Planos de saúde: cancelamentos são ponta do iceberg de modelo insustentável
Os cancelamentos de planos de saúde são apenas a ponta do iceberg de um problema maior enfrentado pela saúde suplementar no Brasil. O modelo atual é considerado insustentável, com mais da metade das operadoras trabalhando no vermelho e uma explosão no número de reclamações por parte dos consumidores, insatisfeitos com os serviços oferecidos.
Raio X
Tanto operadoras de saúde como consumidores estão insatisfeitos com o modelo de saúde suplementar que existe no país. Os consumidores enfrentam cancelamentos mais frequentes e reajustes altos em planos coletivos e empresariais, enquanto as operadoras lidam com prejuízo operacional e aumento da sinistralidade (uso dos planos).
Este é o pior momento para a saúde suplementar. É o que diz Vitor Asseituno, cofundador e presidente da healthtech Sami. O setor teve prejuízo operacional de R$ 5,9 bilhões em 2023 — grande, mas melhor do que o registrado em 2022, quando o resultado negativo ficou em R$ 10,6 bilhões, segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).
Houve aumento no número de beneficiários de planos nos últimos anos. Em março deste ano, havia 51 milhões de beneficiários, maior número desde dezembro de 2014 (50,5 milhões). No entanto, as pessoas passaram a contratar planos com custo mais baixo, segundo Asseituno, enquanto os gastos das operadoras seguem altos.
O uso dos planos aumentou após a pandemia e não voltou a cair. O indicador é medido pela sinistralidade, que contabiliza quanto do valor arrecadado pelo plano é gasto com atendimento à saúde. No quarto trimestre de 2023, a sinistralidade média dos planos foi de 87%, ante 84,5% no mesmo período de 2019, pré-pandemia. Os maiores índices de sinistralidade ocorrem nos planos coletivos por adesão, segundo dados da ANS.
Mais da metade das operadoras de saúde hoje opera no vermelho. Segundo a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde), em 2019, cerca de 20% das empresas do setor fechavam no negativo. Em 2023, esse número saltou para 54%. "A maior parte das empresas está desequilibrada, com despesas maiores que as receitas. Agora, o outro grupo é que é a exceção", diz Marcos Novais, diretor-executivo da Abramge.
O número de reclamações contra planos de saúde explodiu. Em 2019, a ANS recebia uma média de 11 mil reclamações por mês. Em 2023, a média mensal saltou para 29,4 mil. Até abril de 2024, a média estava em 31,8 mil reclamações por mês, quase o triplo do registrado em 2019.
O modelo de atendimento atual é insustentável. Asseituno afirma que o consumidor acaba usando mais vezes o plano por não saber qual o melhor caminho para ter um tratamento assertivo, o que faz com que o plano tenha gastos mais altos com aquele paciente. A Sami e outras empresas, como a Alice, tem um modelo de atenção primária, em que o cliente tem um atendimento inicial para definir quais os próximos passos do tratamento.
O que explica a situação
O tamanho do rol da ANS é um problema para o setor de saúde. O rol é o documento que determina quais os procedimentos que devem ser cobertos pelas operadoras. No entanto, uma lei de 2022 determinou que ele é exemplificativo, o que significa que a lista de procedimentos é apenas uma referência (e não a regra) de cobertura para os planos.
Isso dificulta a definição do preço dos planos de saúde. Asseituno diz que, dessa forma, o risco para as empresas de saúde é "infinito", já que não existe nem um limite de valores e nem de procedimentos que devem ser cobertos pelos planos de saúde.
Nos últimos anos, a ANS ganhou foco em atenção ao consumidor de todo tipo de necessidade. Ao mesmo tempo não tem uma avaliação econômica se a conta fechava para o setor. O que estamos vendo hoje é que a conta não está fechando.
Vitor Asseituno, cofundador e presidente da healthtech Sami
Regra também determina inclusão de medicamentos milionários. A mudança na lei do rol determinou que basta um procedimento ou medicamento ser recomendado pela Conitec do SUS (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde) para que ele possa ser solicitado ao plano de saúde. Isso inclui medicamentos como o Zolgensma, recomendado para pacientes com AME (Atrofia Muscular Espinhal), e que custa cerca de RS 6 milhões a dose.
Os planos reclamam que não podem negociar preços como o SUS. "O Zolgensma no SUS é R$ 5 milhões pagos em cinco anos, e só paga se a criança melhorar. E, se ela falecer, para de pagar. Na saúde suplementar, é R$ 10 milhões à vista", diz Novais.
A Novartis procurou o UOL para dizer que o Zolgensma não custa R$ 10 milhões. Segundo a empresa, a fabricante do medicamento, o custo para a saúde privada é de R$ 7,9 milhões. A Novartis afirma que vende o remédio pelo preço definido pela CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), que é a responsável por definir quais valores máximos podem ser cobrados na venda de remédios.
