Construtora Rossi ofereceu R$ 5.000 a quem ela deve R$ 1 milhão: 'Imoral'
No fim de 2023, a Rossi Residencial propôs um acordo para quem ela deve dinheiro.
Após quase um ano de recuperação judicial (RJ), com R$ 1,3 bilhão de dívidas, a construtora levou à assembleia uma proposta para acertar as contas com os credores, com diferentes opções de pagamento.
Entre elas, duas atraíram atenções do mercado.
Opção A: para quem ela devia até R$ 1 milhão, propôs pagar até R$ 5.000 em até 180 dias.
Opção G: para quem quiser receber os valores devidos integralmente, seria preciso esperar 40 anos — "em parcela única, devida no quadragésimo aniversário da data de homologação judicial", diz o documento.
As opções foram propostas para os credores quirografários, como são classificados os que não têm garantia real de pagamento.
Sete meses após o acordo, o UOL perguntou à Rossi e ao administrador judicial (AJ), Arnoldo Wald, quantos dos 22 mil credores a construtora já pagou e quantos optaram pelas opções A e G, mas não obteve resposta.
O departamento jurídico da Rossi afirmou, por email, que não se manifestará.
Dos 1.386 credores consultados pelo "proxy hunter" (profissional que faz a ponte entre a construtora e os credores), 93,7% (1.299) aceitaram a alternativa A, segundo levantamento da reportagem a partir de um documento público da RJ.
Entre eles há pessoas físicas e pessoas jurídicas, como fornecedores de materiais para construção civil.
Só dois credores, segundo o documento, escolheram G — esperar quatro décadas para receber.
Imagina quem gastou tudo o que tinha para comprar uma casa com a construtora, mas nunca recebeu as chaves e ainda não viu o dinheiro de volta. Muita gente deve aceitar [a proposta de R$ 5.000], pensando: daqui a 40 anos nem sei se vou estar vivo Francisco Rodrigo Silva advogado que representa credores no caso
RJs de empresas gigantes como a Rossi expandem um mercado crescente, onde já se identificam honorários milionários a administradores judiciais e juízes levados ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça), reportou o UOL.
'Absurdos' dentro da lei
Para o advogado Francisco Rodrigo Silva, que representa credores no caso, embora aprovada pela assembleia e pela Justiça, a proposta da Rossi foi "absurda".
"É aquela velha questão: não é porque a lei permite que se faça assim que significa que isso é correto. Pode não ser ilegal, mas é imoral", afirma.
Nas recuperações judiciais, é comum que a empresa negocie descontos para conseguir quitar as dívidas. É o equivalente a um "limpa nome" para empresas.
Silva critica a falta de limite legal para os descontos, conhecidos como "deságio".
Segundo o advogado, há "brechas e lacunas legais" no deságio que acabam prejudicando credores. Mais de uma vez, diz, fez reclamações no CNJ.
"Represento clientes que fizeram aportes milionários nessas empresas e logo depois se depararam com uma declaração de recuperação judicial", diz.
"Num caso recente, clientes fizeram aporte de cerca de R$ 10 milhões e, um mês depois, viram a empresa pedir recuperação com dívida de R$ 14 milhões. O primeiro questionamento é: 'O que ela fez com o dinheiro que entreguei?'."
"Conforme a a recuperação judicial tramita, você vê que o sócio está morando em Miami, que o empresário anda na avenida Paulista com um Mercedes. Ele continua rico. É nesse cara que se está pensando quando se discute recuperação judicial?", indaga.
"Ou é no trabalhador que ficou anos na empresa e saiu de lá demitido, não recebeu último salário e a verba rescisória, que está com dificuldade de comprar arroz e feijão para a família? Que estava esperando receber uns R$ 15 mil e se depara com situação de aceitar 'quinhentão'? A questão é uma ferida que precisa ser tocada."
Lei do 'calote oficial'
A recuperação judicial, na prática, "congela" cobranças que a empresa pode ter — entre elas, o pagamento de impostos e de rescisões de trabalhadores.
Segundo dados da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) obtidos pelo UOL via Lei de Acesso à Informação, 9.601 empresas falidas ou passando por RJ têm R$ 289 bilhões de dívida ativa com a União.
A Rossi, segundo relatório do AJ Arnoldo Wald publicado no fim de abril, deve quase R$ 350 milhões de impostos.
"Mas quem mais perde são os trabalhadores", diz a juíza Daniela Muller, presidente da Amatra1 (Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho) do Rio.
Muitas vezes, conta, recuperações judiciais são tratadas como lei "do calote oficial": "Dívidas confessadas, mas que não são pagas".
Citando dados do Cejusc (Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania), a magistrada afirma que o deságio no caso de trabalhadores fica entre 85% e 90%.
"Isto é, o trabalhador vai conseguir no máximo 15%, mas muitas vezes não recebe nada: zero. É uma questão muito grave."
O UOL perguntou à construtora e ao administrador judicial se as rescisões trabalhistas do caso Rossi já foram acertadas, mas não obteve resposta.
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