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Bernardo Machado

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Corte de gastos na Educação: que língua estamos falando no Brasil de 2021?

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Colunista do UOL

04/04/2021 04h00

Enquanto o governo Bolsonaro realiza uma dança das cadeiras ministeriais e fomenta crises com militares, a Educação segue como peça coadjuvante em sua lista de prioridades — ou, ao menos, baila longe dos holofotes. Na semana em que o golpe militar completa 57 anos, a educação deveria estar no centro do palco, não nos bastidores.

Nos últimos meses, por exemplo, constatamos, com pouco alarde, que o MEC teve o menor orçamento para a educação básica da década. Em fevereiro, o ministério lançou um edital para compra de livros didáticos em que retirava como critério de exclusão a veiculação de estereótipos e preconceitos de diversos tipos que comprometessem o respeito à agenda da não-violência contra as mulheres, à diversidade étnico racial e a temática de gênero igualitária. No início de março, por sua vez, Sandra Ramos assumiu a coordenadoria dos materiais didáticos do MEC. Simpática ao Escola sem Partido, ela defende da retirada de toda menção às culturas africanas e indígenas da Base Curricular Nacional.

Num momento em que há disputas narrativas variadas — e o presidente quer se eximir da responsabilidade na condução da pandemia, vale salientar as omissões do governo no que toca a Educação.

Tomemos o ensino de línguas como foco para debate: as ações do executivo têm sido negligentes, quando não problemáticas. "O que nos deixa preocupados, no que diz respeito às políticas adotadas pelo governo atual, é a ausência de diálogo com pesquisadoras e pesquisadores da área", explica a presidente da ALAB (Associação de Linguística Aplicada do Brasil), Claudiana Alencar.

As diretrizes para a oferta de ensino de línguas no Brasil, aprovadas em 2020, têm como objetivo separar a escola bilíngue da escola não bilíngue. Para isso, estipulou uma série de normativas para cada instituição ter o direito de se intitular como bilíngue. "É um documento que traz o percentual de aulas que devem ser ministradas na língua, mas a gente não sabe exatamente a fundamentação teórica das prescrições. Não foi uma diretriz escrita em parceria com pesquisadores do tema.", avalia Antonieta Heyden Megale, pesquisadora de referência da área. Além da ausência de verbas para a Educação, profissionais da área destacam a falta de diálogo entre Poder Público e a sociedade civil, particularmente com quem faz pesquisa.

A atenção de especialistas em educação de línguas foi capturada ainda por outra notícia. Em fevereiro de 2021, o deputado federal Aelton Freitas (PL/MG) apresentou ao ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, o denominado Programa Nacional de Certificação Bilíngue. A metodologia, segundo preconizado, reduziria o tempo de aprendizado de outro idioma utilizando um algoritmo adaptado para o ensino do inglês.

Embora as informações sobre o projeto sejam escassas, levantaram desconfiança. "Do que se trata esse programa?", perguntou Alencar, afinal "Os linguistas, os pesquisadores da área, não foram chamados para conversar sobre isso". O próprio princípio que sustenta a metodologia despertou críticas: "A visão que aparece nessa proposta é uma compreensão da língua como código, uma visão mecanicista de língua, como se ela fosse apenas aquisição de palavras ou frases", completa a pesquisadora.

Ao contrário dos pressupostos da proposta, a educação linguística pode ser compreendida como um processo maior do que o aprendizado de uma gramática, explica Megale: "A língua tem como finalidade a ampliação da participação do sujeito no mundo. Por meio da outra língua, a pessoa pode acessar discursos diversos". Segundo essa perspectiva, o aprendizado de outro idioma não deve ser encarado como mera dimensão utilitária, mas como possibilidade para "dialogar com outras representações de mundo, outras perspectivas narrativas, novos discursos, e, assim, revisitar suas próprias representações do que é ser mulher, do que é ser criança e afins", completa. Nessa direção, Alencar acrescenta: "Uma língua nos acrescenta não apenas o aspecto linguístico em si — a dimensão verbal, os signos ou uma sintaxe — mas também formas de sociabilidade e vivências culturais. A língua não pode ser considerada somente como um sistema de signos, mas como prática social".

Nesse sentido, especialistas defendem ampliar o ensino de idiomas para além do inglês. "Desde o advento da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) em 2018, o que temos é a imposição do inglês como a língua que deve ser contemplada como disciplina nas escolas", aponta Megale. "Anteriormente, tínhamos a possibilidade de escolher um idioma, mas BNCC traz o inglês como obrigatório". Sem demérito do anglo-saxão, o resultado corresponde à ausência de incentivo ao ensino de outras línguas já existentes no Brasil — como as línguas indígenas, de matriz africana e mesmo a língua predominante na macro-região em que o país se encontra, o espanhol.

"O Brasil é um país plurilíngue, embora essa realidade tenha sido ignorada", avalia Alencar. "É necessário que haja um respeito às culturas afro-diaspóricas e à cultura dos povos indígenas. A Constituição de 1988 reconhece essa realidade multilíngue. Portanto, as políticas públicas devem considerar os povos que nos constituíram".

Em um momento no qual faltam palavras e expressões para descrever o caos brasileiro, o aprendizado de diversas línguas — bem como seu universo simbólico — poderia nos permitir ampliar nossa sensibilidade, nossos referenciais e promover uma imaginação social mais criativa. Ao invés de dizimar as línguas ou escondê-las, seria necessário ensiná-las com sua riqueza e potencialidade.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL