Exército diz que soldado se suicidou em quartel, mas pais e OAB contestam
O soldado do Exército Brasileiro Vitor Santos de Sá Regalo, 19, morreu com um tiro na cabeça no pátio do 5º Cgeo (Centro de Geoinformação), no centro do Rio, em 30 de julho.
Segundo o Exército, Regalo teve um surto após brigar com a namorada por telefone, roubou a arma de um superior hierárquico, correu cerca de 15 metros, municiou a pistola e atirou contra a própria cabeça.
A namorada nega a discussão e os pais afirmam que o soldado não apresentava nenhum indício de querer se matar.
Eles suspeitam que o rapaz tenha sido vítima de um homicídio dentro do quartel e citam um desentendimento do jovem com o próprio dono da arma usada, um mês antes da morte.
Essa também é a hipótese defendida pela Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro), que auxilia juridicamente os pais de Regalo.
Em nota, a Seção de Comunicação Social do CML (Comando Militar do Leste) informou que o inquérito policial militar encontra-se em segredo de Justiça e que a investigação está sendo conduzida "considerando os protocolos" dentro dos prazos legais estabelecidos pela Justiça Militar.
De quem era a arma
O UOL teve acesso ao inquérito, aberto um dia depois da morte e que está em andamento sob sigilo.
Ele foi instaurado pelo chefe do 5º Cgeo, o coronel Alexandre Coutinho, que encarregou o capitão Marcelo de Andrade como responsável da investigação.
Conforme a documentação, a arma utilizada na morte de Regalo era do comandante do GDA (Grupo de Defesa Aérea), o terceiro-sargento Yago Proença Gonçalves, 25.
O sargento Proença afirmou em depoimento que, na data, por volta de 16h55, estava em sua sala no quartel com dois soldados, sendo um deles Regalo, quando disse ter sido "surpreendido" pelo rapaz.
Regalo teria puxado a arma -- uma pistola Imbel 9 milímetros -- do seu coldre e corrido para o pátio.
O comandante disse que tentou correr atrás do soldado para tentar agarrá-lo, inclusive caindo e se machucando, mas não conseguiu alcançá-lo.
Ainda segundo a versão de Proença, Regalo "carregou o armamento e efetuou um disparo contra a própria cabeça".
A pistola foi levada para perícia do BPE (Batalhão de Polícia do Exército) juntamente de um carregador, uma munição deflagrada e seis munições restantes.
O laudo necroscópico indicou que o tiro foi feito da esquerda para a direita, com a bala atingindo inicialmente a parte de trás da cabeça, pouco acima e atrás da orelha.
O exame também mostrou que o disparo foi feito com a pistola encostada na pele do soldado.
Em 1º de agosto, foi enviada ao encarregado da investigação uma lista com 20 militares que poderiam testemunhar — entre eles, 17 soldados, um terceiro-sargento, um segundo-sargento e um primeiro-tenente.
Parte dos militares disse nos depoimentos que, pouco antes de o soldado morrer, ele havia brigado com a namorada por telefone. Os que afirmaram ter visto a ação corroboraram a versão de suicídio.
A reportagem entrou em contato com o advogado do sargento Proença, Wagner Silva Gonçalves Montes, em 16 de outubro.
Por meio de nota, o advogado disse que "a investigação tramita em segredo de Justiça, logo, não nos é permitido comentários acerca dos autos do inquérito; no entanto, podemos asseverar que tais eventos nunca ocorreram".
Soldado brigou com sargento, diz pai
O soldado Regalo era filho da profissional de limpeza Letícia Maria dos Santos e do funcionário de um call center Diego Rezende de Sá Regalo.
Os pais do militar afirmam estar desolados desde a morte do soldado.
"Os jovens são obrigados, quando completam 18 anos, a servir ao Exército, mas não botam no contrato, também, que o Exército pode tirar a vida da pessoa. Eles não têm competência alguma para lidar com as vidas dos jovens que estão nas mãos deles", afirma Letícia.
Ele não estava ali por obrigação, não. Ele falava: 'mãe, eu vou ser teu orgulho. Mãe, eu ainda vou fazer a senhora muito feliz'. E me arrancaram isso. Letícia Maria dos Santos mãe de Vitor
O pai de Vitor afirma que estava muito feliz após o filho conseguir ingressar no quartel. "O sonho dele era ser militar, seja no Exército, Marinha ou Aeronáutica. E esse sonho se tornou pesadelo."
