Entidade do 5G contratou esposa de Toffoli por R$ 120 mil ao mês
Uma entidade criada na esteira do leilão do 5G para aplicar bilhões de reais em conexão à internet para escolas públicas contratou parentes de figurões do Judiciário e do Legislativo.
A Eace (Entidade Administradora da Conectividade de Escolas) é uma organização privada que sofre ingerência política por ter, em caixa, R$ 3,1 bilhões para obras públicas, que podem render entregas à população e retorno eleitoral.
Foram contratados pela Eace:
a advogada Roberta Maria Rangel: esposa de Dias Toffoli, ministro do STF (Supremo Tribunal Federal);
a advogada Manoella Campbell: filha de Mauro Campbell, ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e corregedor nacional de Justiça;
a ex-mulher do deputado federal Cezinha de Madureira (PSD-SP);
dois advogados ligados a um aliado de primeira hora de Toffoli.
'Contratados por cotação de mercado'
O UOL apurou que a Eace contratou o escritório de Roberta Rangel ao custo de R$ 120 mil mensais em fevereiro de 2023.
Sediado em Brasília, o escritório da esposa de Toffoli já atendeu clientes como o grupo J&F.
O acordo tinha prazo inicial de um ano e previa a prestação de auxílio jurídico à entidade.
O custo total do contrato é de R$ 1,44 milhão para dar, por exemplo, consultoria jurídica à presidência da Eace e suporte junto a órgãos fiscalizadores, Anatel e ministérios das Comunicações e Educação.
A reportagem perguntou à Eace qual foi o trabalho feito pelo escritório e a validade final do contrato. A Eace não respondeu.
Disse apenas que seus fornecedores "são contratados em regra por meio de cotação de mercado, obedecendo à sua política de compras".
O leilão do 5G — que movimentou R$ 46,7 bilhões, em novembro de 2021 — criou uma série de obrigações para as operadoras vencedoras.
Uma delas era abrir a Eace com aporte de R$ 3,1 bilhões para levar internet a unidades de ensino.
Quatro meses após o leilão, a entidade foi constituída pelas operadoras Claro, Telefônica, TIM e Algar e tem abrigado executivos ligados à classe política e ao Judiciário.
Em janeiro, o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, trocou a presidência da Eace, e o ministro Alexandre Padilha, da Secretaria de Relações Institucionais, emplacou um ex-assessor como diretor.
Ao UOL, o presidente da Eace, Flávio Santos, indicado por Juscelino Filho, afirmou que a entidade tem "independência administrativa e autonomia financeira, patrimonial e impessoalidade decisória".
"O sistema de governança da entidade é dotado de procedimentos de fiscalização e controle, como auditoria externa independente, conselho fiscal, assembleia geral e fiscalização da Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações]", disse.
Advogados ligados a ex-assessor de Toffoli ocupam setor
A área jurídica da Eace é considerada estratégica, pois cuida da legalidade dos contratos firmados pela entidade.
O setor já empregou ao menos três nomes ligados ao advogado da União Otavio Luiz Rodrigues Junior: dois ex-alunos e uma ex-assessora dele.
O advogado foi braço direito de Toffoli na AGU (Advocacia-Geral da União) e trabalhou no gabinete do ministro no Supremo. Também orientou a tese de doutorado de Roberta Rangel.
Rodrigues Junior é professor associado da USP (Universidade de São Paulo) e foi conselheiro da Anatel e do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público).
Silêncio sobre emprego de filha de ministro do STJ
No meio do ano passado, a advogada Manoella Campbell, filha do ministro Mauro Campbell (STJ), deixou o gabinete de Rodrigues Junior no CNMP e passou a integrar a entidade do 5G.
Segundo a Eace, a advogada não trabalha mais lá. O UOL questionou quando Manoella Campbell saiu, mas não houve resposta.
O diretor jurídico da Eace é Abrahan Lincoln Dorea Silva, e um dos gerentes, Luis Felipe Rasmuss de Almeida.
Os advogados tiveram a dissertação de mestrado e o trabalho de graduação orientados pelo aliado de Toffoli.
Almeida também trabalhou no gabinete de Rodrigues Junior no CNMP.
No ano passado, Rodrigues Junior disputou uma vaga de ministro do STJ, com apoio de Toffoli, mas não foi escolhido pelo presidente Lula (PT).
Ex-esposa do deputado federal Cezinha de Madureira (PSD-SP), a advogada Elisangela Freire também atuou na entidade como analista de compras. Ela não trabalha mais na organização.
Cezinha integra a Comissão de Comunicação da Câmara e criou, no ano passado, a Frente Parlamentar em Defesa da Radiodifusão (Rádio e TV), da qual é coordenador.
