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'Todos deitados no chão': a rotina numa UPA entre dois morros em guerra

No final de setembro, a zona norte do Rio entrou em guerra. Traficantes do CV (Comando Vermelho), que controlam favelas do Complexo do Chapadão, tentaram invadir o Complexo da Pedreira, dominado pelo TCP (Terceiro Comando Puro). Os tiroteios se estenderam por dez dias, sem hora para começar ou acabar.

Uma linha de trem separa geograficamente os territórios conflagrados. Na linha que divide as áreas de influência das duas facções está localizada a UPA (Unidade de Pronto de Atendimento) de Costa Barros, com mais de 1.000m² e capacidade para atender 450 pessoas diariamente.

Uma médica plantonista, que trabalhou na unidade durante o confronto, conversou com o TAB sob condição de anonimato e relatou a rotina da unidade de saúde (leia o depoimento abaixo).

A reportagem optou por omitir detalhes que pudessem identificar a profissional, como dias e horários em que ela presenciou o tiroteio. Ela teme represálias tanto dos traficantes quanto da RioSaúde, empresa pública que administra a UPA.

Espalhadas por diversas áreas conflagradas do Rio, as UPAs foram criadas para facilitar o acesso da população mais vulnerável ao serviço de saúde e desafogar os hospitais. Mas, na UPA de Costa Barros, as marcas da violência são visíveis nas instalações, cravadas de tiros.

Durante a intervenção federal na segurança pública, em 2018, ser transferido para Costa Barros era sinônimo de "punição" para alguns médicos.

A situação do bairro é um símbolo da disputa territorial do crime no Rio. Em 2019, segundo um estudo publicado por pesquisadores da Fundação Getulio Vargas, ao menos 14 bairros na região metropolitana do Rio (dez deles na capital) tinham mais de uma facção ou milícia convivendo lado a lado.

De 2008 a 2019, o TCP, que controla favelas do Complexo da Pedreira, expandiu seu território em mais de 20%. Em geral, essa facção faz aliança com milícias locais para enfrentar o Comando Vermelho, a maior facção do Rio. O CV, por sua vez, perdeu 7% de área de atuação no mesmo período, mas ainda controlava, em 2019, 39% da região metropolitana.

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A seguir, o relato da médica.

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Barulho de tiro a gente escuta quase todo dia, infelizmente aprendemos a conviver com isso. O problema maior é quando tem a guerra entre as facções. É um querendo tomar o comando do outro, e a gente fica no meio.

Num plantão, o tiroteio começou no meio da tarde. Parecia que os tiros eram dentro da UPA de tão altos. Eram rajadas com dezenas de tiros por vez. Trabalho na UPA há alguns anos e nunca tinha ouvido tanto tiro na vida. A gente não conseguia nem saber de onde estava vindo, só ouvia o barulho.

A UPA não protege [médicos e pacientes] de nada, porque a estrutura é feita de um material de contêiner, não é nem alvenaria. Não faz muito tempo que um tiro atravessou a UPA toda, da copa ao estar médico, na altura dos beliches. Há dois ou três meses a unidade passou por uma reforma, colocaram massa de obra e pintaram.

O nosso medo era de um tiro desses pegar em alguém naquele dia [durante o tiroteio de setembro]. Alguns pacientes deixaram a unidade quando os tiros começaram, mas outros ainda ficaram lá esperando atendimento. Todo mundo teve que deitar no chão, porque é onde tem menor chance de ser atingido. Nós evacuamos os consultórios, que ficam mais próximos à recepção, e corremos para os corredores de trás da UPA, onde ficam os leitos de internação.

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Naquele dia, os leitos estavam lotados, eram quatro pessoas internadas na sala vermelha, onde ficam os de maior gravidade, e cinco na outra sala. Até o paciente ali, deitado, tem risco de ser baleado, mas não tem muito o que fazer. Como vamos arrastar a maca para um lugar seguro? Não tem lugar seguro.

Ficamos umas três horas sentados no chão. O tempo todo eu só ficava pensando "O que eu tô fazendo aqui?". Me senti num hospital de guerra.

A gente só voltou ao atendimento quando a situação ficou mais "tranquila", quando era um tiro aqui e outro ali, não rajadas em sequência. Foi quase uma semana nessa situação.

Em um dos dias de confronto, a UPA recebeu um paciente de 67 anos baleado na porta de casa. A família tinha esperado uns 40 minutos para levá-lo à unidade porque não queriam arriscar fazer o trajeto sob tiros. Foi o tempo de agravar o caso, já que ele estava sangrando muito. Mas o filho dele falou: "Eu tive que escolher se morreria só ele ou eu também".

A equipe socorreu o paciente, mas precisávamos transferi-lo com urgência para um hospital. A equipe médica discutiu se era mais seguro mantê-lo na unidade ou encarar os tiros do lado de fora.