Querem 'entubar' para a gente que meu filho se suicidou. A conta não fecha. O que ocorreu foi um assassinato que o Exército está tentando acobertar. Diego Rezende de Sá Regalo pai de Vitor
Em depoimento ao Exército, o pai afirmou ao encarregado da investigação que o filho se queixou com a família, cerca de um mês antes da morte, de um "desentendimento" com o sargento Proença durante uma partida de futebol no Aterro do Flamengo, zona sul da cidade.
Relatou, também, que mensagens de WhatsApp enviadas e recebidas por Regalo no dia da morte foram apagadas do celular do soldado.
Afirmou ainda que todas as fotos postadas pelo jovem no Instagram foram apagadas da própria rede social no mesmo dia.
Diego informou ao Exército que a conta do jovem no Instagram permaneceu online até 13h30 do dia subsequente ao da morte.
A suspeita dos familiares foi reforçada durante o sepultamento em 1º de agosto, no cemitério de Irajá. Havia marcas roxas em diferentes partes do rosto do soldado.
"Quem se mata não se espanca do jeito que meu filho estava, com nariz machucado, boca machucada, rosto todo arranhado", diz a mãe do soldado.
A reportagem teve acesso a fotos registradas no sepultamento. É possível observar nas imagens marcas roxas nas bochechas e na testa do militar.
O laudo necroscópico também documentou os hematomas em diferentes partes do rosto de Regalo. O documento encontrou anormalidades no queixo, olhos e nariz, além de na testa e na bochecha.
"Tentaram impedir a gente de fazer o reconhecimento do corpo. Chegamos às 8h e, com muito custo, conseguimos fazer às 17h. Ali, vi o rosto do meu filho todo machucado. Ele foi agredido, machucado e assassinado", afirma o pai.
Demora na investigação
A morte de Regalo foi inicialmente transcrita, ainda em 30 de julho de 2024, como "roubo de arma de fogo seguido de evento morte dentro do quartel".
Letícia Maria dos Santos, mãe de Vitor, diz que soube da morte do filho por telefone.
"Quando cheguei, falaram que ele tinha se matado, mas não tinha como, porque a gente estava comemorando que a minha filha tinha saído de quatro cirurgias e ele estava super feliz que ele ia ser padrinho do sobrinho", diz.
Quem acompanha a família é Paulo Henrique Lima, o procurador-geral da Comissão de Direitos Humanos da OAB e professor da faculdade de Direito da UFF (Universidade Federal Fluminense).
"Toda a situação gerou um desgaste muito grande para os familiares, que estão fragilizados, mas querem uma resposta concreta sobre o que aconteceu", diz o advogado.
Após pedido da OAB para ter acesso aos laudos, o Exército informou, em 4 de setembro, que ainda não tinha sido possível realizar as análises residuográficas da arma de fogo.
O pedido de análise residuográfica foi, então, remetido à Polícia Federal, mas o UOL não conseguiu confirmar se os resultados já saíram.
A juíza federal Marina Queiroz Aquino, da 1ª auditoria CJM (Circunscrição Judiciária Militar), determinou a quebra do sigilo telefônico e telemático de Regalo para ter acesso às mensagens, áudios e fotos.
"A gente queria ser amparado pelo Exército de outra forma, mais compreensiva. Não tivemos nada. Nenhum auxílio do quartel. Não tivemos nenhum apoio psicológico ou psiquiátrico", diz o pai do militar.
Para cremar, custos cobertos
A Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ pediu ao Exército a restituição dos bens do soldado Regalo periciados e o ressarcimento das despesas funerárias, que totalizaram R$ 6.900.
Segundo a família, o Exército ofereceu a cremação do corpo, mas a família não aceitou para garantir futura exumação, caso necessário, e precisou arcar com os custos.
"A gente entende isso como uma forma de o Exército querer ludibriar e ocultar provas contra eles", afirma o pai do soldado.
Os familiares disseram que o Exército disse que não pagaria pelo sepultamento e enterro, mas que poderiam ressarci-los depois de 30 dias.
A devolução do dinheiro só aconteceu três meses depois.
Me deixaram às cegas. No enterro, não deixaram os amigos do quartel irem ao velório. Meninos faltaram no trabalho para poder ver meu filho. Foi um descaso total. Letícia Maria dos Santos mãe de Vitor
Posicionamento do Exército
A reportagem pediu posicionamentos sobre a morte do soldado Regalo ao Centro de Comunicação do Exército em 16 de outubro.
O setor repassou a demanda, na mesma data, para a Seção de Comunicação Social do CML.
O comando diz que mantém seu "compromisso com a transparência e informa que está à disposição para colaborar plenamente com as autoridades competentes, visando elucidar os fatos em questão".
Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade.
O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por email, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.
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