Governo usará verba do 5G para conectar escolas
Dois anos e meio após a sua criação, a Eace levou internet, computadores e treinamento para professores a 177 escolas em um projeto-piloto. Como mostrou o UOL, a iniciativa ganhou um prêmio internacional, mas foi desmontada pelo governo Lula.
Para os projetos seguintes, a gestão petista decidiu cortar os equipamentos e usar o recurso para conectar um número maior de escolas por dois anos. O projeto-piloto tinha duração de três anos e conectaria menos unidades.
Levar ou melhorar a internet em escolas públicas é uma das prioridades de Lula até 2026, quando termina seu terceiro mandato.
A verba do 5G é essencial para o governo tentar cumprir a meta, pois o recurso está em caixa e independe do orçamento federal.
Dos R$ 3,1 bilhões, o conselho diretor da Anatel aprovou o uso de R$ 2,4 bilhões (77%):
R$ 32 milhões para o projeto-piloto iniciado no governo Jair Bolsonaro (PL) e concluído em 2023;
R$ 558 milhões para atender a 5.320 escolas nas fases seguintes, denominadas 2 e 3 — em andamento desde fevereiro;
R$ 1,8 bilhão, em maio, para conectar 18.555 unidades escolares da fase 4.
Em decisão inédita, em setembro, o conselheiro da Anatel Alexandre Freire votou para permitir que a Eace contratasse a estatal Telebras para fazer a conexão por satélite de escolas das fases 2 e 3. O conselho diretor da agência aprovou.
Freire também já foi assessor de Toffoli no STF.
Levantamento do UOL identificou que, das 3.240 unidades de ensino que precisam desse tipo de tecnologia, 458 são atendidas atualmente por um programa do Ministério das Comunicações.
Na prática, o governo vai deixar de pagar a internet dessas escolas com dinheiro do orçamento para custear com a verba do 5G.
Quem fiscaliza a Eace
O TCU (Tribunal de Contas da União) informou à reportagem que não abriu procedimento específico para acompanhar as atividades da Eace porque analisa os trabalhos por meio do Gape (Grupo de Acompanhamento do Custeio a Projetos de Conectividade de Escolas).
Quem fiscaliza a atividade da Eace, registrou a corte, é este grupo.
O Gape é formado por integrantes da Anatel e dos ministérios das Comunicações e da Educação e aprova projetos que a Eace executa.
O presidente do grupo é o conselheiro da Anatel Vicente Aquino, que se envolveu com campanhas eleitorais no Ceará.
Aquino é casado com a prefeita de Paraipaba (CE), Ariana Aquino, que se reelegeu no domingo (6).
No município vizinho, Paracuru, a cunhada do conselheiro, Gabi do Aquino, também foi eleita prefeita.
Um vídeo publicado pela cunhada, em setembro, mostra Aquino no palanque eleitoral.
Em maio, as irmãs do Republicanos publicaram uma propaganda política narrada pelo conselheiro da Anatel, com a legenda "um apoio forte em Brasília".
Segundo a Anatel, Aquino não se licenciou em nenhuma ocasião neste ano.
"O conselheiro não faz qualquer campanha política. Todavia, é esposo e cunhado das candidatas à prefeita de Paracuru e Paraipaba, no Ceará. E, como tal, na condição de cidadão, em situações eventuais, as acompanha em alguns eventos", afirmou.
O que diz a Eace
A Eace também usa a verba do 5G para custear sua estrutura, com 74 funcionários.
O UOL perguntou o valor dos salários e benefícios, como carros, pagos à cúpula da entidade. A Eace não informou, alegando que se tratam de dados pessoais protegidos pela LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).
Disse ter contratado "seus executivos de mercado com benefícios compatíveis aos respectivos cargos".
Declarou fazer a "prospecção de profissionais de mercado com experiência e formação compatíveis com os requisitos e atribuições de seus cargos".
Destacou que "todas as contratações passam por processo seletivo de RH, seja interno ou externo".
Sobre a ligação dos advogados com Rodrigues Junior, "a atual direção da Eace afirma que desconhece as conexões apontadas".
O deputado Cezinha de Madureira disse ao UOL que não tem "nenhuma relação com a vida profissional da sra. Elisangela". "Não realizei tal indicação", afirmou.
Elisangela Freire disse ter sido contratada após participar de processo seletivo. A advogada disse ter qualificação e experiência profissional e negou "qualquer indicação do deputado".
"A suposição de qualquer influência é absurda e infundada, levando em consideração que a nossa sociedade conjugal já havia se encerrado", disse.
"Meu desligamento da entidade se deu por questões pessoais e redirecionamento profissional."
O UOL também procurou a advogada Roberta Rangel, o professor Otávio Luiz Rodrigues Junior e os ministros Toffoli e Campbell, mas eles não se manifestaram.
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