Só para assinantesAssine UOL

Como um jovem em busca de likes se tornou o atirador da escola em Sapopemba

Em um intervalo de seis meses, uma sucessão de eventos violentos na internet, nas ruas e na escola levou um jovem de 16 anos a apontar uma arma carregada contra os colegas - e atirar.

O ataque na Escola Estadual Sapopemba, no extremo leste de São Paulo, foi o 11º incidente do tipo neste ano e resultou na morte de Giovanna Bezerra Silva, 17, em duas estudantes feridas e uma comunidade traumatizada.

Por trás do ataque está a obsessão pela fama, um histórico de humilhações e provocações, grupos de ódio virtuais e a inércia do sistema educacional para lidar com a saúde mental de jovens.

Com base em depoimentos, documentos e posts, o UOL traz relatos de uma tragédia anunciada: meses antes do ataque, a família do atirador pediu ajuda à escola. Semanas antes, alunos avisaram sobre ameaças publicadas pelo jovem. Todos foram ignorados.

Desastre em câmera lenta

O ataque planejado por Sérgio*, 16, tem as principais características de um crime dessa natureza, de acordo com o relatório "Ataques de violência extrema em escolas no Brasil: causas e caminhos", elaborado pela D³e - Dados para um Debate Democrático na Educação.

Sérgio é um jovem do gênero masculino em busca de notoriedade, com ideais violentos e que percebe a escola como lugar de sofrimento. A vítima segue o mesmo padrão: uma garota jovem.

O caso se destaca por uma razão: Sérgio cultivava fama nas redes sociais como uma espécie de influenciador digital, com vídeos e postagens vistos por milhões de pessoas no TikTok e no Instagram.

Ele provocava brigas e agressões para ganhar likes e seguidores, antes de buscar reconhecimento dos grupos de ódio na internet. E encontrou eco.

Continua após a publicidade

Quando tudo mudou

Em 23 de outubro, uma segunda-feira, 20 minutos após o ataque, Silvia**, 35, mãe de Sérgio, estava na frente da escola. Ela conta que ficou sabendo da tragédia por volta das 7h40, quando um aluno correu até sua casa, que ficava a um quarteirão, para lhe contar o que seu filho havia feito.

Horas depois, ela já sabia que não voltaria para casa. Na delegacia, o padrasto de Sérgio, Humberto**, armou a mudança imediata, por medo de represálias. Os dois filhos mais novos de Silvia tiveram que mudar de escola.

Pouco mais de um mês após o ataque, ela tenta manter o anonimato da família enquanto busca entender o que levou Sérgio a matar. "Nenhuma mãe espera que o filho faça isso", afirmou Silvia, de voz hesitante e face abatida, em entrevista exclusiva ao UOL.

Silvia descreve o filho como um garoto tímido e apegado a ela. "A vida do Sérgio sempre teve muitos altos e baixos", relata. "Ele nunca teve amigos."

O bairro da Liberdade foi o palco de agressões e provocações que envolveram Sérgio -- tudo em busca de engajamento e likes
O bairro da Liberdade foi o palco de agressões e provocações que envolveram Sérgio -- tudo em busca de engajamento e likes Imagem: Camila Svenson/UOL
Continua após a publicidade

'Pessoas como eu'

Aos 13 anos, Sérgio contou à mãe que era bissexual. "Eu já desconfiava. Mãe sabe dessas coisas", conta. Pouco depois, ele passou a se declarar gay para pessoas próximas e nas redes sociais.

Silvia afirma que o pai biológico demorou a se acostumar, mas afirma que o filho sempre foi aceito. "Sempre apoiei para ele se sentir acolhido", conta.

Em 2022, aos 15 anos, Sérgio queria ir à Praça da Liberdade, onde jovens se reúnem perto da entrada da estação de metrô aos sábados.

Silvia considerava Sérgio muito novo para frequentar o centro de São Paulo e chegou a proibi-lo, mas, após algumas escapadas, o filho a convenceu: "Lá tem pessoas que nem eu, mãe."

Silvia lembra do filho usando roupas femininas para ir à Liberdade, o que não fazia no Jardim Sapopemba. Ele também deixou o cabelo crescer e tingiu de vermelho uma parte da franja. A inspiração era Belle Belinha, jovem famosa no "rolê".

