Só para assinantesAssine UOL

Senegaleses vivem rotina de violência e racismo no centro de São Paulo

Senegaleses que moram em São Paulo afirmam viver uma rotina violenta, de racismo e vulnerabilidade.

Assustam cada vez mais as abordagens truculentas por parte de policiais e o clima de xenofobia contra eles, que formam uma pequena comunidade nos bairros centrais da capital.

O clima piorou com a morte de Seringe Mourtalla Mbaye, 38, em 21 de abril. Conhecido na região por consertar celulares, ele caiu do quinto andar do prédio onde morava havia nove anos na rua Guaianases.

A morte, que ocorreu durante uma batida policial, virou uma guerra de narrativas entre autoridades e testemunhas.

Segundo a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo), que diz investigar o caso, Mbaye caiu ao tentar fugir da abordagem pulando para a marquise de um prédio, enquanto agentes investigavam roubos.

"O socorro foi acionado, mas o homem não resistiu aos ferimentos causados pela queda", afirmou ao UOL a SSP em nota.
Outro homem foi preso no local por receptação.

O senegalês Seringe Mourtalla Mbaye, morto ao cair do 5º andar de seu prédio, na rua Guaianases, em 21 de abril
O senegalês Seringe Mourtalla Mbaye, morto ao cair do 5º andar de seu prédio, na rua Guaianases, em 21 de abril Imagem: Arquivo pessoal

A polícia diz que câmeras corporais usadas pelos PMs mostram que moradores autorizaram a entrada de policiais.

Foram apreendidos na ação 44 telefones celulares, seis notebooks, um tablet e uma máquina de cartão, diz a SSP.

Continua após a publicidade

Um documento do Ministério Público de São Paulo, no entanto, aponta que os policiais entraram no prédio sem mandado de busca e apreensão.

Assinado pelo promotor Matheus Jacob Fialdini, o documento diz que a polícia não viu "indícios de autoria em desfavor dos policiais militares, embora, estranhamente, em período noturno e sem mandado de busca e apreensão, tenham adentrado ao local, sendo imprescindível que eventuais excessos sejam analisados pelo Poder Judiciário".

A SSP não respondeu à reportagem sobre a ausência de mandado.

O que dizem os vizinhos

A reportagem ouviu membros da comunidade senegalesa e imigrantes africanos de outras nacionalidades, totalizando 14 depoimentos.

Dos seis moradores do edifício que conversaram com o UOL, nenhum confirmou a versão policial.

Continua após a publicidade

Segundo eles, a batida de 21 de abril era a quarta incursão de policiais no prédio esse ano.

Ex-moradores do mesmo prédio contam ter testemunhado abordagens parecidas entre 2019 e 2022. Eles preferiram não se identificar, com medo de represálias.

Amigos e condôminos afirmam que Seringe Mourtalla Mbaye seguia o islamismo com rigor e, por isso, não bebia nem usava drogas. Dormia e acordava cedo e participava de ações sociais.

A estilista Soda Diop, conhecida como "Mama", confirma o que o UOL ouviu sobre Mbaye de outros membros da comunidade.

A estilista Soda Diop, conhecida como Mama, ajuda a comunidade senegalesa recém-chegada a São Paulo
A estilista Soda Diop, conhecida como Mama, ajuda a comunidade senegalesa recém-chegada a São Paulo Imagem: Andre Porto/UOL

As vítimas perfeitas

O advogado Roberto Tardelli, acionado por Mama logo após a morte de Mbaye, diz que esteve no apartamento dele e que a porta tinha sinais de arrombamento.

Continua após a publicidade

"Os PMs estão acostumados a abordar indiscriminadamente os africanos, que estão longe de seus familiares e muitas vezes apresentam dificuldade com o idioma [senegaleses falam francês]."

Muitos deles, diz Tardelli, reclamam de serem roubados pelos policiais.

