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A misteriosa trajetória dos crânios de Lampião e Maria Bonita até a USP

Lampião e Maria Bonita, o casal de cangaceiros mais célebre da história, residem há um ano na avenida Doutor Arnaldo, 455, no bairro de Cerqueira César, zona oeste de São Paulo.

Estão reclusos. Mas a ideia é que, ano que vem, saiam em viagem pelo Brasil, numa "exposição itinerante", como afirma Gleuse Ferreira, 42, bisneta de Virgulino Ferreira da Silva e Maria Gomes de Oliveira (nomes de batismo de Lampião e Maria Bonita). Não o casal, exatamente, mas seus crânios.

Foi o que restou deles —fisicamente— após o assassinato pela polícia na grota de Angico, em Sergipe, no dia 28 de julho de 1938.

No endereço da Doutor Arnaldo fica a FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Os crânios estão lá por causa de um convênio entre a faculdade e o Instituto Banese (Banco do Estado de Sergipe) para análises de DNA, tomografia, reconstituição das ossadas e reconstrução em 3D.

'Cláusula de sigilo'

Existe um clima de mistério em torno dos estudos. Na Faculdade de Medicina, os cientistas envolvidos não estão autorizados a comentar a investigação —a assessoria de imprensa orienta jornalistas a procurar a superintendência do Instituto Banese para tratar da pesquisa, mas o arquiteto Ézio Deda, chefe do órgão, também não dá entrevistas.

Fachada da Faculdade de Medicina da USP, onde estão os crânios de Lampião e Maria Bonita
Fachada da Faculdade de Medicina da USP, onde estão os crânios de Lampião e Maria Bonita Imagem: Divulgação

"Há uma cláusula de sigilo", informa Gleuse Ferreira. Ela é CEO da recém-constituída empresa Lampião e Maria Bonita e representa a família em assuntos relacionados à memória do casal.

Apesar do mistério, a presença dos crânios na FMUSP põe fim a um enigma: agora se sabe onde estão as cabeças dos dois —por cerca de 20 anos, o paradeiro não era público.

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Entre 2002 e 2022, quase ninguém sabia onde eles estavam enterrados, se é que estavam enterrados.

Gleuse, a bisneta, diz saber onde as cabeças ficaram guardadas, mas afirma que a informação é sigilosa.

Ela explica que o segredo foi necessário, dentre outras razões inescrutáveis, por segurança. Um dos temores era de que alguém tentasse causar dano aos restos mortais. "Tem doido para tudo", diz.

Excursão fúnebre

A história das cabeças cortadas de Lampião e Maria Bonita é um dos muitos capítulos tenebrosos e espetaculares do cangaço —um fenômeno do banditismo rural brasileiro que, 85 anos depois do fim do bando que aterrorizava o sertão nordestino, continua a despertar interesse mundo afora.

Em 2024, duas produções de plataformas de streaming vão se debruçar sobre o tema: uma novela na Globoplay e uma série na Star+. Há ainda um filme em preparação pelo diretor Jayme Monjardim.

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Quando Lampião e Maria Bonita foram assassinados, em 1938, tiveram as cabeças cortadas —junto com a de outros nove cangaceiros também mortos na chacina.

Os corpos foram abandonados no local e as cabeças, colocadas em uma canoa, que atravessou o rio São Francisco até às margens da cidade de Piranhas, em Alagoas. Lá, cabeças e despojos dos mortos, como acessórios e armas, foram expostos e fotografados na escadaria do prédio da prefeitura.

Lampião e Maria Bonita com o bando de cangaceiros
Lampião e Maria Bonita com o bando de cangaceiros Imagem: Benjamin Abrahão

Depois, fizeram uma breve excursão fúnebre por outras cidades do sertão, acondicionadas em latas com água e sal, água e cal ou álcool. Multidões se acotovelavam para ver, de perto, as cabeças dos cangaceiros —principalmente as do casal—, que policiais tiravam das latas puxando-as pelos cabelos.

