Destruída por enchentes, Muçum (RS) luta contra extinção e traumas
Mauro tranca a porta do restaurante mais conceituado de Muçum (RS) e entra no carro. Dirige no automático. Quando percebe, está na frente da casa em que morava até a enchente. Ele chora.
Nascido e criado ali, ele viveu naquele terreno todos os 61 anos de sua existência. A última cheia foi em maio e até hoje cérebro e alma não assimilaram que aquela vida não existe mais.
Mauro lembra da infância naquele pedaço de chão da Muçum da década de 1960, época em que havia navegação no rio Taquari. Não existiam estradas e balsas desciam para Porto Alegre com produtos da roça. Voltavam dias depois com mercadorias da cidade.
Era um mundo com muito menos gente e sobrava espaço. O avô comprou um terreno do tamanho de uma chácara. Mauro brincava de amarelinha, peteca e futebol no imenso gramado. A mãe casou e ergueu uma casa no lote. Ele casou e fez o mesmo.
Formou família e conquistou luxos. Esparramado na cadeira do quiosque, Mauro olhava a piscina e sentia-se recompensado por uma vida de trabalho que começou aos 13 anos numa fábrica de tijolos.
Projetava uma velhice confortável e estável. Esse futuro nunca virá. Estudos apontaram que a área do terreno está condenada. Da casa, sobrou só o piso.
A história de Mauro é apenas uma entre muitas que emergem após a devastadora série de enchentes que atingiu Muçum (RS) desde 2023. A cidade ainda tenta se reerguer.
A água levou tudo.
Epidemia de depressão e síndrome do pânico
Mauro conta que às vezes tem "vontade de arrebentar tudo". Toma um calmante.
Não é o único da família com a cabeça mexida pela enchente. A mulher tem o mesmo desejo de arrebentar tudo. A filha é outra em tratamento.
As cheias estão rivalizando com a obstinação da população de Muçum. São 4.601 pessoas que carregam no sangue a tenacidade de italianos que apostaram o futuro num continente distante um oceano da Europa.
Mas a dose cavalar de desgraça com três enchentes em oito meses é difícil de lidar.
Ciro Zamboni, 78, não irá ao cemitério no dia de Finados. A cheia violou as lápides dos pais e avós. Os restos mortais dos antepassados foram arrastados pela enchente e estão espalhados pelo Vale do Taquari.
"Estou muito fraco, me desespero."
Paulo Pietta, 61, juntou um punhado de terra e jogou sobre três caixões lacrados que julgava abrigarem os corpos do tio, da tia e do primo.
Passadas 72 horas do enterro, funcionários do Instituto Geral de Perícias abriram a cova da tia.
Exames feitos em Porto Alegre determinaram que não era o corpo de Beatriz Pietta, 73 anos. Ela nunca foi encontrada. Paulo não tem uma lápide para visitar e rezar. A única referência a morte da tia é um BO.
"Eu tento desligar, mas de vez em quando vem na cabeça."
Dorli Fleck, 66 anos, mora num dos bairros mais atingidos de Muçum — a água bateu no teto do posto de combustível.
Ele conta que do nada sua cabeça é invadida pela imagem dos 12 vizinhos engolidos pela água e sufocados até a morte. O diagnóstico de depressão não foi surpresa. O filho, Tatiano Fleck, 36 anos, também está em tratamento.
Claudiana Frozza, 51 anos, sofre de síndrome do pânico. A boca fica seca, o apetite e o sono vão embora cada vez que começa a chover. Ela tem medo. Escapou de morrer porque o marido e o filho arrombaram o forro.
Passaram uma noite no telhado.
Na escuridão da tempestade, Claudiana escutava choro, gritos de socorro e súplicas por misericórdia divina. "Eu me sinto uns dez anos mais velha. Tem um peso maior nos meus ombros".
Reforço nas equipes de saúde mental
A situação mental da população obrigou a prefeitura a reforçar as equipes de psicologia. Também houve a contratação de um psiquiatra, ressalta Grasiela Fontana, secretaria de Assistência Social.
Ela diz que o número de atendimentos cresceu 35%. Sessões em grupo foram criadas porque foi percebida a necessidade de os moradores extravasarem em público os traumas da enchente.
Nas entrevistas ao UOL, as pessoas descreveram uma gangorra emocional. Eles sabem que preservaram o mais importante: a vida. Mas sentem a dor de perder tudo e, principalmente, medo do futuro.
Na campanha pela reeleição, o prefeito Mateus Trojan ouviu muitas histórias de dor. "Existe nitidamente um trauma".
Antonio Frozza, 89 anos, esperava o mecânico porque seu Fusca estragou na frente do cemitério. Do nada, apareceu uma van e de dentro desceu o dono da Havan.
Atrás de Luciano Hang surgiu o apresentador Celso Portiolli, do SBT.
Antônio entendeu quem estava no helicóptero que voava baixo sobre a cidade. Claudiana Frozza foi acudir o pai e estranhou a aglomeração.
O dono da loja Havan estava cadastrando pessoas que perderam as casas para receberem vale-compras de R$ 10 mil. Ela esqueceu o Fusca e tratou de colocar o irmão na lista de beneficiados.
Claudiana quer registrar o momento, mas pega mal tietar uma pessoa que deu ajuda em dinheiro. Acreditando estar sendo discreta, ela finge mexer no celular e "rouba" uma foto. Luciano Hang percebe, mas não liga.
Mas nem todo forasteiro deixa boa impressão. Dorli Fleck contou a uma equipe da Record que no dia da enchente passou de barco por onde costumava passar de carro.
Até hoje ele se impressiona com a lembrança dos bombeiros usando tesouras hidráulicas para cortar os fios de luz. "Daí você tem noção de como a água tava alta".
Mas Dorli ficou contrariado quando o jornalista pediu para ele chorar. Respondeu atravessado que não ia fazer isso. A entrevista acabou na mesma hora.
Muçum sob risco de extinção
Cada um reage de forma particular à enchente. Paulo Pietta vai sair da cidade assim que mobiliar a casa construída na vizinha Arroio do Meio.
Ele não tinha os pais e a perda dos tios cortou laços familiares. Também fez entender que corre risco de morrer se continuar em Muçum.
O prefeito da cidade, Mateus Trojan, diz que cerca de 600 pessoas se mudaram — 13% da população.
Claudiana tinha uma loja de lingerie que não será reaberta. Ela justifica que os moradores estão empobrecidos e ninguém vai gastar dinheiro com calcinhas, sutiãs e cuecas.
O impacto econômico é uma ameaça a sobrevivência de Muçum. O prefeito tem esperança de que as pessoas voltem, mas a cidade é uma sucessão de pontos comerciais vazios.
Em vez de produtos, as vitrines exibem placas de "aluga-se".
Muçum era uma cidade de cartão postal até ano passado. Casarões históricos no meio de um vale verdejante com um rio refletindo o sol e a lua cheia. O passeio de trem atirava essa exuberância na cara dos turistas.
O padrão de vida da população era elevado e o pleno emprego fazia a cidade importar mão de obra.
Mas o vale encantado virou vale das sombras. A desconfiança com o futuro é constante. Após ter pais e avós levados pela enxurrada, Ciro verbaliza o estado de espírito da população.
"Como se sentir em segurança se a enchente não poupa nem os mortos."
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