"Eles gostam de tênis Air Jordan, gostam de perfumes caros e de roupas boas. Para o homem senegalês, andar com elegância é um dever social", afirma, associando esse traço à religião islâmica.

O perfil, para ele, faz dos senegaleses e demais africanos o tipo de vítima perfeita.

Seringe Mbaye
Seringe Mbaye Imagem: Arquivo pessoal

Muçulmano, abstêmio e gentil

Mbaye nasceu em Touba, segunda cidade mais populosa do Senegal. Em São Paulo, casou-se com uma cabo-verdiana, com quem teve dois filhos.

Continua após a publicidade

Ela recebeu a notícia da morte de Mbaye em Atlanta (EUA), onde vive hoje com as duas crianças.

Quando chegou a São Paulo, Mbaye reencontrou um amigo da juventude, Ousmane Ndaw, 34, que mora no mesmo prédio.

Alto e corpulento como muitos de seus conterrâneos, ele trabalha hoje vendendo roupas no Brás, onde parte da comunidade africana também vive.

Assim como Mbaye, que era torcedor do Real Madrid, Ndaw é apaixonado por futebol.

Mbaye mandava dinheiro para a família nos EUA e para a mãe no Senegal. Africanos e brasileiros da região confirmam que recorriam a seus serviços de manutenção de celulares.

Segundo um funcionário do prédio, ele era um morador de quem todo mundo gostava, gentil e prestativo.

Continua após a publicidade

"Toda sexta-feira, ele trazia um saco de pães para distribuirmos para a população carente. A mãe dele está desolada. Era seu único filho", diz Mama, em sua loja na praça da República.

Uma audiência pública para falar sobre a morte de Mbaye está sendo organizada na Assembleia Legislativa, ainda sem data.

Crimes e preconceito

A Polícia Civil de São Paulo e a própria Polícia Federal investigam há anos um esquema de roubo e receptação de aparelhos celulares no centro de São Paulo.

Os agentes acreditam que a rua Guaianases se tornou o epicentro dessa modalidade de crime.

Aparelhos roubados por toda a cidade vão parar em imóveis dali e depois enviados para o estrangeiro por meio de "mulas" — especialmente Senegal e Etiópia.

Continua após a publicidade

Majoritariamente muçulmana, a comunidade senegalesa, por isso, vive em constante apreensão. A maioria reprova as ações criminosas.

Uma senegalesa que não quis se identificar por medo de retaliações contou ao UOL que seus pares precisam com frequência se defender de crimes forjados, de práticas policiais abusivas e de apreensões sem explicação.

Roda de senegaleses se apresenta na praça da República, em São Paulo
Roda de senegaleses se apresenta na praça da República, em São Paulo Imagem: Andre Porto/UOL

Rotina e integração na praça

Uma apresentação religiosa com músicos senegaleses acontece toda segunda-feira na praça da República, a partir das 19h.

A roda de "orações para Alá" costuma receber ajuda financeira da comunidade senegalesa. Mbaye era um dos colaboradores.

Continua após a publicidade

"Ele era puro coração", diz Ngagne Satuuba, 29, motorista de Uber que vive em São Paulo há dez anos e que estava na apresentação.

"A morte dele causou dor em toda a comunidade. Acho que até policiais da região ficaram tristes. Tenho a impressão de que agora eles nos olham com tristeza", prossegue.

Mama e outros senegaleses entrevistados dizem que a comunidade sofre ataques racistas e xenofóbicos de parte da população brasileira, mas que são exceções.

Viúva, ela se recusa a dizer quantos filhos biológicos tem. "Todos são meus filhos", diz, sobre jovens senegaleses que aparecem na loja e a cumprimentam.

Ela mostra a foto de uma jovem senegalesa que diz ser sua neta. "Ela veio do Senegal há oito meses e está desaparecida", conta.

Segundo ela, os senegaleses se unem para ajudar imigrantes recém-chegados, para dar apoio a vítimas de violência e para enviar o corpo de mortos de volta aos familiares no Senegal.

