Em cidade 'invadida' por javalis, improviso e pouca eficácia marcam caçadas
Um caçador sobe uma colina e posiciona o binóculo. "Olha lá, uma família de javali!", aponta Tonho da Silva. Em sua caminhonete, estão uma arma calibre 12 e o pitbull Tupa. O sol do meio-dia é intenso, mas ele diz ter sido recompensado pelas horas passadas atrás dos javalis.
É assim a vida dos caçadores em Campo Alegre de Goiás, a cerca de três horas de Goiânia. A cidade é símbolo da caça ao javali, suíno selvagem, sem predadores naturais, que destrói plantações e, desde 2013, é a única espécie que pode ser legalmente caçada no país.
No Brasil, um híbrido do animal cruzado com porcos nativos, o javaporco, pode ultrapassar os 200 kg.
A "praga", que serviu de pretexto para se ocultar fraudes na compra de armas por pessoas que nunca caçaram um javali na vida, como revelou reportagem do UOL, mobiliza boa parte dos cidadãos campoalegrenses.
Típica cidade do interior com igreja na praça central, sorveterias e hotéis de beira de estrada, Campo Alegre foi classificada em 2017 pelo governo federal como vulnerável ao animal nos quesitos sanitário, populacional e agrícola.
"Tem fazendeiro que chegou a perder 40% da produção", conta Tonho, que, como vários de seus concidadãos, pegou em armas para combater o invasor.
O Brasil na caça ao porco
Ensinam os caçadores goianos que, para abater um javali, não é preciso só armas de grosso calibre. Paciência é fundamental também. O animal é ágil. Sua única marca são as pequenas pegadas e plantações quebradas que deixa para trás durante a madrugada, quando sai para se alimentar. De dia, se esconde em matas próximas às plantações.
"Parece que ele faz de propósito", admira-se Tonho. "Uma boa parte do que derruba, ele nem come. Parece que deixa para o ano que vem, para quando colher ele ter comida. Ele é bem inteligente".
Atualmente, 7% dos 7.000 habitantes de Campo Alegre de Goiás — quase 500 pessoas — têm licença para caçar, segundo o Ibama. Desde 2019, háo registro de 1.368 javalis abatidos no local, número proporcionalmente alto para uma cidade com esse porte.
A cidade desenvolveu uma cultura de caça. Até o vice-prefeito e um vereador são caçadores. O Dia Municipal dos CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores) é celebrado anualmente por lá. Há quem invista em drones e armas térmicas para rastrear o bicho.
Tonho e os amigos, Arnaldo Monteiro "Capitão", policial militar aposentado, e Diniz, cantor amador sertanejo, perseguem seus rastros com a ajuda dos fox americanos Canoa, Cigana e Rainha, além do pitbull Tupa. Desde 2019, o Ibama permite o uso de cães na caça.
Ponto de passagem
A produção agrícola goiana reúne alguns dos itens favoritos do cardápio dos javalis. Um estudo feito a partir do material presente no estômago da espécie demonstrou a preferência deles por milho (41%), cana-de-açúcar (28,5%) e vegetais como soja, trigo e cevada (27%), além de 4% de invertebrados.
Os locais, no entanto, dizem que eles comem o que estiver à disposição.
Goiás, que produz 9% dos grãos do país, também virou um ponto de passagem dos animais por estar no centro do mapa. "A cidade foi afetada por esse movimento migratório da espécie", avalia a veterinária Denise Caroline Tolêdo, servidora da Agência Goiana de Defesa Agropecuária.
Ainda assim, Tonho e seus amigos lamentam a dificuldade de encontrar os alvos.
"Aqui tinha muito mais porco. Pessoal caçou tudo", diz Arnaldo Capitão, que, em 2023, sofreu um "acidente de trabalho". Durante uma caçada, tomou um tiro acidental de calibre 12 no braço. O ferimento até hoje lhe causa dores.
"O caboclo confundiu ele com um porco", caçoa Tonho, que o ajuda a calçar as botinas de estampas camufladas. No fogo, eles cozinham um prato de javali com pequi. Embora a venda e a criação desses animais seja proibida hoje, os caçadores podem se alimentar do resultado das caçadas.
Atividade noturna
Na avenida principal de Campo Alegre mora o açougueiro Magno Lico. De dia, ele usa um avental ensanguentado. À noite, pilota sua caminhonete em busca de javalis selvagens. "Eu só dou o tiro. Quem mata é Deus."
Magno orgulha-se de um crânio de javali com um buraco de bala em um dos olhos que ostenta em casa como um troféu. Exibindo as presas afiadas, ele compara a peça a um fóssil de dinossauro. "Olha, eu acredito que seja um bicho pré-histórico", arrisca.
Nem tanto. Domesticados há 8 mil anos entre o Leste Europeu e a Ásia, os javalis voltaram à vida selvagem por onde passaram, como na Europa e África. Seus primeiros registros na América do Sul datam de cem anos atrás, na Argentina, no Uruguai e no Chile, antes de virarem um problema brasileiro no fim da década de 1990.
O número de animais à solta no Brasil é incerto. O Ibama contabiliza apenas os registros de abates e avistamentos enviados pela população. Já a Associação Brasileira de Caçadores, interessada na manutenção da caça, estima que o número chegue a 3 milhões.
De noite, a caminhonete de Magno cruza lentamente uma plantação de milho quando vultos surgem na escuridão. O veículo acelera para alcançá-los. Ouve-se o estampido de uma arma. O alvo, porém, não foi atingido desta vez.
Pelo menos por enquanto, a família de javalis com duas fêmeas e seis filhotes continuará perambulando pelas lavouras de Campo Alegre. "Deu tudo errado hoje", admite ele à reportagem. "Mas um dia é da caça, e outro, do caçador."
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