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Esquerda desistiu de lutar, e Brasil virará Irã, diz sociólogo Jessé Souza

O sociólogo Jessé Souza, 64, vê com pessimismo o futuro da esquerda no Brasil. Ele teme que o "PT se torne tão irrelevante quanto o PSDB".

Para Souza, a esquerda "desistiu de lutar", e a direita conquista eleitores vendendo "magia". "Pablo Marçal, bets, é a mesma coisa."

Jessé, que é professor da Universidade Federal do ABC, entrevistou mais de cem pessoas para escrever o livro "O Pobre de Direita: a Vingança dos Bastardos", recém-lançado pela editora Civilização Brasileira.

"Sentia um desespero quando saía das entrevistas. Isso aqui vai virar o Irã", disse, ao UOL.

Ele afirmou que a derrota da esquerda em capitais como São Paulo pode ser explicada, em parte, pela atenção dada pelas campanhas às chamadas pautas identitárias (racismo, feminismo e direitos LGBTQIA+).

"É um tema espinhoso. Se eu faço um mínimo de crítica, dizem que estou sendo contra", afirmou.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista.

Futuro da esquerda pós-Lula

É difícil. Ele nos protegeu de estarmos hoje em um país fascista. Mas estamos ancorados na figura dele, o que é extremamente preocupante.

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O PT está perdendo credibilidade. E a ameaça é que se torne tão irrelevante quanto o PSDB.

Foi o trabalho sujo que a Lava Jato fez, [a operação] destruiu os partidos que tinham algum vínculo com a sociedade.

Lideranças políticas na esquerda

Eu achava o Flávio Dino um cara com enorme poder. Mas agora ele é ministro do Supremo. Ele me lembra os grandes políticos do passado, um homem de Estado, que pensa as questões mais importantes da sociedade.

Guilherme Boulos (PSOL) é uma das figuras políticas nascentes que mais admiro. Ele estuda, coisa que poucos políticos fazem. É jovem e tem real conexão com as questões populares.

Campanha de Boulos à Prefeitura de SP

Ele fez o melhor que pôde. É preparado. Mas está numa esquerda que não disputou as ideias. Quem deu o conteúdo popular ao PT foi o Lula. Se você não debate as ideias, perde as pessoas.

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Do outro lado, tem o neopentecostalismo, que diz: 'Se você está doente, não é porque o SUS é subfinanciado, mas porque o diabo entrou no seu corpo'.

Quando você é muito pobre, você sonha, mas não consegue ver a realização disso no futuro. Quando você é da classe média, você planeja. O pobre, não, mas continua sonhando. Então a saída dele é mágica.

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Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Isso explica as bets. Por que uma pessoa pega o dinheiro do Bolsa Família e aposta nas bets? Porque ela é pobre e não quer mais ser. E não há uma forma racional de conseguir isso.

Então vai para a magia. Foi o que restou para ela. Pablo Marçal, bets, é a mesma coisa. Isso é o que está derrotando o Boulos, e ele, como pessoa, não pode fazer nada sobre isso.

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'Erros' da esquerda

A esquerda não fez o seu trabalho, não faz e não se preocupa com isso. E nem sequer luta. Isso ajuda a explicar o resultado das eleições.

Todo pobre acha que pode ser empreendedor. Você pode chegar para ele e dizer: 'Irmão, não tenho nada contra o empreendedorismo, mas o dinheiro precisa chegar até você'.

Num país como a Alemanha o dinheiro chega a juro zero para esse cara. Aqui, o dinheiro fica todo na Faria Lima.

Tem que falar: 'O que evita que você seja um empreendedor não é o diabo, mas o dinheiro ficar com meia dúzia de pessoas, enquanto o resto do país é pobre como você'.

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'Brasil vai virar Irã'

Isso aqui vai virar um Irã, uma Turquia. Vai ter 20% de pessoas ocidentalizadas, a classe média, e 80% de pessoas na Idade Média. Estamos cortando toda forma de inteligência e reflexão.

Tenho muito medo de um "Evangelistão". E não é pessimismo, é o que vi, das entrevistas e dos estudos que fiz.

A esquerda é inexistente enquanto afirmação de um projeto alternativo de país. Junte-se a isso a influência neopentecostal e vamos ter pessoas que sacrificam o intelecto em nome de uma fantasia que as faz continuar vivendo.

Imagem: Daniela Toviansky/UOL

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Marçal 'perigoso', Bolsonaro 'burro'

As 80% de pessoas humilhadas entre nós querem ter futuro, mas não veem onde está. E ninguém explica para elas. Temos uma pregação religiosa que exclui qualquer reflexão sobre a realidade social.

Essas pessoas estão tão desesperadas que acreditam em promessas do Pablo Marçal, como se ele fosse um líder mágico. Elas precisam ter alguma fantasia. Ninguém consegue continuar vivo sem nenhuma chance de futuro.

Pablo Marçal é muito perigoso. Ele é um Bolsonaro turbo. Bolsonaro é burro, um ser humano extremamente medíocre, um malandrinho miliciano "carioca". Marçal é o coach neopentecostal. É o coach da prosperidade.

Foco no identitarismo

Você não pode dividir o mundo entre brancos e negros, entre homens e mulheres, e esquecer que existem ricos e pobres. A ascensão individual não combate a desigualdade.

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Eu critico porque é uma saída meritocrática. Não abrange todas as mulheres e todos os negros. É menos de 1%.

O efeito disso é pernicioso. Um banco pode dizer: "50% do meu pessoal é preto". Com isso ele quer dizer que é democrático.

Mas qual é a mensagem para os 99% de negros que continuam morando com esgoto a céu aberto? Que são culpados pelo próprio fracasso.

Essas causas são justas e importantes, mas devem ser postas a partir de um ponto de vista universalista. Não pode beneficiar só negros que tiveram uma vantagem comparativa — porque tiveram maior escolaridade, ou um professor que ajudou.

Esse tipo de ascensão social acontece entre nós há 500 anos, inclusive dos negros. O que é o capitão do mato senão isso? Você pega os negros "mais capazes", desde que eles assumam os valores do branco e do rico. É o processo de embranquecimento.

Se você chegar para um pobre na periferia, ele vai dizer: 'As mulheres querem uma lei só para elas, o pessoal LGBT, o Uber, eu também quero uma lei para mim'. É um erro não ligar essas reivindicações a questões universais.

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É um tema espinhoso, muito ruim. Se eu faço um mínimo de crítica, vão dizer: 'Você está sendo contra'. É um negócio absurdo. Obviamente eu não estou sendo contra os grupos oprimidos.

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