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R$ 30 na conta: mãe se endivida para pagar funeral do filho morto pela Rota

Na tarde de 10 de fevereiro de 2023, Sandra de Jesus, 40, se despediu do filho e foi cochilar para se recuperar de uma gripe. Era uma sexta como qualquer outra. Horas depois, foi surpreendida por dezenas de notificações vindas do celular.

Assim que olhou a tela, viu o vídeo do próprio filho, Luiz Fernando Alves de Jesus, sendo morto por policiais militares da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) na avenida Cecília Lottenberg, na Chácara Santo Antônio, zona sul da capital paulista. Três agentes foram indiciados por homicídio, omissão e fraude processual pela morte (leia abaixo).

As imagens foram gravadas de dentro de um carro e registraram Luiz Fernando de perfil, sendo baleado nas costas, depois de ter tentado assaltar um casal numa moto. De casa, Sandra viu o filho cair no chão. Caído, com o braço no ar, em súplica, Luiz recebeu o último tiro.

Sandra reconheceu o filho pelo jeito de andar. Saiu de casa correndo. Encontrou Luiz sem vida. Ele tinha 20 anos.

Depois de acompanhar a perícia, pediu para levar para casa as roupas ensanguentadas do filho caçula, sua carteira com R$ 60, um isqueiro e um maço de cigarros. No bolso do casaco havia uma réplica de arma de fogo (simulacro), levada pela perícia.

Com os últimos vestígios do filho nas mãos, Sandra enfrentou a etapa que poucos estão preparados para lidar: o custo da morte para dar ao filho um enterro digno.

'O Estado entregou o corpo do meu filho'

"Oito meses e seis dias." O cálculo de quando Sandra assistiu ao vídeo da morte do filho está na ponta da língua. Ela recebeu a reportagem em um centro de Direitos Humanos no Campo Limpo, também na zona sul.

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Sandra é cuidadora, mas está afastada do trabalho desde a morte de Luiz Fernando. "Como vou cuidar de um idoso se não consigo cuidar de mim?", pergunta, com a face abatida. Para a reportagem, vestiu uma camiseta estampada com a foto do filho sorridente, data de nascimento e da morte.

"Mataram meu filho, o Estado me entregou o corpo e não me deu opção do que poderia fazer."

A situação financeira de Sandra já era complicada antes. "Eu tinha R$ 30 na conta quando o Luiz Fernando morreu", relembra. "R$ 20 eu usei para colocar crédito no celular para avisar todo mundo. O resto era o que eu tinha para enterrá-lo."

No IML, viu que teria que desembolsar mais de R$ 3.000 para garantir que ele fosse velado, além de um enterro com um jazigo simples para poder ser visitado.

Sem esse dinheiro, o filho seria sepultado na modalidade gratuita, onde não é possível velar o corpo. "Era um caixão fechado, sem flores, sem vela, sem nada, só 15 minutos, do lado de fora do cemitério", conta. "Eu só poderia ver meu filho pela janelinha da tampa."

Com o apoio de conhecidos, ativistas e moradores da zona sul, arrecadou cerca de R$ 1.200 para quitar parte do pacote funerário. Já o restante, a irmã de Sandra arrumou um cartão de crédito para pagar à vista.

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"Não tinha noção que só a preparação do corpo era mais de R$ 1.000", relembra. O caixão, um dos modelos mais simples, custou R$ 1.700.

O velório de Luiz Fernando reuniu mais de 400 pessoas no cemitério São Luís, também na zona sul. Ele está enterrado num jazigo simples, mas cuidado com esmero por ela. A grama está bem cortada, flores adornam o contorno da cova e as pedrinhas brancas delimitam o espaço. Uma placa com a foto sorridente de Luiz Fernando está em destaque.

"Agora eu tenho um jardim", conta Sandra, olhando para a foto do jazigo pela tela do celular.

Sandra de Jesus, 40, mostra o jazigo que pagou para o filho no Cemitério São Luís, em São Paulo
Sandra de Jesus, 40, mostra o jazigo que pagou para o filho no Cemitério São Luís, em São Paulo Imagem: André Porto/UOL

'Não tive direito ao luto'

Sandra, precisando quitar a dívida com a irmã, decidiu arranjar um emprego temporário. Ainda com medo de sair de casa, enfrentando noites mal dormidas, conseguiu trabalho num mercado, em uma ação de Páscoa para vender ovos de chocolate.