Continua após a publicidade
Ulisses Pônei, influenciador de 20 anos, começou a frequentar o rolê da Liberdade para conquistar a fama. Em maio de 2023, Ulisses entrou em contato com a mãe de Sérgio para tentar cessar as agressões contra o jovem
Ulisses Pônei, influenciador de 20 anos, começou a frequentar o rolê da Liberdade para conquistar a fama. Em maio de 2023, Ulisses entrou em contato com a mãe de Sérgio para tentar cessar as agressões contra o jovem Imagem: Camila Svenson/UOL

O efeito Belle Belinha

Chamados hoje de "rolês da Liba", os encontros na Praça da Liberdade existem há décadas, especialmente entre grupos alternativos como os punks, góticos, otakus, emos e roqueiros. Nos últimos anos, firmou-se como espaço acolhedor para jovens LGBTQIA+.

Em junho de 2022, o local ficou conhecido no Brasil por causa da jovem Belle Belinha, de 17 anos, coroada por frequentadores e redes sociais como a "Rainha da Liberdade".

O efeito foi avassalador. Vídeos com milhões de visualizações fizeram dela uma influenciadora e levaram muita gente a estrear no rolê - grande parte, menores de idade.

"Isso atraiu para a Liberdade jovens com o sonho de serem famosos. As pessoas de lá não são necessariamente famosas, mas dentro da bolha são deuses", diz o influenciador Ulisses Pônei, 20.

Continua após a publicidade

O próprio Ulisses, hoje distante do rolê, começou a frequentar o local porque viu ali uma possibilidade de se projetar. No meio dessa disputa estava Sérgio.

"Não é que ele tentava ser nosso amigo, ele se aproximava por interesse", explica KP Mesmo, 19, jovem transexual e influenciadora do grupo de Belle Belinha.

Tudo pela fama

O desejo por fama e likes não era exclusividade de Sérgio, mas ele se mostrou capaz de qualquer coisa por isso, a ponto de xingar o grupo de Belle Belinha nas redes sociais. "Ele atacava as mulheres, principalmente", conta Ulisses. "De mim, ele nunca falou nada."

Quem conhecia Sérgio no rolê o avisou das possíveis consequências das provocações, mas ele não parecia se intimidar e fazia piada da situação.

"Durante três meses ele ficou me importunando", conta KP. "Quando o vi, os nervos subiram." A briga entre os dois aconteceu em 15 de abril e deu a Sérgio o seu primeiro viral, com milhões de visualizações.

Continua após a publicidade

O vídeo começa com KP atravessando o rolê em direção a Sérgio. Ela o chama para bater boca e, após um corte abrupto, a imagem mostra a influenciadora batendo nele e o jogando pelos cabelos no meio-fio. Jovens aparecem ao fundo, rindo.

Assim que a briga viralizou, Sérgio ganhou milhares de seguidores no Tik Tok e no Instagram. Era o gostinho da fama, embora disfuncional.

Sérgio provocava e xingava as pessoas, era agredido, ganhava seguidores e likes e voltava a provocar mais gente para manter a popularidade.

A influenciadora KP Mesmo, 19, foi filmada agredindo Sérgio na Liberdade após o jovem publicar xingamentos e provocações contra ela nas redes. KP se arrependeu da briga e pediu desculpas à mãe de Sérgio na época
A influenciadora KP Mesmo, 19, foi filmada agredindo Sérgio na Liberdade após o jovem publicar xingamentos e provocações contra ela nas redes. KP se arrependeu da briga e pediu desculpas à mãe de Sérgio na época Imagem: Camila Svenson/UOL

O ciclo da violência

Do outro lado da cidade, Silvia, que mal usa redes sociais, descobriu por terceiros o vídeo do filho sendo agredido. Ficou horrorizada.
Para esconder o que fazia, Sérgio bloqueava a mãe e o padrasto em todas as plataformas.

Continua após a publicidade

A primeira reação de Silvia foi prestar queixa contra KP, mas o filho a impediu. "Ele me disse que tudo foi armado para ter mais engajamento", lembra.

Só que Sérgio não contava com a escalada de violência. "Ao mesmo tempo que ganhou público com isso, começou a ganhar hate. Deixou de ser caçador para virar caça", conta Ulisses.

