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Marçal perde eleição, mas ganha cacife e deixa bolsonarismo desnorteado

Pablo Marçal (PRTB) desnorteou o bolsonarismo e a Justiça Eleitoral ao mesmo tempo.

Ainda que esteja fora do 2º turno na eleição para prefeito de São Paulo, seu impacto leva a um nível mais feroz do que se imaginava a disputa pela liderança da direita e da extrema direita nos próximos anos.

A postura agressiva, o domínio extremo das redes sociais e um desprezo quase total às regras eleitorais formam uma versão turbinada do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), descrevem especialistas ouvidos pelo UOL.

Cientistas políticos, consultores de marketing político e advogados eleitorais veem o discurso renovado de Marçal, que troca o militarismo e o nacionalismo por um individualismo acima de tudo, como uma nova face de um bolsonarismo sem Bolsonaro.

O jogo mudou

Nada disso era esperado antes de Marçal despontar nesta eleição. Uma costura entre a família Bolsonaro, governadores de direita e o centrão iria indicar o herdeiro do ex-presidente, inelegível para 2026.

"A oposição a Lula se encaminhava para uma candidatura única, na qual a extrema direita seria um apêndice de um governador de direita, possivelmente Tarcísio", diz o consultor político Thomas Traumann.

"Marçal mostrou que existe uma demanda real no eleitorado por uma candidatura mais extrema e mais antissistema que a de Tarcísio, e isso altera todas as previsões para 2026", afirma Traumann.

Vitória na derrota

Bolsonaro deu um apoio pouco firme a Ricardo Nunes (MDB), que penou para passar para o 2º turno em SP, contra Guilherme Boulos (PSOL).

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Essa postura vacilante "fortaleceu o Marçal e agora, independentemente de perder, ele se cacifou na direita para 2026", diz o cientista social Marco Antonio Carvalho Teixeira.

"Ele enfraqueceu a liderança do Bolsonaro e, ao mesmo tempo, criou uma expectativa em torno dele como liderança política", diz Teixeira.

"Mesmo ao perder, o Marçal ganha projeção, musculatura, capital político, e muito dinheiro vendendo seus cursos", diz o cientista político Rodrigo Prando.

São Paulo não foi o único sinal de alerta para Bolsonaro enquanto líder supremo da direita.

No Rio, o ex-presidente não conseguiu levar Alexandre Ramagem (PL) ao 2º turno no Rio e viu Eduardo Paes (PSD) vencer com folga.

"Fica muito evidente que o Bolsonaro não é dono dos votos do bolsonarismo", afirma Prando.

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Discurso renovado

A tentativa de entender o poder avassalador do bolsonarismo desde 2018 pode ter tirado de foco seus aspectos arcaicos, diz a cientista política Silvana Krause.

"Bolsonaro representa uma direita folclórica, nacionalista, que remete ao integralismo dos anos 1930. Marçal chega projetando algo novo, a superação individual", descreve Krause.

"Marçal tem um discurso conectado com os mais pobres: é o cara que vence, cria empresas e capital, o que Bolsonaro nunca fez. Um discurso que tem hoje mais apelo que o bolsonarismo", diz Rodrigo Prando.

Parte dessa imagem de sucesso vendida por Marçal consiste nele como o seu principal marqueteiro, seja lá qual for o objetivo.

O UOL apurou que o candidato tomava decisões na campanha sem consultar ou comunicar qualquer assessor.

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Não havia fluxo ou processos. O trabalho consistia no ecossistema de Marçal produzindo conteúdo, fazendo "coisas", postando cortes e links por conta própria em plataformas como o Discord.

Havia uma sucessão de narrativas focadas em acusações agressivas, como as direcionadas contra Boulos nos últimos dias, o que levou algumas pessoas a deixarem a campanha.

Marçal também tem uma disposição maior de ignorar as instituições do que os seus rivais na extrema direita.

Isso colocou Ricardo Nunes numa posição inusitada para um político apoiado por Bolsonaro: a do candidato que reclamou sem parar do desrespeito de seu rival às regras eleitorais.

