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'Rua do Ouro': PCC usou uma joalheria para lavar dinheiro, diz Deic

A poucos passos da catedral da Sé, centro de São Paulo, um prédio amarelo na rua Barão de Paranapiacaba, a "Rua do Ouro", abriga uma joalheria investigada por lavagem de dinheiro de um dos principais líderes do PCC, Silvio Luiz Ferreira, o Cebola.

A Paraíso Joias foi uma das lojas usadas para movimentar cerca de R$ 956 mil em uma série de transações de um laranja ligado a Christianne Loiola, companheira de Cebola.

A conclusão está em um inquérito do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), obtido com exclusividade pelo UOL, que aponta um esquema de R$ 3,9 milhões envolvendo outros negócios.

A loja pertence a Skeye Hussein Mohamad Mourad e está instalada na "Rua do Ouro" desde 1994, registrada como SHM Mourad Joias ME.

A joalheria faturou R$ 5 milhões apenas entre março e agosto de 2020, no auge da pandemia, segundo dados do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) citados no inquérito.

"É uma empresa perfeita para movimentação de capitais de origem espúrias [sic]", escreveram os investigadores no inquérito, em novembro de 2020.

Cebola integra a "sintonia final", a cúpula do PCC. Apontado como responsável pela operação de tráfico de cocaína no Brasil, ele já foi alvo de várias investigações.

Entre elas está a Operação Fim da Linha, do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), que apura lavagem de dinheiro do tráfico nas empresas de ônibus Upbus e Transwolff.

Uma das galerias da 'Rua do Ouro', ao lado da Sé, no centro de São Paulo
Uma das galerias da 'Rua do Ouro', ao lado da Sé, no centro de São Paulo Imagem: André Porto/UOL
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Cebola é foragido da Justiça desde 2020, quando foi deflagrada a Operação Sharks, que identificou o alto escalão do PCC.

Foi nessa época que o Deic recebeu uma denúncia anônima: Christianne Loiola, companheira de Cebola e uma das acionistas da Upbus, estaria recolhendo dinheiro de diversos integrantes da facção.

Ela fazia as coletas e depositava os valores na conta de um laranja, o metalúrgico Ricardo Reis Fontes.

A polícia descobriu depois que outras companheiras de líderes do PCC também transferiram dinheiro para Ricardo.

Esse esquema envolveria a joalheria, uma concessionária da Yamaha, uma adega na favela da Alba, leilões da Caixa Econômica Federal e até garimpo ilegal na Amazônia.

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Uma das mulheres que agiam no esquema é Cristiane Mininel, ex-companheira de Márcio Pimentel, o Keké, preso em uma operação do Denarc (Departamento de Investigações sobre Narcóticos), em 2013.

Desde 2008, muitas empresas da 'Rua do Ouro' foram cooptadas pelo PCC, diz inquérito
Desde 2008, muitas empresas da 'Rua do Ouro' foram cooptadas pelo PCC, diz inquérito Imagem: André Porto/UOL

Skeye, a dona da Paraíso Joias, declarou à Justiça que Cristiane comprou mais de R$ 1 milhão em ouro com ela entre 2018 e 2021.

"As operações com ouro são muito usadas em esquemas de lavagem de capitais, pois se trata de objeto de alto valor, com variação econômica estável ou com viés positivo, cuja operação pode ser não rastreável", diz o MP na denúncia contra Cristiane, Ricardo, Skeye e outros envolvidos, em maio de 2022.

O caso corre sob segredo de Justiça.

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Envelopes e joias

A "Rua do Ouro" é uma via exclusiva para pedestres. "Puxadores", como são informalmente chamados os promotores de venda, abordam quem passa com cartões de diversas joalherias instaladas no local.

Eles costumam receber 1% do valor da venda como comissão.

"Casal é celebridade" é um mantra local, pois um dos itens que mais se quer vender são alianças.

Os preços oscilam conforme a cotação oficial do ouro. Um par de anéis custa, no mínimo, R$ 3.000 — com desconto à vista ou no Pix.

Todos dizem que os produtos são ouro 18 quilates e têm certificado original e nota fiscal.

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"As informações que temos, de pessoas da região que não quiseram se identificar, é que, desde 2008, muitas empresas da Rua do Ouro foram cooptadas pelo PCC", diz o inquérito do Deic.

"E de fato acabam sendo a empresa de fachada ideal para lavagem de capitais, [uma] vez que são empresas com muitos anos de existência, que já informaram às instituições financeiras valores de faturamento mensal alto e são de famílias tradicionais. Ainda, sempre tiveram significativa parte de suas transações em espécie."

Foi lá que os agentes do Deic observaram um encontro entre Christianne Loiola e Ricardo Reis Fontes, trocando rapidamente envelopes, em 4 de agosto de 2020.

Os investigadores também viram Ricardo se encontrar com Ibrahim Ahmad Mourad, conhecido como Mustafá, um venezuelano de origem libanesa e primo de Skeye.

Lojistas da rua informaram aos policiais que Ricardo e Ibrahim se encontravam com certa frequência.

"Percebemos [Ibrahim] ser pessoa temida na região, e que segundo apurado, [é] quem de fato dirige a empresa localizada naquele endereço", diz um relatório do Deic.

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"Pelo movimento que os investigadores constataram no local atualmente, em incursões veladas, bem como conversando com frequentadores, é difícil crer que a empresa [a Paraíso Joias] tenha de fato ainda tal faturamento. Soma-se a isso a empresa ter uma aparência de empresa familiar, acima de qualquer suspeita", diz outro trecho.

