Topo

Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Porchat: 'Sou atacado por não ser Lula nem Bolsonaro'

Fabio Porchat apresenta espetáculo em Aveiro (Portugal) - Daniela Pinheiro/UOL
Fabio Porchat apresenta espetáculo em Aveiro (Portugal) Imagem: Daniela Pinheiro/UOL

Colunista do TAB

26/02/2022 04h01

Esta é parte da versão online da edição de sexta-feira (25) da newsletter de Daniela Pinheiro. Para assinar o boletim e ter acesso ao conteúdo completo, clique aqui.

É com um pé em Portugal e outro no Brasil (e no mundo!), de olho nos patrícios e nos locais, que irei tocar esta newsletter. Ela não terá só reportagens ou crônicas. Será mais que um relato frio e menos que um tratado de geopolítica. Vai tratar dos temas sérios, dos irrelevantes, dos espantosos, dos frívolos e dos essenciais. Não nessa ordem, não na mesma extensão, mas com igual galhardia, graça e gana de aprender. Boa leitura.

____

Porchat e a cultura do dedo na cara

Às 21h30 de um começo de fevereiro, a fila em frente ao teatro dobrava o quarteirão. Fazia 8ºC em Aveiro, no norte de Portugal, onde, dali a pouco, o humorista Fábio Porchat daria início a seu novo show - um monólogo sobre impressões de suas viagens pelo mundo. Até o final da temporada lusa, 18 mil pessoas, que terão pago 25 euros por cabeça, vão ter se esborrachado de rir com os disparates do comediante. O mesmo espetáculo estreia no Brasil em abril.

Porchat é famoso em Portugal sobretudo pelos quadros do "Porta dos Fundos", o mais bem-sucedido canal de humor do país, do qual é co-idealizador, roteirista e ator. A fama além-mar lhe rendeu um contrato para apresentar uma série a ser exibida pela emissora pública RTP, baseada no livro "Viagem a Portugal", de José Saramago, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. O humorista está percorrendo aldeias no interior, refazendo os passos do escritor, encontrando-se com pessoas que estiveram com ele, petiscando iguarias citadas no livro. Como passaria quase um mês viajando pelo país, contactou um produtor local para que encaixasse a turnê nos intervalos das gravações.

No camarim do teatro, Porchat falava sobre a cultura do cancelamento e o humor. "É mais difícil fazer humor hoje do que há 10 anos", disse. "A tensão e atenção estão maiores, as pessoas estão mais sensíveis e, com razão, passaram a reclamar das piadas preconceituosas."

Nos Estados Unidos, as piadas transfóbicas de David Chapelle provocaram demissões e afastamentos na Netflix. No Reino Unido, o comediante Jimmy Carr fez um chiste sobre "o lado bom" do Holocausto, que o colocou na prateleira dos agourentos.

"Uma piada pinçada de um contexto para ser publicada num jornal perde o seu significado", disse. Para ele, é evidente que Carr não defendia a matança de judeus e é preciso entender o "pacto" existente entre o humorista que está no palco e o público que pagou para ouvi-lo.

"É certo que a piada mudou", disse. E lembrou-se de algumas que costumava contar não faz muito tempo - sobre loiras, gays, negros - fazendo a família, os amigos, o público morrer de rir. "Os brancos, os não-gays, claro." Para ele, foi bom que esse tipo de anedota tenha caído em desuso "porque já deu". Falou-se sobre outros comediantes estrangeiros - Larry David, Ricky Gervais -, cujo repertório toca em temas melindrosos e cujas carreiras permanecem inabaladas. "São muito criticados, mas estão estabelecidos e o público deles espera exatamente o que eles entregam."

O efeito da iminência de um cancelamento era visível na comédia. "Está todo mundo pisando ovos com o humor", disse. Os filmes e as séries televisivas do gênero, por exemplo, haviam se tornado "mais bobas, mais ingênuas". "Se alguém quiser falar de racismo, hoje não vai fazer numa comédia, vai fazer num drama."

Perguntei se ele tinha medo de ser cancelado. "Alguma hora, todos nós vamos ser cancelados", respondeu. Segundo ele, há um clima de dedo na cara do outro, uma avidez de acusação. "Há 200 anos, as pessoas iam aos enforcamentos públicos com os filhos. O ser humano gosta de ver as pessoas queimando na fogueira, ver o outro se dar mal", afirmou. "A cultura do cancelamento também é isso: o exercício do pequeno poder de pequenas pessoas, que querem mostrar que podem acabar com a sua vida." E citou o influenciador digital Carlinhos Maia (22 milhões de seguidores na internet), que diz não ser cancelado porque "quem me cancela não me consome", como um bom exemplo de atitude mental em tempos de inquisição. "Se uma pessoa fala que o nazismo é bom, ela não tem que ser cancelada, ela tem que ser criminalizada, presa."