Cabeças comidas por ratos

Em 31 de julho, três dias após a chacina de Angico, as peças chegaram a Maceió para análise do médico legista Lages Filho, diretor do Serviço Médico Legal da capital alagoana.

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Na época, os estudos frenológicos estavam em alta entre médicos e antropólogos. Esses estudos associavam caráter e personalidade à forma da cabeça —na esteira da obra "O Homem Delinquente", do psiquiatra italiano Cesare Lombroso, de 1876.

Lages Filho percebeu que os dentes de Lampião eram pequenos, o que, para ele, reforçava a tese de que a microdontia era uma característica física dos bandidos, como defendia Lombroso.

Ficou impressionado com os traços fisionômicos de Maria Bonita, que "não pareciam desmentir o apelido que lhe deram", como escreveu em laudo.

Na sequência, os restos mortais foram entregues ao dentista Arnaldo Rodrigues Silveira, professor de odontologia da Faculdade de Medicina da Bahia, que passou três dias para recompor o "bolo de ossos" no qual, àquela altura, transformara-se a cabeça de Lampião —decorrência do transporte em condições precárias e, principalmente, do tiro que recebera na chacina e das coronhadas infringidas contra ele, depois de morto.

Com as peças escondidas em duas latas de manteiga, Silveira entrou em um avião da Pan Air e voou até Salvador.

Lá, manteve no seu consultório as relíquias até que, aborrecido com a curiosidade dos pacientes —-que marcavam consulta não para tratar dos dentes, mas para ver o casal—, deixou-as no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, onde permaneceram à disposição dos curiosos até 1969.

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Maria Bonita
Maria Bonita Imagem: Benjamin Abrahão

As cabeças também eram utilizadas para estudos científicos conduzidos pelo médico Estácio de Lima, diretor do instituto e entusiasta das teorias de Lombroso.

No que dependesse da vontade de Lima, as cabeças permaneceriam ali para sempre.

Entretanto, uma campanha promovida pelos jornais Diários Associados levou ao sepultamento dos remanescentes do casal e de outros cangaceiros —alegava-se que, no IML, sem o devido cuidado no armazenamento, as cabeças estavam sendo comidas por ratos.

Duas cabeças no porta-malas do Palio

Assim, a morada eterna dos crânios passou a ser o cemitério Quinta dos Lázaros, em Salvador —uma eternidade que se encerrou em 1º de fevereiro de 2002, quando, a pedido da família, procedeu-se à exumação dos ossos do Rei e da Rainha do Cangaço.

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O médico Lamartine de Andrade Lima, que realizou a exumação, havia sido um dos curiosos que, nos anos 1960, fez questão de ver as cabeças do casal. Estava curioso para reencontrá-las passados quase 40 anos.

Primeiro ele exumou Lampião. A urna dele continha "inúmeros fragmentos", "ossos de cor castanha clara", além de "unidades dentárias avulsas", como informou no laudo.

Depois se dedicou a Maria Bonita —uma caveira bem formada, com ossos preservados, bem como "globos oculares íntegros".

"Quando veio uma brisa mais forte, os globos se pulverizaram, na minha frente", relembrou Lima, em entrevista ao TAB —ele tem 80 anos e mora em Gravatá (PE).

As urnas com as cabeças foram entregues a duas netas do casal, Vera e Gleuse Ferreira Nunes (que tem o mesmo nome da filha, a CEO da empresa).

Foram colocadas no porta-malas de um Fiat Palio e de lá seguiram para destino incerto até reaparecerem, em 2022, na avenida Doutor Arnaldo, em São Paulo.

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'Estou com as cabeças de vovô e vovó'

Em 2002, o médico Leandro Cardoso, de Teresina, estava na casa do amigo Amaury Corrêa de Araújo, em São Paulo, tratando de um livro que os dois escreveriam juntos sobre as cabeças de Lampião e Maria Bonita.