Mudança nas regras garantiu terapias ilimitadas aos pacientes. Em 2022, uma decisão da ANS derrubou o limite para sessões e consultas de especialidades como fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia e terapia ocupacional. Segundo a Abramge, isso também está pesando na conta dos planos. "Colocamos na cobertura algo que a sociedade não estava preparada para oferecer", diz Novais.
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Quero receberAs mudanças abriram caminho para bilhões de reais em fraudes e desperdícios, diz a Abramge. A entidade estima um gasto de R$ 30 bilhões ao ano em fraudes e desperdícios. Parte dessas fraudes ocorre via reembolso. O gasto dos planos com pedidos de reembolso saltou de R$ 5,7 bilhões em 2019 para R$ 11,4 bilhões em 2022.
O número de casos na Justiça explodiu. Com essas mudanças, os pacientes que tiveram algum procedimento negado pelos planos começaram a procurar a Justiça. Os gastos com pedidos de pacientes feitos na Justiça aumentaram 30% em 2022 e 50% em 2023. No ano passado, o setor pagou mais de R$ 5 bilhões em casos na Justiça.
Sempre tivemos aquela situação em que o médico dava dois recibos para uma consulta. Agora a gente criou uma legislação que acabou por institucionalizar o processo. Por que agora a gente tem fraude de reembolso em cirurgia? É porque agora a gente não pode nem questionar o procedimento cirúrgico. Bastou ter uma indicação médica, você tem que cobrir. Virou um salvo conduto para fraudar. É uma minoria que gera um dano financeiro muito grande.
Marcos Novais, diretor-executivo da Abramge
Alguns contratos coletivos ficaram inviáveis. O equilíbrio dos contratos depende dos usuários no contrato, diz Novais. Se o uso aumenta muito, o reajuste para todos fica maior. Se o reajuste aumenta muito, quem usa menos desiste do plano, e sobram aqueles que usam mais, tornando o contrato ainda mais insustentável, diz.
A decisão de algumas operadoras foi então cancelar o contrato todo. O cancelamento do plano coletivo por adesão é permitido pela lei, com algumas ressalvas (não pode cancelar contrato de quem está em tratamento, por exemplo). "Chegou num nível de desequilíbrio porque as pessoas boas pagadoras vão saindo e os contratos vão ficando insolventes", diz Novais.
Os problemas são antigos, mas agora estão mais frequentes. Esta é a avaliação de Rafael Robba, sócio do Vilhena Silva Advogados, escritório especializado em direito à saúde, que afirma que os cancelamentos e negativas de tratamentos estão ligados a uma tentativa das operadoras de reduzir os custos, dizendo que as decisões são tomadas pensando na sustentabilidade do negócio.
Houve um compromisso dos planos de rever o cancelamento de contratos. No final de maio, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que as empresas de planos de saúde se comprometeram a suspender os cancelamentos unilaterais recentes para algumas doenças e transtornos, como pacientes em tratamentos graves e TEA (transtorno do espectro autista). Apesar deste compromisso público, Robba diz que o escritório em que trabalha não para de receber casos de pessoas que tiveram os planos cancelados.
Os próximos passos
Apesar do acordo com Lira, não há ainda definições sobre os próximos passos. A expectativa é que ocorram mudanças na legislação sobre os planos de saúde. Há um projeto de lei em discussão na Câmara, cujo relator é o deputado Duarte Jr. (PSB-MA). O texto deve passar por mudanças antes da votação prevista para ocorrer no segundo semestre. Para o setor, as mudanças necessárias passam pela revisão da lei do rol e da liberação ilimitada de terapias.
A coparticipação e o reembolso são duas estratégias usadas pelas operadoras para reduzir os custos. Asseituno afirma que, quando o consumidor precisa pagar pelos procedimentos, há um uso mais racional do plano e barateia a mensalidade. A diminuição de reembolsos foi uma alternativa encontrada pelos planos para diminuir os custos. "O setor está mudando mais por desespero do que planejamento, infelizmente", afirma Asseituno.
Deveria existir uma legislação mais dura para planos coletivos. Hoje os planos individuais e familiares não podem decidir pelo cancelamento unilateral do contrato. Isso é autorizado para os planos coletivos, que podem ser descontinuados de acordo com a estratégia de negócio de cada uma das operadoras.
Os reajustes dos individuais são definidos pela ANS. Já os coletivos são definidos pelas operadoras sem nenhum tipo de limitação, o que prejudica os consumidores, para Robba.
A legislação precisaria, de alguma forma, regulamentar essas questões para trazer uma maior proteção do consumidor. Não precisa necessariamente ser a mesma regra que é aplicada aos individuais e familiares, mas precisa ter uma regulamentação mínima que proteja, pelo menos, as pessoas mais vulneráveis, os idosos ou quem está em tratamento.
Rafael Robba, advogado
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