Com menos doações, voluntários disfarçam falta de carne em marmitas no RS
Passados quase cinco meses da enchente que destruiu o Rio Grande do Sul, a carne sumiu das doações. As marmitas entregues à população carente de Porto Alegre precisaram ser adaptadas. Os cozinheiros enrolam hambúrgueres para parecerem almôndegas, disfarçando que a refeição leva uma das menos nobres opções de proteína animal.
Os voluntários capricham no tempero para a refeição ficar a mais saborosa possível. A regra é a mesma quando esfarelam o hambúrguer para ele "se fantasiar" de guisado —como os gaúchos chamam a carne moída cozida.
Mas o problema vai além da falta de carne. Também faltam outros alimentos. Os cozinheiros não estão conseguindo fazer a mesma quantidade de marmitas. Voluntário no Projeto Cozinha, João Nirton Kunzler conta que preparava 550 refeições por dia no ápice da cheia. Neste mês, no dia da conversa com o TAB, foram 117.
A queda é consequência de menos doações. Nas primeiras semanas da enchente, chegavam 150 quilos de carne por semana. De agosto em diante, foram 30 quilos de frangos e caixas de hambúrguer.
Com menos doações, o Projeto Cozinha não consegue preparar refeições todos os dias. Não há fornecimento de marmitas às terças e quintas.
João Nirton não aponta culpados. Reconhece a solidariedade demonstrada pelo país e é muito grato. Também não cobra os empresários gaúchos por entender que eles sacrificaram seus negócios e agora precisam arranjar um jeito de não falir e amparar os funcionários.
Pode não haver culpados, mas há vítimas.
A diminuição nas doações deixa pessoas carentes com fome. As marmitas do Projeto Cozinha são entregues na Vila dos Papeleiros, uma comunidade com 273 famílias de catadores colada a uma rua que termina no centro de Porto Alegre. Eles sobrevivem daquilo que especialistas chamam de "lixo rico", expressão insólita que se refere a materiais recicláveis.
As crianças dependem dos voluntários para comer. A enchente deixou as famílias da Vila dos Papeleiros mais pobres e destruiu a rede de apoio que existia. A escola local e as merendas só voltarão quando a reforma for concluída. Carla Silveira, diretora do colégio, relata que somente o que era de plástico sobreviveu a três semanas embaixo d'água.
Marco Antônio Teixeira, 29, se vira como pode. Quando não há ninguém para ficar com as crianças, leva os dois filhos e a mulher para o trabalho. Ela trata de fazer as caminhadas pelo centro serem menos sofridas para os garotos enquanto o marido revira o lixo. Marquinho busca qualquer material que possa ser revertido em dinheiro e alimente a família.
Sai eu, a mulher e as crianças. Ela vai entretendo as crianças e eu vou catando.
Marquinho, catador de reciclável
Farrapos
Um lado da rua que passa em frente à Vila dos Papeleiros parece um lixão. A sensação é despertada por enormes sacos de recicláveis, maiores que uma geladeira. Caminhões deformados por décadas puxando cargas que excedem sua capacidade completam o cenário. Eles têm a lataria enferrujada, faltam faróis e o lixo amontoado na carroceria camufla os veículos no ambiente.
A falta de perspectiva e o trabalho para além da capacidade se aplicam aos caminhões e às almas que empurram carrinhos de recicláveis. Roupas em farrapos, cara de cansaço e relatos de fome comprovam que na Vila dos Papeleiros a existência não é fácil para máquinas e humanos.
Pessoas esquálidas e descarnadas deitadas na calçada oposta dão aspecto de "cracolândia" ao outro lado da rua. As portas e janelas dos imóveis estão lacradas com concreto, lembrando a tentativa das autoridades de São Paulo de impedir que prédios abandonados virem mocós para fumar crack.
A Vila dos Papeleiros é pobre, mas se distingue dessa vizinhança barra-pesada. A maioria das casas têm dois quartos e muitos moradores. A necessidade transformou cada cômodo em microquitinetes. Uma sala abriga uma família. Qualquer cúbiculo vira ponto de comércio: barbearia, bar, tabacaria...
Líder comunitário desde quando tudo era maloca, Antônio Carboneiro diz que tem gente de todo tipo na comunidade. A parcela honesta é predominante, garante, mas ele não esconde que existem traficantes e facções. O homem de 76 anos acrescenta que já viu mais de uma vez policial fazendo coisa errada.
Ele e os demais moradores não têm cabeça nem tempo para gastar com isso. Antônio conta que as prioridades são outras. Com a enchente, cama, guarda-roupa e mesa viraram supérfluo. As pessoas trabalham pelo próximo prato de comida.