Araújo, que morreu em 2021, é autor de inúmeras obras sobre o tema.

Cardoso conta a história, em entrevista ao TAB, que em dado momento da visita Amaury ligou para Vera e passou o telefone para o médico. Ela mora em Aracaju (SE).

"Estou com as cabeças do vovô e da vovó", ela teria dito, de acordo com Camargo. E prosseguiu, segundo ele: "Tem interesse em ver?"

"É a mesma coisa de perguntar para o cara que estuda Egito se ele quer ver a múmia do Tutancâmon", disse, ao relembrar o episódio, citando o faraó do século 14 a.C. "Só não vou hoje porque não dá tempo de comprar as passagens. Mas amanhã estou aí", ele teria respondido.

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"Quando chegamos lá, as cabeças estavam nos esperando, em cima de um pano branco, numa área aberta da casa dela. Maria Bonita de um lado, os pedaços da cabeça de Lampião do outro", narrou.

Leandro Cardoso observou as peças, "mas não tinha muito o que examinar", segundo diz. "A cabeça de Lampião praticamente não existe mais".

Ocultação de cadáver

Do ponto de vista legal, não há nada de errado em guardar ossadas de familiares, afirma o advogado criminalista Enzo Fachini, integrante da comissão de direito penal da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo.

"Uma interpretação restritiva do Direito Penal não permite afirmar que guardar os ossos seria uma conduta punível tal qual a subtração ou ocultação de cadáver", explica.

Segundo Fachini, isso ocorre porque não há como afirmar que a ossada do crânio é um cadáver.

Além disso, a exumação dos restos mortais, no caso de Lampião e Maria Bonita, foi autorizada pelo Estado --fato confirmado pelo médico Lamartine Lima, que assinou o laudo de exumação.

Gleuse Ferreira, bisneta de Lampião e Maria Bonita
Gleuse Ferreira, bisneta de Lampião e Maria Bonita Imagem: Pryscilla K./UOL
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De acordo com Gleuse Ferreira, a bisneta do casal, há "conversas adiantadas" para a construção de um museu sobre o cangaço, em Sergipe.

Uma vez concluídas as obras —das quais ela deve participar, como arquiteta—, os crânios reconstituídos devem ir para lá, para exposição pública, depois de excursionarem pelo país, possibilidade que está sendo estudada com "cuidado", segundo a CEO.

'Selvagens'

Segundo a curadora Ana Pato, diretora do Memorial da Resistência de São Paulo, expor corpos e restos mortais segue na contramão da tendência de retirar essas peças dos museus. "Há uma discussão pós-colonial de repatriação de corpos em museus de etnografia", afirma.

Hoje, não consigo entender o sentido de uma exposição dessa natureza Ana Pato, curadora

Exemplo disso foi a decisão da direção do museu Pitt Rivers, em Oxford, no Reino Unido, de remover, em 2020, 120 restos mortais da entidade ---quase todos, crânios e cabeças humanas, que consistiam na principal atração do espaço.

Na ocasião, a direção do museu afirmou que as cabeças reforçavam estereótipos sobre povos tidos como "selvagens" --concepção que, aliás, muitos têm sobre cangaceiros.

O relatório com os resultados dos exames sobre as cabeças de Lampião e Maria Bonita deve sair em breve. "Do ponto de vista científico, acho que não vai ter nenhuma novidade", afirma o médico Leandro Cardoso, o que diz ter visto as cabeças na casa de Vera Ferreira.

Lamartine Lima, que esteve com as cabeças no IML nos anos 1960 e no cemitério em 2002, pensa diferente. "A ciência não tem limite", afirma. "Ainda há alguma pergunta a ser respondida? Pode ter."

Eis mais um mistério a ser solucionado --ou não-- nos próximos capítulos da história do cangaço.

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