Exclusivo
Nas Ruas

Damares Alves usou fake news para beneficiar igrejas evangélicas no Marajó

*Esta série de reportagens foi feita com apoio do Pulitzer Center Rainforest Reporting Grant

A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) vai liderar neste mês uma comitiva de parlamentares ao Marajó (PA). Segundo a assessoria de imprensa da senadora, o objetivo é "constatar, com os próprios olhos", situações de exploração sexual de crianças e adolescentes.

Não é a primeira vez que Damares se dedica ao assunto.

O UOL apurou que um programa de Damares, criado sob a justificativa de combater supostas violações de direitos humanos e acusações nunca provadas de exploração sexual, acabou por abrir brechas para grilagem de terras e benefícios a igrejas evangélicas.

Ela implementou o programa Abrace o Marajó, em 2020, durante sua gestão à frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro (PL).

O UOL apurou que, durante o projeto, ocorreram irregularidades ligadas às terras do arquipélago, cobiçadas pelo potencial para o agronegócio e para o mercado de crédito de carbono.

Segundo a então ministra, o objetivo do Abrace o Marajó era tornar o local "mais próspero e desenvolvido", inclusive para combater a exploração e a violência sexual contra crianças e adolescentes.

Os supostos abusos eram frequentemente abordados por Damares, mas, apesar do investimento inicial previsto de R$ 1 bilhão, nenhuma ação efetiva contra violência sexual foi tomada.

Em vez disso, o Abrace o Marajó incluiu, entre 2020 e 2022, iniciativas de regularização fundiária entre suas atribuições —foi a primeira vez que a pasta puxou para si essa responsabilidade.

Continua após a publicidade

Durante o programa, foram emitidos mais de 400 TAUS e autorizados 50 milhões de m2 para uso sustentável de populações tradicionais.

O TAUS (Termo de Autorização de Uso Sustentável) é o documento que autoriza o uso de terras da União.

Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a área regularizada durante a gestão de Damares no ministério é muito fora da curva.

Baseado em dados inéditos obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação), o UOL constatou que o tamanho médio de um terreno no Abrace o Marajó (174 mil m2) teve um aumento de 132% em relação ao tamanho médio registrado em 2013 (75 mil m2), ano do recorde de emissões de TAUS no arquipélago.

Bagre e Oeiras do Pará são as cidades com o maior número de emissões e as maiores áreas autorizadas durante o programa, com direito a TAUS com centenas de hectares.

"Nunca vi TAUS de 3 milhões de metros quadrados", disse ao UOL o antropólogo Marcos Trindade, da chefia do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) no Pará, sobre a dimensão de um terreno em Bagre.

Continua após a publicidade

A lei diz que a autorização vale para um raio de até 500 metros da casa do requerente (um ribeirinho, no caso do Marajó).

A reportagem apurou que beneficiários desses TAUS não tinham ideia das áreas gigantes que lhes foram atribuídas.

O tamanho dessas áreas surpreendeu o governo Lula (PT), que revelou ter visto "forte indício de irregularidades" nas emissões do Abrace o Marajó ao anunciar o fim do programa, em setembro de 2023.

"A emissão excessiva levou órgãos do sistema de Justiça a monitorar a situação, em razão de indicativo de fraude", informou o Ministério de Direitos Humanos em março de 2024.

O UOL apurou outras irregularidades e conflitos de interesses na operação:

  • Foram construídos templos da Assembleia de Deus em 2 áreas autorizadas como TAUS e visitadas pela reportagem em Bagre;
  • TAUS foram emitidos em Bagre apesar de não haver registro de ações de regularização fundiária, segundo o Ministério da Gestão;
  • Reuniões de regularização fundiária ocorreram em 3 templos da Assembleia de Deus em Oeiras;
  • TAUS foram emitidos em Oeiras apesar de suspensão por ordem do Ministério da Economia;
  • Profissionais dos principais órgãos de regularização fundiária dizem que não participaram e não tiveram acesso aos documentos do Abrace o Marajó;
  • Organizações da sociedade civil dizem que foram preteridas no Abrace o Marajó, que priorizou lideranças evangélicas e do agronegócio;
  • Biotec Amazônia, uma das empresas parceiras do Abrace o Marajó, tem no conselho um primo de Damares Alves, Paulo Bengtson, que também é pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular.
Continua após a publicidade
Damares Alves (Republicanos-DF) discursa sobre Marajó no Senado
Damares Alves (Republicanos-DF) discursa sobre Marajó no Senado Imagem: Roque de Sá/Agência Senado

A senadora tem um histórico de denúncias sem provas sobre a região. Quando ministra, ela afirmou que meninas do arquipélago seriam sexualmente exploradas porque não usam calcinhas e teriam os dentes arrancados "para não morderem na hora do sexo oral".

