Shein: 'mistério' sobre parcerias frustra setor têxtil brasileiro
O plano de investimento de R$ 750 milhões da Shein no Brasil, anunciado pelo governo em abril de 2023, não saiu do papel como esperado.
O acordo previa a abertura de um marketplace (shopping virtual) da multinacional chinesa no Brasil e criação de uma coleção de marca própria.
A plataforma, em que terceiros usam o site da Shein como vitrine, foi lançada, mas a coleção de marca própria, que funcionaria em parceria com a indústria nacional, não ganhou a escala prometida.
Pequenas e médias confecções e outras empresas do setor têxtil se viram frustradas com o impasse.
O UOL ouviu a Shein, as demais partes envolvidas e especialistas de mercado.
Eles afirmam que:
- Houve mudanças na negociação, com a Shein exigindo prazos menores para entregar produtos, o que inviabilizou a produção;
- Dúvidas sobre o processo produtivo e o valor do frete viraram impeditivos;
- A empresa não contava com o chamado "custo Brasil", que agrega alta e complexa tributação, burocracia e gargalos de logística.
Procurada pelo UOL, a Coteminas, que intermediaria a parceria e está em recuperação judicial com dívidas de R$ 2 bilhões, não quis detalhar o andamento de sua parceria com a Shein.
Qual era a promessa
Em junho de 2023, representantes da Shein estiveram em Brasília para celebrar um memorando com a presença de Lula e da governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT).
Ali, a Shein assumia um compromisso de apoiar "2.000 fábricas, gerar 100 mil empregos e investir US$ 150 milhões no mercado brasileiro", segundo anúncio oficial divulgado pelo Planalto.
A parceria teria a intermediação da Coteminas, empresa de cama, mesa e banho, que receberia um aporte de cerca de R$ 100 milhões.
A produção de roupas com marca própria da Shein no Brasil envolveria pequenas e médias confecções potiguares.
Segundo o Planalto, a opção de se produzir ali se conectava "com a vocação têxtil do estado associada a um antigo programa de incentivos fiscais da região".
Pelo menos cinco empresas de pequeno e médio portes do estado foram escolhidas.
Em algumas, o contato foi efetuado com a Coteminas, mas também houve empresário que negociou direto com a Shein.
As oficinas desenvolveram amostras, mas se surpreenderam com mudanças no processo de negociação.
Diversos representantes comerciais negociavam pela Shein, de julho de 2023 a fevereiro de 2024, em uma comunicação truncada.
A cada mudança, a empresa exigia um menor prazo para a entrega dos produtos, o que inviabilizou a produção no estado.
"Quando começamos, o prazo de entrega que eles pediam era de 60 dias. Depois, baixou para 30. A gente não tinha tempo hábil para comprar a matéria-prima, produzir e mandar o produto acabado para eles", diz o empresário Janúncio de Azevedo, diretor da Nobre Confecções, em Jardim Seridó (RN).
A oficina de Azevedo é especializada em costura e atende a Riachuelo.
A empresa fez uma última entrega para a Shein em dezembro de 2023 e, desde então, com a mudança no prazo para entrega, a parceria foi interrompida.
"O que deixou a desejar é que a gente continuou com um volume considerável de matéria-prima na empresa e teve que procurar outros clientes, já que ficou inviável a operação com eles", lamenta.
Azevedo diz ter produzido cerca de 2.000 peças para a Shein — incluindo calças e saias em jeans e sarja.
"Devido à nossa estrutura pequena, não tivemos como acompanhar mudanças tão repentinas."
Contrato sem pedido
O empresário Ronaldo Lacerda, sócio da Cabugi Confecções, de Lajes (RN), diz ter produzido 80 amostras de coleções para a Shein.
Seu contato com a empresa era intermediado pela Coteminas. Em outubro de 2023, após a entrega do material, não houve mais contato por parte da Coteminas ou da Shein.
"Fiz 80 amostras, todas aprovadas, mas a produção mesmo nunca foi concretizada. O último contato que tivemos foi em outubro", diz Lacerda.
Além da mudança no tempo de espera, a falta de previsibilidade no processo produtivo e o valor do frete viraram impeditivos para as indústrias do Rio Grande do Norte.
À reportagem a Shein diz ter acordo com mais de 300 fábricas para a produção de linha própria — o compromisso é ter mais de 2.000 até 2026 —, mas não abre o nome das parceiras.
O "mistério" tem despertado desconfiança no mercado.
O UOL apurou que a maioria dos fornecedores hoje está no sul de Minas Gerais, em São Paulo e em Santa Catarina.
Empresas do Ceará e de Pernambuco também afirmaram ter rompido com a Shein devido às imposições no tempo de entrega da multinacional chinesa.
"Você pode ter 300 fábricas cadastradas, mas o importante é saber se os pedidos estão saindo e se está havendo evolução na produção local com a marca Shein", diz Fernando Pimentel, presidente emérito da Associação Brasileira da Indústria Têxtil.