Essa escolha não é trivial porque o risco é muito alto. Nossa ambulância já foi baleada no estacionamento da unidade: o tiro acertou o para-brisa. O vidro foi trocado depois, mas até hoje é possível ver a marca do disparo na parte de dentro. Se tivesse alguém sentado ali, era na testa.

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Como o caso do paciente baleado era muito grave, uma das médicas se dispôs a acompanhá-lo na ambulância até o Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier. Depois soubemos que ele veio a óbito.

@corujanews_

Traficantes do Complexo do Chapadão (CV) estão novamente invadindo o Complexo da Pedreira (TCP). 23/09/2023

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Esse é nosso dia a dia. Uma das laterais da UPA, por exemplo, fica na direção do Complexo da Pedreira. Essa parede também já foi marcada por vários tiros. Eles reformam, mas a gente sabe que tem.

À noite geralmente é pior porque é quando os traficantes tentam invadir, mas nesses períodos de guerra ficamos o dia todo sob tiros. Tanto que tem ficado um Caveirão [carro blindado da Polícia Militar] ao lado da UPA. Na última semana de setembro o Caveirão não estava lá — devia estar sendo usado em alguma operação.

Houve dias em que, durante a troca de tiros, a polícia se protegeu no muro da UPA. A gente acaba ficando no meio mesmo, eles não querem nem saber.

A gente sabe que é difícil resolver, mas nossa [dos médicos] principal reclamação é que a UPA não entra em restrição nessa época de guerra. A restrição serve para a gente atender apenas casos graves e urgentes. Como a direção não autoriza essa restrição, a gente tem que continuar o atendimento como se nada estivesse acontecendo.

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Claro que, com a bala comendo, o fluxo diminui um pouco, mas ainda tem gente que vai para ser atendido com dor de cabeça, unha encravada, náusea, coisas que não são urgentes. Isso coloca todo mundo em risco.

Acaba que a gente se sente mais protegido pelos bandidos do que pela própria UPA. Quando algum paciente da região ameaça ou coage a equipe médica, os bandidos vão até a UPA para que eles peçam desculpas aos profissionais. Os traficantes, em geral, não ameaçam os médicos porque somos nós que atendemos eles também. Alguns pedem para não ser transferidos para hospitais maiores porque estão foragidos.

Eles até pedem para que a equipe suba a comunidade dominada para realizar atendimento de criminosos. Normalmente a gente tenta conversar para que o médico não vá, mas já aconteceu.

A unidade nem pode ter circuito de câmera em todas as partes por ordem dos traficantes. Não dá para dizer que o tráfico manda na UPA, mas acaba existindo uma interferência no dia a dia. No ano passado, por exemplo, a direção quis botar um relógio de ponto biométrico para descontar as faltas e atrasos. Traficantes [de facção não identificada] entraram lá, arrancaram o ponto e falaram que não queriam aquilo porque ia controlar demais os médicos. Eles achavam que alguns profissionais poderiam abandonar o trabalho em Costa Barros por causa de eventuais penalizações, o que afetaria o serviço na região.

Eu não sei como isso foi resolvido na direção, mas o ponto foi reinstalado. A gente se acostumou a trabalhar assim.

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UPA de Costa Barros, na zona norte do Rio
UPA de Costa Barros, na zona norte do Rio Imagem: Reprodução/Google Street View

Procurada, a Secretaria de Saúde do Rio disse, em nota, que "zela pela segurança dos profissionais", monitorando situações de conflito e fazendo a mediação entre as unidades e as forças de segurança do Estado. O órgão afirmou que o território da UPA "tem apresentado episódios recorrentes de conflitos", mas que, entre setembro e outubro, "não houve situação específica que demandasse intervenções além das que já são feitas sempre".

A secretaria informou que mantém 16 câmeras "em pontos estratégicos" da UPA para acompanhar o fluxo. E que a unidade não pode entrar em restrição porque precisa "garantir a assistência a todos os que precisarem de cuidados imediatos".

A Polícia Militar informou ao TAB que, entre 21 de setembro e 11 de outubro, o 41° BPM realizou 18 operações no Complexo do Chapadão e iniciou duas ocupações: uma na comunidades Terra Nostra, no Complexo da Pedreira, e outra na comunidade Az de Ouro, em Anchieta (bairro vizinho a Costa Barros), que também foi alvo da última disputa entre facções.

A região estava sob domínio do CV e, segundo moradores, agora foi anexada pelo TCP com apoio de traficantes do Complexo de Israel. Nas redes sociais, moradores compartilharam fotos de etiquetas usadas para venda de drogas no Az de Ouro com a bandeira de Israel abaixo da sigla "TCP". "Paz de Deus Az de Ouro", dizia a legenda.

A nota da PM informa que "em relação à UPA de Costa Barros, o 41° BPM realiza policiamento no local, incluindo o baseamento por 24h de um veículo blindado em frente à unidade".

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