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Passou duas semanas trabalhando sem parar. Às vezes, parava para chorar no banheiro. Voltava ao posto sorrindo para atender mães acompanhadas dos filhos. Conseguiu evitar a dívida no banco, mas interrompeu o próprio luto.

Passou o Dia das Mães sozinha, no cemitério São Luís. Quando não pode ir, os amigos do filho vão em seu lugar para ajeitar as flores.

Faz semanas que Sandra não entra no cemitério, apesar de o local não ser distante de sua casa. Segundo ela, cada vez que entra ali, uma parte sua fica para trás.

Luiz Fernando Alves de Jesus foi morto aos 20 anos em uma ação da Rota
Luiz Fernando Alves de Jesus foi morto aos 20 anos em uma ação da Rota Imagem: Arquivo pessoal

Caso aguarda Ministério Público

Em 11 de outubro, a Polícia Civil indiciou os três policiais militares por homicídio, omissão e fraude processual pela morte de Luiz Fernando. Para a delegada responsável pelo relatório, depois de analisar as câmeras das fardas dos agentes, não houve legítima defesa.

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Na época da morte do jovem, a Ouvidoria pediu o afastamento dos três PMs acusados. A medida foi criticada pelo Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, nas redes sociais.

"Nenhum policial que sai de casa para defender a sociedade será injustiçado. Confrontos sempre serão apurados, mas ninguém será afastado no caso da abordagem da Rota que evitou um assalto no semáforo. Até que se prove o contrário, a ação ocorreu dentro da lei", postou o secretário no X (antigo Twitter).

Sandra reconhece que Luiz não estava fazendo a coisa certa quando foi encurralado pela Rota, mas lembra que não há pena de morte prevista na Constituição. "Ele deveria ter sido preso, não morto. Ele foi julgado e condenado ali mesmo, por pessoas fardadas", afirma.

Sandra e a Defensoria Pública aguardam a análise do Ministério Público, que pode pedir mais diligências, aceitar a denúncia ou arquivar o caso.

Somado à dor de perder o filho, Sandra também foi impactada por centenas de publicações que replicaram o vídeo da morte nas redes sociais, seguidas de enquetes que perguntavam se a ação da polícia fora correta. Em muitas postagens, comemorava-se o resultado.

Os vídeos com os últimos minutos em vida de Luiz Fernando continuam no ar. Sandra conhece a cena quadro a quadro. Em um deles, ela mostra no celular, um transeunte se curva sobre o corpo sem vida do filho por curiosidade. Em outro, crianças andam de bicicleta ao redor. "Demoraram para isolar o lugar e o corpo do meu filho ficou ali, exposto."

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Ela não quer pedir para que o vídeo seja derrubado nas redes; diz que prefere que a ação dos policiais continue sendo exibida e sirva de material para futuras reportagens sobre o caso. "No dia que eu receber justiça, aí peço para tirar."

Sandra de Jesus aguarda resposta do MP para o inquérito que indiciou policiais pela morte do filho
Sandra de Jesus aguarda resposta do MP para o inquérito que indiciou policiais pela morte do filho Imagem: André Porto/UOL

Tradição antiga

A falta de informações e auxílio a populações mais pobres lidarem com os custos da morte é um problema antigo, a ponto de ter virado tradição contar com o apoio de amigos, conhecidos e vizinhos para arcar com as despesas.

"Sempre que alguém morre aqui, é muito comum espalhar a notícia e o pedido de vaquinha para o enterro", conta Luana de Oliveira, educadora popular do CHEDP (Centro de Direitos Humanos e Educação Popular) e moradora da zona sul.

"Desde antes da internet. Lembro muito bem, quando era pequena, de o pessoal passar de casa em casa pedindo dinheiro."

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Mesmo com apoio, nem sempre é possível arcar com as custas. "Conheço uma mãe que ficou sem luz e água em casa para pagar pelo traslado do filho morto em uma penitenciária em Guarulhos", conta Sandra.

A burocracia da morte não costuma vir à tona por vergonha. Muitas mães na mesma situação preferem não revelar a penúria financeira. Além disso, não são raras as histórias de túmulos vandalizados, em casos como o de Luiz Fernando. Por isso, Sandra pede à reportagem para que não seja divulgada a localização do jazigo do filho.

A morte ainda não completou um ano e Sandra já pensa no dia em que terá que lidar com mais uma etapa da burocracia da morte: a exumação.

Depois de ficar sabendo do aumento dos valores, ela já se preocupa. "Vou começar a economizar para exumar meu filho."

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