"As informações que eu tenho são de que a produção [da Shein] no Brasil não progrediu."
Dificuldade de importar tecidos
A Shein, que tem faturamento estimado em mais de R$ 15 bilhões no Brasil, segundo o BTG Pactual, afirmou ao UOL que tem priorizado o desenvolvimento de seu marketplace no país.
Admitiu que sua linha de marca própria em apoio com a indústria nacional está com maior "lentidão" devido aos "desafios" impostos pela indústria nacional.
"O Brasil tem bastante algodão, mas alguns tecidos específicos, como o tecido plano, são mais difíceis de serem encontrados aqui", afirma Felipe Feistler, diretor-geral da Shein no país.
"Nesse caso, o produtor tem de importar e esse tempo de importação às vezes demora de 60 a até 180 dias. O nosso tempo de espera entre a gente pedir e esperar a primeira entrega é de 30 dias, igual ao que a gente faz na China."
O empresário Edmundo Lima, presidente da Associação Brasileira do Varejo Têxtil, que certifica indústrias com boas práticas no mercado, concorda que a logística se tornou um impeditivo.
"O Brasil tem vocação para produção de algodão, para fibras naturais, mas não tem grandes produtores de fibras sintéticas, por exemplo", diz.
"Plataformas da Ásia estão acostumadas a um contexto de produção muito diferente. No Brasil, existe um alto grau de terceirização no processo, o que torna muito complexa essa produção."
Outro argumento de Feistler para a escalada lenta da produção própria da Shein no Brasil é a falta de integração entre os segmentos da indústria têxtil local.
"Na China, é comum ter no mesmo local a parte de design das peças, a produção e a costura. Em Santa Catarina, por exemplo, o design e o dono da fábrica estão em uma cidade, mas as costureiras estão a cinco horas de distância. Aí tem o tempo de a peça sair para costurar e voltar."
A organização suíça Public Eye aponta que, entre os fornecedores da Shein instalados na província chinesa de Guangzhou, há trabalhadores pagos por produção e sem contrato formal, habituados a jornadas de 12 horas por dia, com um ou dois dias de descanso por mês.
"A Shein não sabia que existe uma coisa chamada 'custo Brasil', que não é só um custo tributário. Você tem que pagar pedágio, estradas não são boas. Uma série de fatores atrapalha a logística e a produção", diz Ulysses Reis, professor da FGV.
"A gente não tem tecnologia e logística para atender a eles como precisam. Isso vai ser o calcanhar de Aquiles nesse plano", complementa o especialista, que cita o Paraguai como um país com regras mais próximas às chinesas.
Danniela Eiger, analista de varejo da XP Inc., afirma que a empresa conseguirá superar essas diferenças com o tempo.
"Existe o desafio de nacionalização, não só por causa dos tecidos, mas até para que a indústria se adeque à forma de trabalho da Shein. Na China, eles são muito integrados e digitalizados. Nossa indústria talvez não esteja tão desenvolvida a esse ponto", diz.
A companhia admite que estuda apoiar a indústria nacional com a importação de tecidos necessários para sua coleção de marca própria.
Uma alternativa para isso seria usar parte do espaço de seu galpão logístico, de mais de 200 mil m², próximo ao Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP).
A 'taxa das blusinhas'
As marcas de "fast fashion" têm como característica chegar às prateleiras das lojas —ou aos feeds das redes sociais— o mais rápido possível.
O termo foi popularizado nos anos 1990 para descrever a agilidade das produções de marcas como Zara e H&M.
A Shein argumenta que, com esse tipo de produção, é possível reduzir o desperdício da cadeia produtiva da moda.
Outra companhia chinesa que atua nesse modelo é a Temu, que chegou ao Brasil em junho — a Shein, inclusive, acusou a compatriota de roubar designs. O caso tramita na Justiça dos EUA.
O acordo com o governo para a produção nacional da Shein se deu em meio à negociação com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sobre a taxação das compras internacionais.
A nova regra, apelidada de "taxa das blusinhas", que entrou em vigor no começo de agosto, estabeleceu uma alíquota de 20% sobre qualquer compra internacional de até US$ 50.
A carga tributária total sobre as peças vindas do exterior passou a ser de 44,5%.
A empresa estima que não será tão afetada à medida que aumentarem as vendas locais: mais de 55% de suas vendas no país já são internas, segundo a Shein.
O comprometimento é ter 85% de sua receita atrelada ao país, pela venda direta ou via terceiros instalados em seu site.
Questionado pelo UOL em coletiva de imprensa da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Josué Gomes, dono da Coteminas, disse que prefere ver as plataformas de comércio eletrônico como "potenciais clientes" e não como adversárias.
"A digitalização é inescapável. Segmentos que não entenderem isso ficarão para trás. Se a indústria não aderir, continuará fazendo propaganda para a marca deles em vez de cuidar de suas próprias marcas."
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