Em maio, outro vídeo de Sérgio sendo agredido em frente a uma universidade na Avenida da Liberdade voltou a circular. "Bateram tanto nele que as mãos dos meninos ficaram manchadas da tinta do cabelo azul de Sérgio", relembra Ulisses.

No dia 15 de maio, o influenciador procurou Silvia pelo WhatsApp e contou sobre a situação. Eles traçaram um plano para mudar a imagem do rapaz. KP também se desculpou com Silvia e Sérgio e pediu aos seguidores no Instagram para esquecerem o atrito.

Sérgio reduziu a presença na Liberdade e foi "adotado" por Ulisses no processo, mas a fase durou pouco.

"O Sérgio falava o que a gente queria ouvir", conta Ulisses. "Ele me bloqueou do perfil novo dele justamente para não ver que ele tinha voltado a atiçar briga com a KP e outras pessoas da Liberdade."

Continua após a publicidade
O rolê na Praça da Liberdade era o lugar favorito de Sérgio e de muitos jovens alternativos e LGBTQAI+ que se reúnem todos os sábados no local para beber e ouvir música com amigos
O rolê na Praça da Liberdade era o lugar favorito de Sérgio e de muitos jovens alternativos e LGBTQAI+ que se reúnem todos os sábados no local para beber e ouvir música com amigos Imagem: Camila Svenson/UOL

Vazou para escola

Os vídeos das agressões chegaram aos alunos da Escola Estadual de Sapopemba, a 18 km de distância, onde Sérgio cursava o 1º ano do ensino médio.

Em 24 de abril, 15 dias após a briga de Sérgio com KP, Silvia registrou boletim de ocorrência, mas por outro motivo - o filho havia sido agredido por alunos da Sapopemba e da EMEF Tatiana Belinky. "Mais de 10 alunos bateram no meu filho", conta.

No B.O. registrado na 70ª DP, foi relatado que "a vítima tem muitas visualizações em tudo que lhe acontece. Que as agressões sofridas pela vítima se generalizaram na internet e foi percebido que os agressores ganharam muitos seguidores. Que a vítima teme por sua integridade física e que as ameaças se espalham".

Segundo alunos da Sapopemba, o perfil provocador de Sérgio persistia na escola. Mas, de acordo com Silvia, o filho também já era perseguido por causa da orientação sexual e aparência.

Continua após a publicidade

Em 22 de julho, uma funcionária da escola entrou em contato com Silvia pedindo para buscar Sérgio. O motivo foi uma briga com outras duas alunas, que também foi gravada e circulou nas redes.

Em resposta, Silvia perguntou se os pais das alunas foram chamados. E escreveu: "A escola tem que ser um lugar seguro e não estou vendo isso. Meu filho está sofrendo preconceito por ser homossexual."

Segundo a mãe, ela não recebeu apoio da escola e foi aconselhada pela vice-diretora a transferi-lo. "Foi um tapa na cara", conta Humberto, padrasto do adolescente.

O UOL tentou contato com a escola desde 24 de novembro diversas vezes por telefone, presencialmente e por meio da Secretaria da Educação, mas não obteve resposta.

A suástica e o Discord

Mesmo com as agressões, Sérgio mantinha a fama distribuindo xingamentos, muitos deles racistas e transfóbicos, a influenciadores ligados ao rolê da Liberdade.

Continua após a publicidade

Em julho, após a "intervenção" da mãe, motivada por Ulisses e KP, Sérgio gravou um vídeo com uma suástica nazista desenhada no rosto. Isso levou Ulisses a cortar relações com o jovem.

A mãe e o padrasto questionaram o vídeo. "Quando perguntei sobre a suástica, ele disse que nem sabia direito o que era, que só fez para o engajamento", disse Humberto.

Esse vídeo marcou o novo momento de Sérgio. O rolê da Liberdade foi trocado pelas panelinhas do Discord, repletas de usuários anônimos simpáticos a extremismos, principalmente o neonazismo, e onde há uma cultura de rir da desgraça alheia.

Esse contexto também afetou o estilo de Sérgio. Por volta de setembro, ele cortou e tingiu o cabelo e adotou roupas mais masculinas.

