Máfia italiana Cosa Nostra usou PM para matar desafeto no Brasil
A máfia italiana Cosa Nostra contratou um PM da ativa para matar um ex-policial italiano que ameaçava atrapalhar os negócios de falsificação de registros de imóvel e lavagem de dinheiro da máfia siciliana no Brasil.
Enzo Albanese foi morto a tiros há dez anos, em frente à sua casa em Natal (RN), por ordem de Pietro Ladogana, um operador da Cosa Nostra, segundo denúncia do MP-RN (Ministério Público do Rio Grande do Norte).
Ladogana operava um esquema de lavagem de dinheiro da máfia no Brasil que somente agora, dez anos depois, foi desbaratado por uma operação conjunta de autoridades brasileiras e italianas.
Condenado por homicídio, ele cumpre pena de 14 anos de reclusão. O autor dos disparos, o PM Alexandre Douglas Ferreira, escapou do julgamento.
A trama que resultou na morte de Albanese começa com a decisão do "capo" Giuseppe Calvaruso de lavar parte do dinheiro sujo obtido da Cosa Nostra no Brasil.
O esquema pode ter movimentado R$ 300 milhões em cidades litorâneas do Rio Grande Norte e da Paraíba, indica o Ministério Público Federal.
Conexões sicilianas
Giuseppe Calvaruso é ligado a Giovanni Motisi, um assassino da máfia siciliana que consta na lista dos mais procurados pela Interpol desde 1998.
Calvaruso tinha conexões diretas também com o lendário Salvatore "Totò" Riina, o "chefe dos chefes" da Cosa Nostra.
Morto no cárcere em Parma em novembro de 2017, aos 87 anos, Totò Riina foi responsável pelo assassinato de mais de 150 pessoas, segundo a Justiça italiana.
Após uma série de operações em Palermo, na região da Sicília, que resultou na prisão de vários membros da organização, Calvaruso assumiu a gestão do clã Pagliarelli, conforme a polícia italiana.
Calvaruso, que já havia cumprido pena em duas ocasiões, tinha um parceiro no Brasil, o compatriota Pietro Ladogana, que morava em Natal há alguns anos.
A partir de 2009, Ladogana passou a realizar uma série de investimentos imobiliários em cidades litorâneas do Rio Grande do Norte, como Extremoz e Ielmo Marinho. O dinheiro vinha dos lucros ilegais da Cosa Nostra.
"Pietro Ladogana comandava um grande esquema de falsificação de registro de imóveis no Brasil (...), contando com o apoio do policial militar Alexandre Douglas, o qual participava dos atos de intimidação contra pessoas que se julgavam prejudicadas pelas fraudes praticadas pelo grupo criminoso", afirma o MP-RN.
Ladogana criou três empresas de fachada e buscou sócios italianos que não tivessem relação com a máfia.
Dois deles eram representados no Brasil pelo ex-policial italiano Enzo Albanese.
Participação de PMs
O esquema consistia em construir grandes empreendimentos imobiliários com uso de grilagem de terras. Ladogana subornava funcionários de cartórios de registros de imóveis, além de servidores e secretários de prefeituras da região.
Policiais militares foram contratados por Ladogana para destruir casas e expulsar moradores de locais de interesse da máfia, mostra uma investigação da Polícia Civil do Rio Grande do Norte.
Um PM afirmou em depoimento que lhe foram oferecidos R$ 5.000 mensais para agir como capanga do esquema.
No começo de 2014, Albanese passou a desconfiar que Ladogana roubava seus sócios italianos em benefício da Cosa Nostra.
Investigou por conta própria, encontrou documentos com indícios consistentes de fraudes e confrontou Ladogana.
"Se você mexer com a merda vai feder ainda mais e o responsável é você. Nós não vamos perder dinheiro", foi a resposta de Ladogana, em 21 de março de 2014, na saída de um supermercado em Natal.
Ao lado do PM Alexandre Douglas Ferreira, que empunhava uma pistola calibre 9 milímetros, Ladogana havia ameaçado Albanese, que registrou uma queixa na polícia.
Não adiantou. Em 2 de maio de 2014, Enzo Albanese foi morto na porta de casa, alvejado por sete tiros de 9 milímetros.
O Ministério Público do Rio Grande do Norte denunciou Ladogana como mandante do crime e o PM Ferreira como autor dos disparos.
Ladogana cumpre pena no presídio de Alcaçuz (RN) e só foi preso preventivamente em 2019.
De acordo com o MP-RN, o policial militar conseguiu suspender o processo "em razão de um incidente de insanidade mental".
O caso também foi julgado na Itália, mas lá Ladogana foi absolvido por falta de provas.
Mafioso nega envolvimento no caso
O advogado de Ladogana nega atuação de seu cliente com a máfia italiana.
"Pietro não faz, nem nunca fez parte de qualquer envolvimento com a máfia italiana, sendo as acusações infundadas."
A defesa nega também que ele tenha sido o mandante do assassinato de Albanese.
"Pietro Ladogana continua afirmando que se encontra preso injustamente por este homicídio, tendo em vista que foi absolvido pela Corte italiana."
O Comando da Polícia Militar do Rio Grande do Norte afirmou que o PM Ferreira foi reformado (aposentadoria) no ano de 2020. A corporação não comentou sobre as acusações que pesavam contra o agente.
Procurada, a advogada que defendeu Ferreira durante o processo por homicídio na Justiça do Rio Grande do Norte afirmou que não defende mais o policial militar e se negou a responder perguntas sobre o caso.
Na ação judicial, o PM afirmou ser inocente.
Esquema continuou sem Ladogana
Com Ladogana fora de ação, Giuseppe Calvaruso precisava de alguém para assumir os negócios no Brasil. Ele recorreu a um xará, Giuseppe Bruno.
O pai de Giuseppe Bruno era um empresário associado à máfia siciliana, de acordo com investigadores italianos.
Bruno expandiu a operação iniciada por Ladogana, de acordo com a investigação.
Mais empresas de fachada foram criadas. Uma na área da construção, outra de registros de imóveis e até uma pizzaria localizada em uma região rica da capital potiguar registrada em nome de uma mulher que tinha um relacionamento com Bruno.
Calvaruso morou em Natal, entre os anos de 2019 e 2021. A PF encontrou fotos dele visitando imóveis na Paraíba e no Rio Grande do Norte.
Em uma das viagens de volta a Palermo, ele foi preso novamente em 4 de abril de 2021, e cumpre pena de 16 anos por associação criminosa.
"Ele encontra-se atualmente preso no Presídio de Spoleto, localizado na província de Perúgia, na Itália, sob regime rigoroso devido à sua periculosidade e sua liderança sob a máfia internacional", afirma a Procuradoria da República no Rio Grande do Norte.
Com os dados encontrados no celular de Calvaruso e outras provas, a Itália pediu cooperação brasileira para investigar seus crimes cometidos aqui.
O resultado foi a Operação Arancia, que resultou na prisão de Giuseppe Bruno, no último dia 13 de agosto. Outras quatro pessoas ligadas ao esquema foram presas em outubro.