A declaração provocou reações. O MPF (Ministério Público Federal) está processando a senadora por fake news e pede uma indenização de R$ 5 milhões.

Damares deve voltar ao arquipélago no dia 22 de maio, acompanhada de uma comissão de parlamentares, "para constatar, com os próprios olhos, todas as situações denunciadas pelos moradores nas últimas décadas, sem que qualquer órgão, mesmo o que hoje processa a senadora, tivesse tomado qualquer providência de fato", informou sua assessoria de imprensa.

Ela estendeu o convite para a viagem ao Ministério da Justiça e ao Ministério dos Direitos Humanos do governo Lula, mas não obteve resposta, afirmou sua assessoria de imprensa.

Procurada pelo UOL, Damares afirmou que o Abrace o Marajó era "descentralizado", que providências relacionadas aos TAUS foram tomadas pela SPU (Secretaria do Patrimônio da União) sem sua ingerência e que não teve participação na escolha da empresa Biotec Amazônia (confira a nota na íntegra).

Continua após a publicidade

"Quem critica o Abrace o Marajó o faz de maneira absolutamente ideológica, ou tem interesses políticos próprios", declarou.

Imagem
Imagem: Arte/UOL

'Onde o poder público não chega, a igreja chega'

Bagre (a 200 Km de Belém) é uma cidade de 30 mil habitantes com um dos piores IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do país. As maiores áreas autorizadas durante o Abrace o Marajó estão lá.

Edno Dias, pastor da Assembleia de Deus e secretário de Agricultura local, foi quem visitou os ribeirinhos para fazer o cadastro dos TAUS.

"Onde o poder público não chega, a igreja chega", disse ele, referindo-se às dificuldades de acesso no arquipélago.

Continua após a publicidade

Antônio Martins, um dos ribeirinhos, foi beneficiado com uma área de 2,1 milhões de m2. O TAUS não cita a metragem.

Evangélico, Martins diz que "doou" um pedaço do terreno a pedido da igreja: hoje, há uma Assembleia de Deus ao lado de sua casa.

Jocival Assunção, outro ribeirinho, foi beneficiado com uma área de 3 milhões de m2. Ao lado de sua casa também há outra unidade da mesma igreja em terra "doada" pela sua família.

Foram transferências informais: as terras ainda pertencem à União e não podem ser cedidas.

Antônio Martins, morador de Bagre (PA)
Antônio Martins, morador de Bagre (PA) Imagem: Fabrício Venâncio/UOL

O UOL viu diversas igrejas nos rincões do arquipélago. Muitas estão associadas ao templo central da Assembleia de Deus, um edifício espelhado no centro de Bagre.

Continua após a publicidade

Fundada em 1991, a igreja ficou com o CNPJ inapto em agosto passado por omissão de declarações à Receita Federal.

Foi nesse templo que o prefeito reeleito Clebinho Rodrigues (PSD) e os 13 vereadores da cidade tomaram posse em janeiro deste ano.

Clebinho, conhecido como "Foguete", preside a Amam (Associação dos Municípios do Arquipélago do Marajó).

Ele havia concordado com uma entrevista presencial, mas desmarcou —a assessoria de imprensa disse que ele estava viajando.

Clebinho Rodrigues, prefeito de Bagre (PA), na cerimônia de posse na Assembleia de Deus
Clebinho Rodrigues, prefeito de Bagre (PA), na cerimônia de posse na Assembleia de Deus Imagem: Reprodução/Instagram

O UOL pediu, via LAI, os relatórios de viagens de ações de regularização fundiária em Bagre entre 2019 e 2022.

Continua após a publicidade

O MGI (Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos), que controla a SPU, responsável pelas emissões, respondeu que não há registro porque "não houve ação" no município nesse período —o que indica uma irregularidade, já que os termos foram emitidos.

Imagem
Imagem: Arte/UOL

Atalhos inéditos

Ao lado de Bagre fica Oeiras do Pará, cidade de 30 mil habitantes que teve 160 TAUS emitidos com uma única coordenada geográfica, segundo dados obtidos via LAI. Foi um erro.