Faz três semanas que não chega uma cesta básica. Hoje, o papeleiro trabalha de dia para comer à noite.
Antônio Carboneiro, líder comunitário
Corrida contra a fome
João Nirton sempre estaciona a caminhonete na frente de um centro social. A disputa por espaço ao redor do veículo do Projeto Cozinha é uma briga pelo prato de comida. Muitos querem duas marmitas, mas atender ao pedido é impossível. Antes mesmo de chegar, João sabe que não haverá comida para todos. Ele tem esperanças de que ninguém fique sem almoçar porque há mais grupos que fornecem refeições.
Outra voluntária do Projeto Cozinha, Viviane Teston Severo, 60, conta que a carência vai para além do estômago. As casas estão com mobília estragada. O WhatsApp virou aliado e ela lança apelos a todas as direções.
Uma menina ficou tão feliz que abraçou o guarda-roupa doado pelo grupo de canastra de Viviane. Receber um móvel ou eletrodoméstico é uma alegria e um choque de realidade. Escolher uma casa significa que outras famílias precisarão aguentar mais tempo até ter o básico para viver.
Fuga noturna
Marquinho se apega ao fato de estar vivo para seguir em frente. Com parentes na Vila dos Papeleiros, ele fala que sua casa foi a última aonde a cheia chegou. Eram dez familiares empoleirados sobre os móveis quando a energia acabou. Era hora de bater em retirada.
Adultos com água no umbigo se atiraram na imundice trazida pela enchente. A noite protegia os olhos, mas o nariz entregava o ambiente pestilento em que se arrastavam com crianças carregadas no cangote. Marquinho segurava os nervos. Caso o medo se transformasse em pânico, tudo seria ainda mais difícil.
Ele também estava intrigado. O catador mora nos fundos da Vila dos Papeleiros e estranhou pontos iluminados ao longe. Ao chegar à rua principal, descobriu que eram vizinhos guiados por luz de velas procurando um lugar seco. A romaria tinha jeito de pagamento de promessa. Mas nenhuma graça fora alcançada. O passado recente era só de perdas.
Demorou até a área alagada acabar e os ombros dos adultos receberem o alívio de carregar somente o peso da cabeça. As velas continuaram trabalhando. Não havia luz naquele pedaço do centro.
Caminhando a esmo no escuro com a roupa e os ossos encharcados, Marquinho descobriu que o peso do desconhecido e da falta de esperança são ainda mais difíceis de carregar. Houve algum alívio ao ser avisado sobre um abrigo. Ao chegar, testemunhou uma multidão de pessoas tão desorientadas quanto ele. Foram semanas em alojamentos até a água baixar.
O medo de morrer afogado passou, mas a enchente obriga Marquinho a decisões difíceis. Ele come arroz, feijão e ovo nos dias de semana. O final de semana traz um dilema que retrata a dificuldade que sucede à enchente.
- Gastar as economias em carne vermelha que só dá para uma refeição?
- Ou ir de frango e ter proteína animal no sábado e domingo?
Carne a gente até come, mas é di-fí-cil. Eu ganho R$ 0,20 no quilo do papelão e não vem carne na doação.
Marquinho
Barco improvisado
Neusa Goulart foi colocada dentro de uma caixa de isopor e rebocada pelos filhos. Os 60 anos de idade e os problemas de saúde pesaram, e ela não conseguiu vencer a água com as próprias pernas. A canoa improvisada atracou na pequena elevação que leva ao acostamento de uma rodovia. Quem não tem para onde ir nunca estará no caminho certo.
A família foi para a rodoviária porque lá haveria de encontrar uma autoridade. Decisão sábia e logo estavam num alojamento. A aposentada voltou para casa semanas depois esperando o pior. Mas o que encontrou foi mais horrível do que esperava. O terreno era um monte de entulho parcialmente submerso na lama. Nada que estava ali pertencia a Neusa.
Seus móveis, eletrodomésticos e roupas foram arrastados e viraram lixo no terreno de outra pessoa. A limpeza revelou que o botijão de gás não fora levado pela enchente. Foi a única alegria da reconstrução. A ajuda de R$ 5.100 do governo federal se transformou num fogão, guarda-roupas e jogo de cozinha. Tudo de segunda mão, incluído os calçados comprados para os netos.
Agora, Neusa vai ganhar um vizinho. O filho Paulo teve a casa totalmente destruída e passa os dias martelando paletes que fornecem a madeira para erguer um puxadinho colado à casa da mãe. Paulo terá um teto, mas não terá forro nem piso.
Móveis e um prato de feijão, arroz e carne todo dia é um sonho para outro momento. Quem sabe, outra encarnação.
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