Com as barbas de molho, Porchat montou um espetáculo apolítico. Não há piadas de português (que era 90% do público). Nem de loira, nem de gays, nem negros. Quis saber se a atual conjuntura política brasileira não era uma boa inspiração. "Esse governo é todo risível, mas como estamos no meio do drama é difícil rir. No ano que vem, quando ele tiver saído, estiver preso, aí vamos poder rir com vontade", afirmou.

Porchat segue com lupa as redes sociais dos bolsonaristas. Lê tudo postado por Mário Frias, Damares Alves, pelas deputadas Bia Kicis, Carla Zambelli, pelos filhos do presidente. "É muito interessante até do ponto de vista antropológico: eles vivem em um mundo paralelo, ficam o tempo todo se adulando, acreditam que são incríveis, acham que tudo que fazem é bom, que cada um deles é especial", disse. Arrisquei uma piada perguntando se ele falava da esquerda. Ele não riu.

Antes do murchar do grupo no WhatsApp, desligou-se do Coala, a que os críticos se referiam como "grupo da esquerda festiva"- que tinha, até pouco tempo, integrantes como Felipe Neto, Paula Lavigne, Fernando Haddad, Fernanda Lima e Marcelo Adnet. Além da chateação de ter o celular apitando dezenas de vezes por dia devido à alta postagem do grupo, ele sentia que as águas não estavam mais navegáveis para ele. "Ali, se você fala uma coisinha um pouquinho diferente do resto, pumba! Já vem a bomba."

Ele tirou o casaco de inverno, abanou-se e continuou. "Sempre achei o Bolsonaro uma escória, mas também sou muito crítico ao PT. Eu falo: 'Gente, não podemos ficar cegos sobre a corrupção que houve, o mensalão, os tesoureiros do PT que foram presos'. E a resposta é sempre: 'Ah, mas é tudo mentira da imprensa, o PT fez um monte de coisas boas, etc'." Ele adquiriu um tom teatral e falou mais alto do que o normal: "E aí, menina, eu tô no limbo! Ninguém sabe me classificar! Eu não sou Lula e não sou Bolsonaro. Eu sou o quê então, não é?". Em algum momento, um jornal publicou que ele apoiava Sergio Moro. "E foi logo quando eu já declarei meu voto no Ciro Gomes para parar com qualquer especulação."

Também o incomodava uma certa superioridade moral, um discurso de "não pode isso, não pode aquilo", muito presente ultimamente. Deu o exemplo retórico de uma piada com uma criança morta. "Aí, na hora já vem um apontar o dedo e dizer: 'Não pode fazer piada com isso!' E eu digo: Pode sim! É horrível? É. É de mau gosto? É. Eu faria? Não. Mas po-de!", disse, reforçando a separação de sílabas. "A gente tem que ter muito cuidado com esse 'não pode'. Não pode se for proibido pela Constituição. Se for crime, não pode. O resto po-de!".

Com vinte minutos de atraso, Porchat entrou no palco do teatro lotado.

Durante uma hora, falou sem parar, moveu-se ora como uma gazela, ora como um rinoceronte, imitou vozes, fez poses, gritou, sussurrou, pulou, fez toda sorte de macaquices, nem sequer bebeu água. Houve piadas adaptadas ao público local, referências a subcelebridades canarinhas que tive dúvidas se faziam sentido para a audiência aveirense, palavrões pronunciados com vagar, comentários autodepreciativos, pilhérias mil sobre a brasileirada. Também piroca, xereca, boquete e Romero Britto. Entretanto, nada mexeu tanto com a plateia quanto a longa preleção sobre uma diarreia. Quando terminou, foi aplaudido de pé. Risco de cancelamento: zero.

Era quase meia-noite e a equipe ainda pegaria duas horas e meia de estrada até Lisboa. No dia seguinte, partiria cedo para Évora para gravar mais um episódio da série baseada no livro de Saramago. O pai do humorista, que é seu homônimo, caminhava orgulhoso pelos corredores dos camarins. Disse que havia gostado, que ainda ria das piadas que ouvira várias vezes e que não se surpreendia com o talento do filho. "Ele sempre foi assim, sempre gostou de aparecer."

______

LEIA MAIS NA NEWSLETTER: Daniela Pinheiro entrevista um jornalista ucraniano, em Kiev, um defensor dos privilégios monárquicos em Portugal e mais.

Assinante UOL tem acesso a todos os conteúdos exclusivos do site, newsletters, blogs e colunas, dicas de investimentos e mais. Para assinar a newsletter de Daniela Pinheiro e conhecer nossos outros boletins de jornalistas e personalidades, clique aqui.