a entrar no território inimigo em situações de conflito.
A divisão participou das operações de intervenção no Rio de Janeiro, em 2018, mas nunca colocou em prática as táticas paraquedistas. "Tu já viu o Brasil em guerra?", respondeu o representante da equipe, quando questionado sobre a atuação do grupo. A resposta oficial — e mais suave — veio logo depois, através da assessora de imprensa do Exército: segundo ela, as táticas nunca foram usadas, mas precisam ser treinadas para quando houver necessidade de aplicá-las.
Colônia de férias
Para diversão dos militares que acompanhavam a atividade, os estagiários rastejaram desajeitadamente pela grama, treinaram a "progressão" militar para áreas de risco e pegaram carona no blindado Guarani. Era o "dia D" do treinamento dos jornalistas, que saíram do CCOPAB em um ônibus, equipados com capacetes, coletes à prova de balas e repelente.
A imprensa aprendeu a se orientar na mata com bússolas e mapas, a identificar e percorrer campos minados e a obter água e fogo. "Se você tiver uma arma de caça, dá para fazer uma brasa perfeita. É raro ter uma à disposição, mas acontece", explicou o capitão que ministrava a aula.
Os jornalistas, sentados no chão, comeram a "ração" operacional do Exército (estrogonofe e vaca atolada embalados a vácuo) como almoço e jantar. A essa altura, o clima já era de colônia de férias. O passeio na Vila Militar rendeu fotos, vídeos e brincadeiras com os militares que passaram os cinco dias convivendo com a trupe. Alguns jornalistas entraram tanto no espírito de integração que saíam gritando "Selva!" por toda a parte — o que arrancava risos de alguns recrutas.
Já no fim do curso, o capitão que acompanhava o grupo finalmente explicou a origem da expressão "Selva!". Conta a lenda que, durante as expedições pela Amazônia, os militares que passavam interpelavam uns aos outros perguntando para onde iam. "Selva" era a resposta natural. Mas esse é um grito próprio da região amazônica, cada local tem o seu personalizado. No Sul, por exemplo, grita-se "Aço!"; em São Paulo, "Aéro!", e por aí vai.
Empolgado, o capitão explicou os meandros dos códigos militares. "É tipo uma lavagem cerebral", resumiu ele, rindo.
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