Continua após a publicidade

Seus conterrâneos juntaram R$ 17 mil para que o corpo de Mbaye fosse devolvido para a mãe no Senegal.

Uma cerimônia foi realizada em Touba para ajudar na arrecadação dos recursos, que somaram R$ 40 mil e foram distribuídos entre a mãe e a mulher de Mbaye, segundo Ndaw.

SENEGALESES NO BRASIL
2014 - 353 registros
2015 - 416 registros
2016 - 267 registros
2017 - 2.147 registros
2018 - 1.792 registros
2019 - 1.017 registros
2020 - 2.473 registros
2021 - 500 registros
2022 - 491 registros
2023 - 583 registros
(Fonte: Polícia Federal)

Encontros nas mesquitas

Os traslados de corpos são uma atribuição de Sheik Mouhamadou Rassoul, peça central na administração e na logística de congregações religiosas de seu país no Brasil.

Ele conta que neste ano já esteve à frente de cinco traslados. No ano passado foram algo entre 15 e 17, em suas contas.

Continua após a publicidade

Mohamed trabalha em uma mesquita na rua Barão de Campinas, que diz ser a maior comunidade religiosa de senegaleses em São Paulo. As cerimônias chegam a reunir entre 150 e 200 pessoas, diz.

As orações também são instrumentos para defender a idoneidade e a honestidade entre senegaleses. "Se há uma denúncia de que algum senegalês está fazendo algo errado, eu me manifesto nas orações", diz.

Rassoul afirma que há muitos obstáculos para o senegalês que quer trabalhar em São Paulo, e entre eles, elenca a truculência policial.

"O racismo é geral, é um dos maiores problemas que nossa comunidade enfrenta. Se a polícia daqui bate tanto nos brasileiros, imagina na gente", diz.

Imagem
Imagem: Andre Porto/UOL

Centro muçulmano

As mesquitas estão espalhadas por todo o centro de São Paulo e nem sempre são percebidas por aqueles que passam na rua.

Continua após a publicidade

A reportagem do UOL esteve no endereço de uma mesquita na rua Aurora, que havia sido derrubada para a construção de um condomínio. Depois, em outra, na rua Barão de Itapetininga.

Nada indicava a presença de um centro religioso ali naquela porta estreita vizinha a uma loja de roupas com fachada cor-de-rosa.
Uma escada se inicia logo depois e dá acesso a um salão onde cerca de cinquenta pessoas, quase todas negras, participavam, numa sexta-feira à tarde de uma cerimônia.

Nela, conforme tradição islâmica, os homens ficam à frente e as mulheres, na parte de trás, separadas por um pano.

Dificilmente um senegalês troca olhar com outra pessoa. São homens e mulheres com personalidades reservadas e que falam de maneira pausada, de forma que todos se escutam.

"Somos bons em guardar segredo" diz Osmane Ndaw. "Se você contar algo a um senegalês, ele não conta para mais ninguém. O brasileiro fala demais."

Mbaye conhecia bem aquela mesquita, onde os líderes religiosos descrevem um paraíso cheio de palácios, onde todo mundo é belo e se veste com roupas boas após a morte.

Continua após a publicidade

No fim da escada, havia um lugar para os sapatos, uma vez que é preciso entrar descalço. A estante foi aos poucos sendo ocupada por pares de tênis de marcas conhecidas.

À margem de todos os problemas, senegaleses se espalham por edifícios e espaços no centro de São Paulo e abrem lojas, como outros egressos de países africanos.

Muitos frequentam o restaurante camaronês Biyou'z Comida Africana, que tem duas casas, uma na rua Fernando de Albuquerque e outra na alameda Barão de Limeira.

Em locais públicos e restaurantes da região central, eles formam rodas de música e ocupam as ruas vendendo seus tecidos coloridos de estampas geométricas.

Imagem
Imagem: Andre Porto/UOL

Deixe seu comentário

Só para assinantes