Topo

Bernardo Machado

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

'Doentes de Brasil'? Como dar nome a tudo isso que estamos vivendo em 2021

Colunista do UOL

16/04/2021 04h00

Presenciar um momento histórico cansa. Em parte, porque as condições materiais de sobrevivência são escassas e desigualmente distribuídas e, em parte, falta vocabulário capaz de oferecer sentido para o que nos atordoa. É difícil captar os sentimentos que atravessam o cotidiano, não apenas porque são muitos e variados — exatamente pela nossa desigualdade intrínseca — mas também por estarem emaranhados. Mesmo assim, considero fundamental nomear as experiências. As palavras, os conceitos e as teorias conferem uma espécie de bússola de navegação apta a nos orientar pelo desconhecido, uma espécie de piso que pavimenta a compreensão.

Nesta semana, o canal Porta dos Fundos publicou um vídeo denominado "Doente de Brasil". Gregório Duvivier e Rafael Infante encenam uma consulta médica. O paciente relata enjoo, dores de cabeça e taquicardia para um profissional que, intrigado, pergunta: "Você teve contato, em algum momento do seu dia, com a realidade?". Após a resposta afirmativa, há a confirmação do diagnóstico. "Você contraiu Brasil de 2021. Uma variante um pouco pior do Brasil de 2020". Diante da estupefação do paciente, Duvivier de jaleco explica que "não adianta nada fazer isolamento social, ficar em casa para não pegar covid e entrar em contato com a realidade. Acaba pegando coisa muito pior. Como, por exemplo, a percepção de que seu país está fadado ao subdesenvolvimento e ao caos social". Para diminuir a crise, a receita consistiria num "pacote alienação" composto por celular sem redes sociais e novela antiga. Para a cura, restaria o impeachment.

Com mais de 518 mil visualizações até o momento, o vídeo circula nas redes. Constatar que o Brasil é o pior país para se estar em 2021, com o maior índice de mortes no mundo durante a pior pandemia do século, gera um misto de emoções que o vídeo sinaliza. Rafael Infante faz um paciente tenso, com risos nervosos, indicando uma ambiguidade atmosférica atual, num misto de humor, descrença e ansiedade.

A expressão "doente de Brasil" deseja captar uma experiência social e nomear o fenômeno enfrentado. Curiosamente, nos últimos tempos, tenho ouvido também o termo "isso é Brasil". Tal expressão, e suas variações — "é... Brasil, né?" ou "só no Brasil mesmo" —, geralmente consta no fim de uma conversa e opera como uma espécie de síntese (quase auto evidente) do que se quer explicar.

O uso aparece em variados ambientes: entre familiares, nas conversas em filas do mercado e nas postagens em distintas redes sociais. Quem enuncia assume que seus interlocutores compreendem a alusão, ainda que cada pessoa possa completar o "não dito" ao seu próprio gosto — "isso é Brasil" pode ser sinônimo de "é a corrupção", "é o governo", "é a indiferença social", ou ainda, "é a mistura das muitas coisas que constituem o país".

No atual naufrágio pandêmico, o emprego disseminado desses termos indica, de um lado, a necessidade de dar conta do que ainda está em processo de nominação e compreensão, e, de outro, evidencia a conclusão crítica ao país, como epítome do problema.

Já nas redes sociais, espraia a expressão "negacionismo esclarecido". Ele nomeia o conjunto de pessoas que acredita na ciência, nos procedimentos de prevenção, mas cria justificativas racionais para realizar ações que não estão de acordo com as orientações sanitárias. Não se trata de apontar o dedo para ninguém, mas destacar os muitos fenômenos que nos acometem.

Diante da dificuldade de nomearmos o que ocorre — haja vista os boicotes para construir uma narrativa comum sobre o fenômeno — ensaiamos alternativas. De um lado, a categoria "isto é Brasil" produz uma teoria que sintetiza a história do país, suas mazelas de desigualdade. Uma versão levemente conformada de um fenômeno antevisto, como se no Brasil, a desgraça não trouxesse surpresa. Já vídeos como "Doente de Brasil" fazem um diagnóstico sobre o emaranhado de emoções presentes — a ansiedade e a dificuldade de navegar pelas notícias. E a categoria "negacionismo esclarecido" procura descrever uma postura ambígua, repleta de nuances, do que estamos vivendo.

Considero esses experimentos parte de um movimento espontâneo, social, sem uma direção definida, como o esforço para criar um vocabulário capaz de superar nossa condição de estrangeiros do agora. A título de rascunho, podemos salientar as ambivalências que enfrentamos.

Por exemplo, parece pairar uma "culpa pandêmica", ou seja, o remorso persistente em todos os atos: o arrependimento em deixar as crianças na escola, em encontrar parentes e amizades. Pode existir uma espécie de "impaciência resiliente". Se a resiliência diz respeito à propriedade de retornar à forma original (a capacidade de se adaptar ou superar os choques e deformações) a "impaciência resiliente" trataria da constante irritação em relação aos descalabros do governo federal, mas que custa para se materializar em atos concretos. Portanto, uma impaciência que muda para se acomodar em ser impaciente.

Ao ampliarmos nosso léxico e nossas análises, poderemos edificar caminhos possíveis para nossas angústias sociais e nossas responsabilidades políticas. Após mais de um ano de pandemia, com problemas sanitários severos, no pior momento do Brasil, é preciso alguma esperança na fabricação de termos capazes de nos oferecer espaço de reflexão e, também, de ação.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL