Jejum e Porsches: o mundo de quem paga R$ 250 mil para ser aluno de Marçal
Entre os cursos de Pablo Marçal, candidato a prefeito de São Paulo, empresário e coach, existe um programa de elite em que alunos pagam de R$ 200 mil e R$ 300 mil por quatro meses de mentoria.
A ideia do curso, chamado de "O Conselheiro", é formar um grupo de elite de empresários e coaches em torno de Marçal, cujo patrimônio declarado à Justiça Eleitoral é de R$ 193,5 milhões.
O pacote inclui dois encontros por Zoom com Marçal, o acesso a outros cursos de autoria dele e a presença em um grupo de WhatsApp exclusivo.
A reportagem teve acesso ao conteúdo compartilhado nesse grupo entre 27 de dezembro de 2023 e 15 de abril de 2024 e consultou cópias de contratos assinados pelos participantes.
Ao longo desse período, o grupo teve ao menos 54 participantes. Muitos buscam se aproximar de Marçal e de sua rede de coaches e empresários para se tornar um deles.
Há eventos de oração, um jejum de cem horas comandado por ele e convites para provas de triatlo com participação de Marçal.
O candidato a prefeito não interage no grupo, mas sua equipe passa lições de casa aos mentorados — uma delas envolve assistir a "La Casa Digital", reality criado por Marçal, e produzir um relatório.
A mentoria foi parar na Justiça duas vezes no último ano.
Katia Scalone desistiu dentro do prazo legal, pediu o dinheiro de volta e não recebeu. Ela diz que a equipe tentou convencê-la a continuar no grupo com orações.
Em outro caso, a empresária Deise Aparecida de Paula afirmou que não teve o acesso prometido ao coach e pediu os R$ 254 mil gastos de volta, o que também foi negado.
Ela perdeu a ação e não quis comentar o caso.
Além dos processos envolvendo "O Conselheiro", Marçal e as empresas controladas por ele são alvo de 25 ações judiciais movidas por ex-clientes ou ex-parceiros de negócios.
Os pedidos são de devolução de dinheiro e indenizações por violações à legislação do direito do consumidor e ao cumprimento de contratos.
Ele já foi condenado duas vezes, enquanto outros quatro processos foram arquivados após o acordo.
Procurado pela reportagem para comentar os casos, Pablo Marçal não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Culto à personalidade
"Generais, façam um dia extraordinário".
A saudação, ou uma variação dela, é enviada quase diariamente a alunos que contrataram "O Conselheiro".
O perfil é variado: há empresários do setor de saúde e do setor de tecnologia e um aluno da universidade de Duke, nos EUA. Vários deles querem ser coaches e mentores.
Marçal, venerado pelos alunos, é a estrela da mentoria.
Um dos itens incluídos no pacote é o acesso a outros eventos de menor porte e valor do empresário.
Ao mentorado que adquiriu o produto de R$ 250 mil é oferecida a oportunidade de trabalhar como voluntário no estafe de Marçal em outros cursos vendidos por ele.
Marçal não participa diretamente do grupo, que é gerido por administradores contratados.
Os participantes são convidados em diferentes momentos para as corridas com o coach, pescarias e provas de triatlo. Há encontros semanais via Zoom.
Uma das atividades determina que os participantes empresários levem uma pessoa que candidatou-se a vaga em suas empresas para ela ser entrevistada por Marçal, com transmissão para os demais participantes.
O valor da mentoria inclui o acesso a outros cursos, mas há diversos gastos extras para os mentorados e, com isso, oportunidades de aumentar a margem de lucro de Marçal.
Um churrasco de negócios é oferecido por R$ 5.000. Uma pescaria, por R$ 18 mil.
A equipe oferece o contato da diretora da Elementare, escola de ensino fundamental que tem ele e sua esposa, Ana Carolina, como sócios, para que os participantes interessados matriculem seus filhos.
Um dos produtos mais "premium" é a Mentor Air: uma oportunidade de mentoria exclusiva com Marçal em um voo a bordo de seu avião particular.
Em uma edição, a viagem partiu de Orlando. Em outra, de Denver. Para participar, o mentorado precisa bancar os custos e encontrar a equipe de Marçal onde ele estiver.
Os administradores do grupo e funcionários de Marçal chegaram a anunciar no grupo dois carros importados para venda.
"Duas Porsches abaixo da tabela, para queimar logo". Os carros são de 2021 e custam R$ 450 mil e R$ 850 mil.
Sonho de ser sócio de Marçal
Paralelamente, a mentoria divulga eventos e cursos de outros mentores, parceiros e sócios.
Pablo tem participação em livros e mentorias de pessoas que integram seu círculo mais próximo. Entre esses nomes estão Nézio Monteiro e Thiago Rocha.
Dois ex-alunos de Marçal que não querem se identificar afirmam que o grande sonho dos participantes do "Conselheiro" é atingir o status de parceiro.
Pablo já se aproximou de outros coaches que participaram de suas mentorias, endossou produtos e estabeleceu sociedades com alguns.
No período no qual a reportagem teve acesso ao conteúdo do grupo, aconteceu a criação de um curso colaborativo paralelo no qual os mentorados dão uma aula.
A iniciativa leva o nome de "O Conselheiro do Conselheiro" e visa propagar ensinamentos de Marçal. Foi criado um novo grupo de WhatsApp, ao qual a reportagem não teve acesso.
O espaço no topo da montanha como parceiro de Pablo Marçal é restrito.
Esse ecossistema de coaches e mentores tentando se aproximar, associar suas imagens à Marçal e lucrar com mentorias, já resultou em acusação de fraude contra pessoas que se diziam próximas do agora candidato a prefeito.
Acusações de golpe e oração de convencimento
A produtora de eventos, mentora e palestrante Katia Scalone foi a um evento de Pablo Marçal em dezembro de 2023.
Ex-paciente de câncer, ela se atraiu pela mensagem do coach.
Vítima de um relacionamento abusivo, queria montar um programa para auxiliar mulheres que passam por essa situação.
Katia foi abordada no evento por um homem que se apresentou como Fernando Rocha. Ele dizia ser próximo de Marçal e sócio de Monteiro e Thiago Rocha.
Fernando Rocha ofereceu a Katia ajuda com a publicação de um livro e uma mentoria. Ela pagou R$ 10 mil pelo serviço e estranhou quando o PIX endereçou o valor a uma metalúrgica.
Ela diz que Rocha jamais entregou qualquer serviço e, por isso, acionou a Justiça no começo deste ano.
Pablo Marçal também é réu na ação, que envolve sua mentoria VIP.
Katia diz que decidiu comprar em março a mentoria "O Conselheiro" após ir a um evento no qual Marçal espatifou no chão um relógio avaliado, segundo ele, em R$ 1 milhão.
Incentivada pelo estafe de Marçal, ela pegou um empréstimo de R$ 75 mil para pagar a primeira parcela de um contrato de R$ 265 mil por quatro meses de mentoria.
Ela diz ter percebido que fez uma loucura e, no mesmo dia, pediu o cancelamento.
Pelo Código do Consumidor, o comprador de serviço à distância pode desistir e receber a devolução do dinheiro dentro de um prazo de sete dias, sem necessidade de especificar um motivo.
Ela diz que o departamento financeiro de Marçal, entretanto, a envolveu em uma oração para tentar fazê-la seguir no programa.
Após alguma hesitação, dias depois Katia formalizou o pedido de cancelamento, que foi levado para o jurídico.
Ela afirma que o pedido foi feito em 18 de março, mas até hoje não teve resposta nem o dinheiro devolvido.
Katia pede na ação, além da devolução do valor, uma indenização de R$ 100 mil em danos morais.
O processo não é o único a envolver a mentoria.
Outra aluna, a empresária Deise Aparecida de Paula, também acionou a Justiça em 4 de abril deste ano.
Ela acusa a equipe de Marçal de propaganda enganosa e descumprimento contratual.
Deise diz que havia na mentoria a promessa de enriquecimento para os mentorados e que os encontros com Pablo Marçal previstos em contrato não aconteceram.
A empresária foi derrotada na decisão de 9 de julho da 2ª Vara Cível de Barueri. O argumento de propaganda enganosa foi rejeitado.
"Não é crível que pessoa adulta fie-se na inevitabilidade de seu enriquecimento financeiro pelo mero fato de realizar um curso de capacitação", escreveu o juiz João Guilherme Marcondes.
A sentença também considerou que foram oferecidos encontros com Marçal como era previsto no contrato.
A reportagem entrou em contato com Deise, que não quis falar sobre o caso.
Processos em SP e Goiás
O UOL analisou 58 processos ativos em que Pablo Marçal aparece no polo passivo - ou seja, foi processado por alguém.
A maior parte das pessoas que dizem ter sido prejudicadas por ele ingressou com ações nas justiças de São Paulo, em cuja capital ele tenta ser prefeito, e na de Goiás, seu estado natal.
Também há ações correndo na Bahia, em Sergipe, no Pará, em Mato Grosso e em Mato Grosso do Sul.
51 dos 58 processos analisados são ações de cobrança na esfera cível - que tratam do cumprimento de obrigações contratuais ou estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor.
As acusações incluem propaganda enganosa, recusa de ressarcimento quando o serviço deixou de ser prestado ou de devolver valores no prazo estabelecido pela lei para que o consumidor declare seu arrependimento.
Marçal foi condenado em 2010 a 4 anos e 5 meses de prisão por furto qualificado.
O caso envolve uma organização que aplicava golpes bancários. Ele não cumpriu pena porque houve prescrição (o Estado não conseguiu puni-lo dentro do prazo legal).
Marçal também é investigado pela polícia de São Paulo por suspeita de tentativa de homicídio qualificado após ter guiado cerca de 60 pessoas para subir, sem preparação, o Pico dos Marins (SP), em janeiro de 2022.
O grupo teve de ser resgatado pelos bombeiros de São Paulo e Minas Gerais devido a uma mudança brusca de tempo.
No caso das ações de cobrança, há uma espécie de roteiro comum a dezenas de histórias: a pessoa compra um curso ou um serviço das empresas, não recebe a contrapartida pelo que pagou nem o dinheiro de volta.
As empresas de Marçal só pagam em acordos - muitas vezes sem sequer a correção monetária - ou em caso de condenação.
Os acordos são sempre feitos fora dos autos, e por isso seus termos são inacessíveis em pesquisas públicas.
Promessa de US$ 1 milhão
Uma parte dos processos é recente e de duvidosa viabilidade jurídica.
Em 25 ações, Marçal é cobrado em US$ 1 milhão por causa de uma entrevista ao programa Pânico, da Rádio Jovem Pan, em 6 de março deste ano.
Na ocasião, o influenciador disse no ar: "Vamos fazer um desafio valendo um milhão de dólares, um milhão de reais não, um milhão de dólares! (...) Seguinte, olha aí meu CPF e vê se eu processei alguém por conta de qualquer coisa (...) ache um processo que eu dou um milhão de dólares".
Processos foram encontrados.
O fundamento dessas ações está no artigo 854 do Código Civil: "Aquele que, por anúncios públicos, se comprometer a recompensar, ou gratificar, a quem preencha certa condição, ou desempenhe certo serviço, contrai obrigação de cumprir o prometido".
Nenhuma dessas ações foi julgada no mérito. Onze foram extintas por erros como apresentar o processo no Juizado Especial Cível, cujo limite de valor das causas é de 40 salários mínimos (R$ 56.480).
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