O UOL teve acesso a documentos internos e descobriu as geolocalizações corretas e os processos desses TAUS.

Os termos nem poderiam ter sido emitidos: em fevereiro de 2022, o governo federal determinou a suspensão dos processos porque o perímetro dos TAUS coincidia com assentamentos para reforma agrária.

Continua após a publicidade

À frente da SPU no Pará na época, o superintendente Flávio Augusto Ferreira (União Brasil) foi candidato a deputado estadual nas eleições de 2022.

Procurado, Ferreira não respondeu à reportagem. O espaço está aberto caso queira se manifestar.

Oeiras só foi incorporada ao arquipélago (e, portanto, ao programa Abrace o Marajó) em janeiro de 2022, graças a uma articulação da prefeita Gilma Ribeiro (PP).

Ela também havia concordado com uma entrevista presencial, mas desmarcou. A assessoria não respondeu aos novos pedidos.

A advogada Patrícia Menezes, coordenadora-geral da Amazônia Legal na SPU entre 2009 e 2013, diz que "é preciso apurar o uso irregular instrumentos de destinação do patrimônio público federal no governo Bolsonaro, sobretudo corrompendo programas de regularização fundiária de interesse social".

"TAUS é um instrumento reconhecido e premiado de inclusão socioterritorial na Amazônia, que beneficiou cerca de 60 mil famílias, com o reconhecimento territorial e a inclusão no mapa das políticas públicas de combate a miséria e promoção da economia verde popular ribeirinha que cuida das florestas e águas da Amazônia", afirma.

Continua após a publicidade

Utilizar TAUS para implantar igrejas evangélicas no Marajó é absolutamente irregular, e deve ser apurado considerando os riscos de improbidade administrativa na gestão do patrimônio público federal e sua combinação com crimes eleitorais de desvio de finalidade na utilização de instrumento de destinação do patrimônio da União

Patrícia Menezes, advogada, coordenadora-geral da Amazônia Legal na SPU entre 2009 e 2013

Procurado, o MGI diz que iniciará uma apuração para conferir a emissão dos TAUS no período e nas localidades indicadas pela reportagem. Segundo a pasta, a SPU vai avaliar caso a caso.

Imagem
Imagem: Arte/UOL

Por que o Marajó

Especialistas dizem que a concessão dos TAUS foi distorcida no Abrace o Marajó.

Continua após a publicidade

Os TAUS foram idealizados no governo Lula 1, entre 2004 e 2008, para cadastrar populações vulneráveis vivendo longe dos centros urbanos e de políticas públicas.

"Era como dizer: 'Governo, eu existo, eu estou aqui'", diz o técnico Carlos Augusto Pantoja Ramos, colaborador da Fetagri (Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares) do Marajó.

Mas os TAUS do programa serviram, segundo especialistas, para deixar os territórios ao alcance do agronegócio.

"A sociedade civil foi deixada de fora", critica Luti Guedes, fundador do Observatório do Marajó.

Os TAUS de Bagre, por exemplo, foram emitidos em 2022. Depois, em 2024, foi registrada uma fazenda de 33 mil hectares (330 milhões de m2) englobando áreas onde vivem ribeirinhos.

Uma engenheira civil de Brasília registrou um CAR (cadastro ambiental rural) dessa fazenda para um empresário de Goiânia. Ribeirinhos dizem desconhecer a fazenda.

Continua após a publicidade
Antônio Mirail, do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Bagre (PA)
Antônio Mirail, do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Bagre (PA) Imagem: Fabrício Venâncio/UOL

Disputas de terra acontecem há muito tempo no Marajó. Famílias são ameaçadas de expulsão por capangas, que dizem que o CAR vale mais que o TAUS (o que não é verdade).

Antônio Mirail, atual presidente do STTR (Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais) de Bagre, diz que muitas vezes os ribeirinhos não conseguem ajuda a tempo devido ao isolamento geográfico.

Ronaldo Coelho, do Incra, conta que ficou surpreso com o alto número de reivindicações por áreas onde vivem famílias beneficiárias da reforma agrária. "Tinha família chorando, dizendo: 'Doutor, nasci aqui. Incra, me defende'", relata.

"Eu me senti na época do descobrimento do Brasil. De Pedro Álvares Cabral, que chegou aqui e disse 'essa terra é minha', e os índios tiveram de sair."

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.