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Foi ao Poupatempo e acabou preso; isso é mais comum do que você imagina

Milton Marques Jr., 30, não imaginava que uma carteira de identidade lhe custaria tão caro: a própria liberdade. O morador do Jardim Marilu, zona leste de São Paulo, foi preso há menos de um mês no Poupatempo quando tentava emitir uma segunda via do de RG.

Funcionários do atendimento identificaram um mandado de prisão em nome dele. Milton devia pensão alimentícia das filhas em um processo que imaginava já ter sido encerrado. O caso aconteceu em uma unidade da Cidade Tiradentes, também na zona leste.

O sistema acusou o problema e dois carros da Polícia Militar foram chamados ao local imediatamente. De lá, ele foi direto para a delegacia e encaminhado ao CDP (Centro de Detenção Provisória) de Guarulhos, onde está desde então.

Prodesp, centro de processamento de dados do estado de SP, responsável pelo Poupatempo
Prodesp, centro de processamento de dados do estado de SP, responsável pelo Poupatempo Imagem: Gabriel Cabral/Folhapress

Sistema interligado

Episódios como o de Milton Marques Jr. parecem inusitados, mas não são raros no Poupatempo. O sistema do serviço é configurado com o banco de dados do Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt, da Polícia Civil.

Com nome, impressão digital ou até o número do CPF, é possível identificar pendências judiciais. As prisões ocorrem principalmente nos setores de emissão de documentos, que tem grande fluxo de atendimento com média diária de 1.400 pessoas.

Dívidas de pensão alimentícia —como foi o caso de Milton— e pessoas que cometeram furtos e roubos são os principais motivos de ocorrência nas unidades. O delegado diz realizar quatro prisões em Poupatempo por semana.

"O funcionário percebe a notificação relacionada e aciona a polícia. É feito sem que a pessoa perceba, para não haver fuga. Vamos imediatamente ao local", conta ao TAB um delegado que trabalha no centro São Paulo, em condição de anonimato.

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Há também casos mais graves. No dia 25 de setembro, no Poupatempo de Matão (SP), a 300 quilômetros da capital, a Polícia Militar prendeu um homem de 40 anos que tinha um mandado de prisão em aberto pelo crime de homicídio.

Ele fez exame de corpo delito, foi encaminhado à delegacia local e, em seguida, à cadeia de Santa Ernestina, cidade vizinha. "Não quero falar sobre isso", disse o delegado Marlos Marcuzzo, responsável pela prisão.

"Vocês colocarem muito isso na imprensa, o povo não vai mais no Poupatempo. Isso dificulta nosso trabalho", reclamou.

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Imagem: Luis Blanco/Governo de São Paulo

Pegos de surpresa

O Poupatempo foi criado em 1997 na gestão do governador Mário Covas para concentrar serviços gratuitos essenciais ao cidadão. Hoje, o sistema conta com mais de 200, incluindo licenciamento de veículos e expedição de atestado de antecedentes criminais.

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Cerca de 1,3 milhão de pessoas passam por dia nas mais de 230 unidades físicas de atendimento espalhadas pelo estado paulista. Outras 2,4 milhões são atendidas digitalmente.

1.223 prisões prisões foram feitas somente no primeiro semestre deste ano, segundo a Secretaria de Segurança Pública. Quarenta pessoas são presas em média por semana —cerca de seis por dia.

Em 2018, foram 2.603 registros, e em 2019, 2.538. O número caiu bruscamente para 69 e 256 casos em 2020 e em 2021, durante a crise da covid-19. No ano passado, foram 2.300 ocorrências.

"Hoje está tranquilo, mas tem dia que pelo menos uma pessoa é presa. Às vezes ela não deu baixa em alguma pendência na Justiça e não sabe", conta uma recepcionista do Poupatempo da Sé, em São Paulo, unidade por onde passam mais de 2.000 pessoa por dia.

A maioria das prisões no Poupatempo acontece no setor de emissão de documentos
A maioria das prisões no Poupatempo acontece no setor de emissão de documentos Imagem: Luis Blanco/Governo de São Paulo

Milton ainda espera definição da Justiça

Milton é autônomo e cuida sozinho de duas filhas, de 6 e 7 anos. Desempregado, abriu um lava-jato no bairro e recebia mensalmente o Bolsa Família, que o ajuda a manter a casa onde vive com a mãe, dois irmãos e um primo.

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"A mãe dele lavou o RG e o rasurou. Sem o documento, não conseguia atualizar o cadastro do Bolsa Família. Por isso precisava de outro", conta ao TAB a namorada de Milton, a administradora Thaís Santos, 35, que o acompanhava no momento da prisão.

A família explica que, durante a pandemia, as duas filhas dele ficaram alguns meses com a mãe.

"Mas o Conselho Tutelar começou a ligar para o Milton, questionando o porquê de as meninas não estarem indo à escola. Ele então trouxe as meninas de volta para cuidar delas", conta Thais. "Mas antes disso, a mãe das meninas já tinha colocado ele na Justiça para receber a pensão."

O processo foi finalizado em audiência virtual, na qual Milton explicou ao juizado que já estava com a guarda das crianças novamente.

Mas, segundo a namorada, ele não deu baixa no caso. Agora, para provar que o autônomo é inocente, os familiares precisaram correr atrás de provas que confirmem a guarda das filhas.

Eles se queixam do atendimento da associação de advogados conveniada à Defensoria Pública de São Paulo, que atendeu Milton no processo da pensão alimentícia e agora na prisão dele.

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"Eu fui à Defensoria, que me encaminhou para a [associação] Menina dos Olhos de Ouro. Ninguém sabia de nada. Tentaram entrar no processo da pensão com todas as senhas que tinham lá, não conseguiam", conta Thais.

"Advogados amigos me orientaram a pedir um habeas corpus, mas o pedido feito pela advogada que está nos atendendo não deu certo. Ela disse que é melhor a gente aguardar 30 dias para ver se ele é solto. Eles nem respondem ao que eu pergunto."

Outro lado

O TAB tentou contato com a associação Menina dos Olhos de Ouro por telefone, mas não foi atendido. A SSP não quis comentar as prisões, além dos dados fornecidos à reportagem.

Em nota oficial, a assessoria de imprensa da Defensoria Pública explicou que "o processo tramita sob segredo de justiça, de modo que não podemos divulgar informações sobre o seu andamento".

Sobre as queixas dos familiares sobre o atendimento da associação conveniada, disse que "eventuais apontamentos podem ser realizados para a Ouvidoria da DPE".

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"Sem prejuízo, diante das informações apresentadas, a Defensoria iniciará apuração do ocorrido."

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