Marçal foi alvo de 31 ações eleitorais de Nunes em 51 dias de campanha - corresponde a uma ação a cada 1,6 dia de campanha.

"Essa tensão será permanente — como as instituições vão lidar com um projeto de poder que, por princípio, rejeita ser institucionalizada?", questiona Krause.

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Desafio dobrado

Enquanto a Justiça tentava lidar com Bolsonaro e seu descrédito ao sistema eleitoral, acabou atropelada por um desafio maior, dizem advogados.

"Eu nunca tinha visto isso numa eleição e já tenho bastante tempo de janela. Infelizmente a Justiça não conseguiu agir tão ativamente quanto a sociedade cobra", diz o advogado Alberto Rollo.

"Vai ser um marco. Suspende a rede social, uma hora depois ele já tem 2 milhões numa 2ª rede. Suspende a 2ª, já tem 2 milhões na 3ª. Então realmente a lei não está servindo pra nada", analisa Rollo.

Fernando Neisser, especialista em direito eleitoral, acredita que Marçal perderá ações como a que questiona o laudo falso sobre Boulos. Mesmo fora da disputa, ele pode ser condenado e ficar inelegível.

Neisser vê uma "curva contínua de aprendizado" no tema. Ou seja: não há paz à vista. "A gente não tem como escapar de, a cada processo, ver como lidar melhor com os fenômenos que vão aparecendo."

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É inevitável: novas campanhas vão apostar alto no caos como a do empresário.

"Pablo Marçal esgarçou os limites da política", diz Traumann. Mesmo assim, "não sofreu punição verdadeira. É óbvio que essa leniência vai incentivar campanhas mais violentas e agressivas".

Redução de danos

Ministra Cármen Lúcia, do TSE, durante julgamento
Ministra Cármen Lúcia, do TSE, durante julgamento Imagem: Alejandro Zambrana/TSE

Neste domingo (6), a presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Cármen Lúcia, fugiu de questionamentos sobre Marçal em uma entrevista coletiva.

"Não falo sobre candidatos pois sou juíza do Brasil inteiro", ela respondeu.

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Um dia antes do pleito ela defendeu a "unidade cívica". "Vamos caminhar juntos, atentos, sem hostilidades nem desalentos insuperáveis."

A reação mais forte do TRE-SP contra Pablo Marçal aconteceu na manhã de sábado (5), horas depois de o empresário divulgar um laudo falso sobre Guilherme Boulos.

Primeiro, foram derrubados quatro posts com o documento forjado. Depois, o perfil inteiro de Marçal foi retirado do Instagram. O candidato ainda criou outro perfil, que foi novamente banido.

Outros 'Marçais'

Mesmo que fique inelegível, Marçal segue influente — e ainda abre um campo que pode ser explorado por outras figuras.

"Marçal assinala uma nova fase de 'autonomização' de lideranças da direita em relação a Bolsonaro. Teremos mais candidatos desse campo na pré-campanha de 26", afirma o cientista político Antonio Lavareda.

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"A extrema direita tem em Marçal sua versão mais sofisticada, jovem, arejada e perversa", resume o consultor de marketing político Giuliano Salvarini.

As buscas pelo nome de Pablo Marçal no Google no Brasil mostram que ele atingiu seu objetivo: elas foram multiplicadas por dez entre julho e agosto de 2024, quando começou a campanha eleitoral.

De agosto para outubro, mês da votação, elas subiram dez vezes novamente, e ultrapassaram as buscas pelo nome de Bolsonaro.

A distribuição geográfica é importante: São Paulo foi o estado com maior interesse desde o início, mas em todas as regiões a disparada pelas buscas subiu na mesma proporção.

"No Brasil inteiro se ouviu 'faz o M' e agora ele já é a maior liderança do campo da extrema direita em diversas frentes", afirma Salvarini.

"Isso não só embaralha, como também é um sinal de alerta para a esquerda, que hoje não tem ninguém que possa fazer minimamente frente ao poder de comunicação de Marçal", diz o consultor.

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