'Quero me sentir poderoso'

A mudança de visual não apagou sua fama. "O pessoal da escola começou a pegar no pé dele ainda mais", conta o padrasto.

Continua após a publicidade

Alunos afirmam que, semanas antes do crime, alertaram para postagens e declarações de Sérgio, nas quais ele dizia que iria cometer um ataque contra os colegas que o perseguiam. Silvia não foi notificada.

Em conversas no Discord, Sérgio descartava o bullying como motivação. "Quero me sentir poderoso", escreveu. "Eu já sofri bullying, mas sinceramente não me importo com vingança nenhuma."

O ataque foi discutido na plataforma e planejado por Sérgio na madrugada de 23 de outubro. Ele disse à polícia ter comprado pela internet, dias antes, a máscara de caveira, item ligado a fãs de massacres em escolas.

Minutos antes do ataque, no banheiro da escola, Sérgio fez uma ligação de vídeo para o Discord e mostrou, além do rosto parcialmente coberto pela máscara, a arma que pegou escondido na casa do pai biológico. A ligação foi desconectada na sequência.

Em seu depoimento sobre o momento dos disparos, Sérgio se contradiz: ele menciona o nome de dois garotos da sala responsáveis pelas agressões homofóbicas, mas acabou matando Giovanna e ferindo outras duas estudantes.

Horas depois, usuários do mesmo servidor comentaram sobre a tragédia em tom jocoso. Um deles vazou as conversas nas quais Sérgio assumia o ato.

Continua após a publicidade

Após o incidente, circulou pelas redes sociais o áudio de uma aluna que estava na sala invadida por Sérgio: "Eu tô achando que era um menino da minha sala que sofria bullying e todo mundo sempre teve preconceito com ele".

Falta de preparo

Mesmo que família e conhecidos tenham tentado impedir Sérgio, não há indícios de que instituições públicas como o CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), a escola ou o Conselho Tutelar intervieram no caso.

"O menino que infelizmente fez o atentado também não tinha sido atendido porque a necessidade não foi identificada", disse Bety Tichauer, diretora de projetos especiais da Secretaria da Educação, ao "Fantástico", da TV Globo.

A Secretaria da Educação se recusou a responder perguntas sobre o caso. Já a Secretaria de Segurança Pública disse, em nota, que o episódio está sendo investigado e, para não dar publicidade ao atirador, não falaria sobre o ataque.

Escola Estadual Sapopemba, no Jardim Sapopemba, na zona leste de São Paulo, horas depois do ataque
Escola Estadual Sapopemba, no Jardim Sapopemba, na zona leste de São Paulo, horas depois do ataque Imagem: Danilo Verpa/Folhapress
Continua após a publicidade

O enfrentamento a situações de violência, como o bullying, é um ponto muito debatido entre pesquisadores de ataques em escolas, justamente pela dificuldade de profissionais de educação de lidarem com o tema.

"Se você detecta um aluno que tem problemas de violência e transtornos mentais, não tem a quem indicar. Em CAPS e postos de saúde, se um gestor não se empenha para que haja um acolhimento, o aluno não vai ser atendido. E muitas vezes não é", explica Cléo Garcia, advogada e pesquisadora do GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral) da Unicamp.

"Geralmente quando a escola descobre um caso de bullying, em vez de tratar de uma forma pedagógica para que os alunos sejam conscientizados e não apenas punir, ela acaba optando por transferir o autor do bullying. E não resolve", completa.

'Ele não aguentava mais'

Sérgio está internado na Fundação Casa. Na visita de 27 de novembro, mais de um mês após o ataque, a mãe conta que Sérgio desabafou pela primeira vez.

"Ele disse que não aguentava mais", relata Silvia. "Todo mundo zoava ele na escola."

Continua após a publicidade

A fama sonhada por Sérgio durou poucos meses. Nem mesmo no espaço que lhe daria algum reconhecimento ele é respeitado. Na subcomunidade de admiradores de massacres, o jovem é renegado por ser considerado "muito feminino" para entrar nesse "hall da fama".

*Nome fictício para preservar a identidade do menor de idade
**Nome trocado a pedido dos entrevistados

Deixe seu comentário

Só para assinantes