Segundo o inquérito, Ricardo recebia dinheiro de Christianne Loiola, Cristiane Mininel e outras mulheres ligadas a líderes do PCC, como as viúvas de Cláudio Ferreira (o Galo Cego) e Wagner Ferreira da Silva (o Cabelo Duro), envolvidos no assassinato de um ex-líder do PCC, Gegê do Mangue, em 15 de fevereiro de 2018.

Foram mais de R$ 480 mil, entre fevereiro e setembro de 2020: 101 depósitos em dinheiro vivo, em transações na boca do caixa e em caixas eletrônicos na capital e em cidades como Santos, Guarujá e Guarulhos.

"Ricardo recebe, além de transferências diretas dessas pessoas, inúmeros depósitos em espécie, não identificados, feitos de forma fracionada, de maneira a manter o valor abaixo de R$ 10 mil, para evitar identificação do portador", diz o inquérito.

Depois, Ricardo transferia dinheiro para outras contas, entre elas a da joalheria. Ele fez 11 transações assim, totalizando mais de R$ 130 mil.

Outras operações suspeitas foram feitas por uma funcionária de uma concessionária Yamaha de Santo Amaro, na zona sul: Thais Tuanny, também ré no processo, desviou mais de R$ 93 mil da conta da empresa para Ricardo.

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Thais também enviou mais de R$ 200 mil para uma adega na favela da Alba, na zona sul, citada no inquérito como reduto do PCC.

A adega, acrescentou a Polícia Civil, "acolhe transferências altas de um indivíduo preso em 2016 por tráfico", durante investigação do Denarc.

'Rua do Ouro', a rua Barão de Paranapiacaba, no centro de São Paulo
'Rua do Ouro', a rua Barão de Paranapiacaba, no centro de São Paulo Imagem: André Porto/UOL

Da Sé ao Tapajós

Os investigadores notaram que parte do dinheiro que entra na conta da Paraíso Joias é transferida para outras joalherias no interior paulista, em Tatuí e Campinas, que usaram os valores para arrematar joias em leilões da Caixa Econômica Federal.

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O inquérito também citou "grandes transações" com empresas do Norte e Nordeste que já foram alvo da Polícia Federal "por envolvimento com extração ilegal de ouro, trafico de metais e pedras preciosas da Venezuela, além de lavagem de dinheiro".

Uma descoberta que intrigou os investigadores foi uma transferência de R$ 46 mil feita por um integrante da família Mourad para a Petrodado Comércio, uma empresa de Itaituba (PA), na bacia do Tapajós.

Lá existe garimpo de ouro "e também é rota de tráfico de minérios da Venezuela", diz o inquérito.

Petrodado é um posto de gasolina que pertence a Dorinaldo Moura da Silva, suspeito de garimpo ilegal e alvo de uma investigação da Polícia Federal que resultou em um mandado de busca e apreensão, em 2022.

Os agentes federais constataram que, entre março de 2020 e outubro de 2021, o posto fez transações na casa dos R$ 76 milhões.

A loja Paraíso Joias, na 'Rua do Ouro'
A loja Paraíso Joias, na 'Rua do Ouro' Imagem: Flávio VM Costa/UOL
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Mas a investigação sobre o PCC não avançou.

"As suspeitas eram de que haveria esquema de lavagem de capitais envolvendo a compra e venda de ouro, braço da investigação que acabou encerrada prematuramente em razão do indeferimento das quebras de sigilo bancário e fiscal das mulheres do PCC", escreveu o MP.

Todos negam as acusações nos autos. A defesa de Cristiane Mininel diz que ela já tinha tido uma loja de grife e quis vender ouro e joias.

"Dentre fornecedores, a defendente adquiriu ouro de Skeye Hussein Mohamed Mourad, que era e é proprietária de empresa registrada legalmente e operando legalmente", afirma, nos autos.

A defesa de Ricardo Reis Fontes diz, nos autos, que ele tinha uma parceria com a "amiga" Cristiane Mininel.

Ela estaria tendo "problemas relacionados a negativações" e, por isso, as operações de compra e venda de ouro dela eram feitas na conta dele. "Não objetivou esconder valores."

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Ao UOL, a advogada de Ricardo Reis Fontes classificou a investigação do Deic como "malfeita" e negou que ele é "laranja". "Sendo assim meu cliente não teria nada a declarar, estamos aguardando a sentença."

O advogado de Cristiane Mininel afirmou que "os fatos são de processo sigiloso e não tratam do assunto da reportagem que estão querendo veicular, havendo sensacionalismo por parte da fonte."

Em depoimento prestado à polícia em maio de 2022, Christianne Loiola afirmou não ter contato com Cebola havia oito anos. Ela disse ainda ter sido cliente de Cristiane Mininel na compra de joias e que, a pedido dela, o pagamento era depositado na conta de Ricardo Reis Fontes.

O UOL também procurou Ibrahim Ahmad Mourad e Christianne Loiola e os advogados de defesa de Skeye Hussein Mohamad Mourad e Thais Tuanny, mas não obteve resposta.

O Ministério Público de São Paulo afirmou que não pode se pronunciar sobre o caso, pois o processo corre sob segredo de Justiça.

*Após a publicação, o advogado de Christianne Loiola procurou a reportagem e afirmou que "o MP pediu arquivamento da investigação contra ela, já que a investigação concluiu que ela não cometeu qualquer irregularidade". A Paraíso Joias também quis se manifestar posteriormente. Via assessoria de imprensa, informou que "nunca participou de qualquer esquema de lavagem de dinheiro, nem praticou ilegalidades em seus 30 anos de atuação". "A defesa tem a certeza de que, ao final das apurações, restará comprovada a lisura das operações da joalheria", afirmou.

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