Dengue explode no Sul e já alcança 95% das cidades brasileiras
A cidade turística Caçapava do Sul (RS) nunca havia registrado um único caso de dengue em sua história. Em 2023, porém, nove moradores contraíram a doença, sendo sete desses casos autóctones — quando a contaminação acontece na própria localidade.
Foi um marco do avanço do Aedes aegypti pelo país, o que se explica tanto pela facilidade de adaptação do mosquito como pelas mudanças climáticas.
Essa nova expansão da doença pelo território nacional elevou o registro de casos e mosquitos em áreas antes virgens.
O número de casos prováveis de dengue atingiu 95% do conjunto de 5.568 municípios brasileiros, em um momento em que a epidemia continua no auge, ante os 88% registrados no ano passado.
Dez anos atrás, o índice era de 73%. Em 2004, 36% das cidades do país sabiam o que era dengue. Os números são do Ministério da Saúde.
Mais de 2,6 milhões de casos prováveis de dengue foram identificados no país até o início de abril, segundo o Painel de Monitoramento das Arboviroses do Ministério da Saúde.
Dengue no verão e no inverno
Foi no verão mais quente e mais chuvoso de sua história, com o recorde de 42,9°C em Uruguaiana em 14 de janeiro último, que o Rio Grande do Sul registrou também um crescimento recorde nos casos de dengue.
Até o fim de março, o total já era 20% superior ao número de casos registrados em todo o ano de 2023 no estado, segundo estudo da FGV (Fundação Getulio Vargas) a partir de dados do Datasus.
Segundo Patrícia Barreto Mendonça, agente de combate às endemias da Secretaria da Saúde de Caçapava do Sul, até março houve três casos registrados, mas nenhum era autóctone. "Sabemos que o mosquito está aqui há pelo menos dez anos e é visível que a infestação está crescendo."
Em 2023, o estado teve casos confirmados de dengue em todas as semanas epidemiológicas do inverno, segundo o governo do Rio Grande do Sul. Isso nunca havia sido observado antes.
"Nosso inverno foi marcado por períodos intercalados de dias frios, seguidos de dias com temperaturas elevadas e chuvas. Tivemos ainda a influência do El Niño com temperaturas e chuvas acima da média, fatores esses favoráveis para o desenvolvimento do mosquito", diz nota da secretaria de comunicação do Estado, que prossegue:
"Temos o fato de a população muitas vezes não trazer a responsabilidade para si. A dengue precisa ter múltiplas frentes de enfrentamento e prevenção. Não acumular lixos, não deixar água parada, separar dez minutos da semana para fazer a limpeza na casa e pátio, usar repelentes".
Chuva e calor inéditos
As ondas de calor atingiram o país em 2023 e, nos estados do Sul, aliaram-se a uma sequência histórica de chuvas e enchentes acumuladas desde setembro passado, com saldo de mortes e desabrigados. São as condições ideais para o mosquito da dengue se proliferar.
Até o ministério da Saúde do Uruguai emitiu alertas de dengue. Na Argentina, a explosão ultrapassou 130 mil casos, entre janeiro e março, o que corresponde ao número de casos registrados no ano inteiro de 2023, conforme publicou o jornal Clarín a partir de dados do Ministério da Saúde argentino.
Até 2023, Curitiba, a 935 metros acima do nível do mar, contava seus casos de dengue com números de três dígitos. Agora contabiliza 2.272 infecções comprovadas até quinta-feira (4), sendo 1.295 importados e 977 autóctones.
O modo como os casos se multiplicam e se espalham pelo país dão conta de uma previsão ainda mais aguda. Devido às mudanças climáticas, a dengue pode atingir regiões elevadas com períodos prolongados de temperaturas baixas e que nunca tiveram contato com doenças tropicais.
Esse cenário é descrito no livro "A Terra Inabitável", do jornalista David Wallace-Wells — uma longa reportagem sobre os problemas relacionados ao aquecimento global.
"Nos resta imaginar quando os mosquitos de malária e dengue baterão suas asas pelas ruas de Copenhague e Chicago", escreve ele, que é editor da revista New York.
"Está havendo uma dispersão espacial muito rápida da doença, com o mosquito se adaptando bem a regiões com características diversas", diz Sirlei Antunes Morais, bióloga que trabalhou no controle de dengue no Paraná e que pesquisa mosquitos.
Até o momento, o Ministério da Saúde diz que destinará R$ 1,5 bilhão para localidades sob decreto de emergência em saúde pública devido à dengue. O valor foi de R$ 256 milhões em 2023, segundo a pasta.
Mosquito nas alturas
A dengue chegou em anos recentes a Campos do Jordão (SP), cidade com maior altitude do Brasil (1.600 metros acima do nível do mar), e a levou a adotar medidas preventivas contra o mosquito.
Os casos na cidade subiram de 39 em 2023 para 59 até 19 de março de 2024. Não são casos autóctones. A prefeitura da cidade realiza um trabalho de controle, embora o Aedes aegypti ainda não tenha sido encontrado no perímetro urbano.
Vinte armadilhas foram instaladas em locais de fluxo de entrada e saída de pessoas, com especial atenção à rodoviária. A armadilha consiste em um pneu com água limpa deixado em lugar supostamente de fácil acesso ao mosquito.
Toda semana, uma equipe da secretaria de Saúde verifica presença de ovos ou larvas.
Diferentemente do pernilongo, "o Aedes pode pôr ovos em locais secos, e eles ficam ali, sendo transportados de lá para cá em pneus ou superfícies. Depois os ovos eclodem e as larvas se desenvolvem com a água parada", explica Sirlei Antunes.
Foi assim que o Aedes aegypti deixou a África para o mundo, com especial força na Ásia e na América Latina, causando diversas temporadas epidêmicas no Brasil, onde há suspeita de incidência desde o século 19.
O ressurgimento por aqui ocorreu em 1982, em Roraima, estendendo-se nos anos 1990 para o Rio, Alagoas, Ceará, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais.
A expansão continuou nos anos 2000 por São Paulo, Mato Grosso do Sul e outros estados do Norte. A doença agora ganha força na região Sul.
A diferença para a atual expansão do mosquito em todo o território são as condições climáticas, alertam especialistas. O aumento do tráfego de produtos, automóveis e pessoas entre regiões, estados e cidades também contribuem para o avanço da doença.
Pesquisadores alertam ainda para a falta de cuidado no combate a focos por parte da população e do poder público, em ações articuladas.
O mosquito, que vive cerca de um mês, não tem capacidade de voar por longas distâncias, raramente ultrapassando 1 km percorrido.
O único fator que explica essa infestação é a carona que ele pega nos meios de transporte humanos, afirmam especialistas. Por isso, hoje existe uma intensificação na fiscalização em rodoviárias.
Deixe seu comentário