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Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

'Se vocês negociam com Rússia, financiam um genocídio na Ucrânia'

A família de Sasha na manhã de quinta (10): ele (à dir.), a mulher Katya, o filho Taras e seu pai. Eles estão hospedados na casa de um amigo, a 8h de carro de Kiev, de onde fugiram semana passada - Oleksandr Akymenko / Arquivo Pessoal
A família de Sasha na manhã de quinta (10): ele (à dir.), a mulher Katya, o filho Taras e seu pai. Eles estão hospedados na casa de um amigo, a 8h de carro de Kiev, de onde fugiram semana passada Imagem: Oleksandr Akymenko / Arquivo Pessoal

Colunista do TAB

12/03/2022 04h01

Esta é parte da versão online da edição de sexta-feira (11) da newsletter de Daniela Pinheiro. Para assinar o boletim e ter acesso ao conteúdo completo, clique aqui.

É com um pé em Portugal, outro no Brasil (e no mundo!), de olho nos patrícios e nos locais, que irei tocar esta coluna. Ela não terá só reportagens ou crônicas. Será mais que um relato frio e menos do que um tratado de geopolítica. Vai tratar dos temas sérios, dos irrelevantes, dos espantosos, dos frívolos e dos essenciais. Não nessa ordem, não na mesma extensão, mas com igual galhardia, graça e gana de aprender. Boa leitura.

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A rotina de uma família ucraniana que não quis deixar o país

Há duas semanas, poucas horas depois do primeiro bombardeio russo à Ucrânia, entrevistei aqui meu amigo Oleksandr Akymenko (aka: Sasha), fundador da Yes&Design, uma das vozes mais conhecidas da nova geração de inovadores digitais no país. Ele estava em casa, em Kiev, com a mulher, o filho de 5 anos, a sogra e amigos que tinham resolvido passar "por aquilo juntos". Foi quando me disse que não largaria a cidade, que haveria uma resistência que deixaria o mundo boquiaberto, que Putin "ia queimar no inferno", que seus compatriotas iriam acabar com o inimigo em pouco tempo.

Desde então, há mais de 2 milhões de refugiados ucranianos, centenas de civis mortos — dezenas de crianças —, cidades destruídas pelo exército russo, a ameaça constante de uma sandice nuclear a ser cometida por Putin.

Abrigado na casa de um amigo da família, distante oito horas de carro de Kiev, num local ainda incólume, Sasha Akymenko deixou tudo para trás sem saber se e quando iria voltar. Disse-me que não lhes falta nada, nem comida, nem aquecimento, nem internet. Por enquanto. Emagreceu uns quatro quilos e colocou seu apartamento num esquema de "airbnb fake" —uma das únicas maneiras de conseguir receber dinheiro do exterior para doações à causa ucraniana.

(Até ontem, cerca de 62.000 residências haviam sido reservadas pelo Airbnb na Ucrânia, totalizando um repasse de quase 2 milhões de dólares aos "falsos anfitriões". A plataforma está dispensando taxas extras e demais penduricalhos burocráticos para ajudar os cidadãos do país.)

Sacha e seu filho, em sua casa em Kiev. A imagem integra o anúncio do Airbnb - Airbnb/Reprodução - Airbnb/Reprodução
Sasha e seu filho, em sua casa em Kiev. A imagem integra o anúncio do Airbnb
Imagem: Airbnb/Reprodução

Como um dos idealizadores do Programa de Liderança Inovadora da Universidade de Stanford, Akymenko tem falado com bambambãs do Vale do Silício para pressionar ainda mais a Rússia com sanções econômicas. Ontem, havia conversado com John L. Hennessy, presidente do Alphabet, empresa-mãe do Google, e um dos cientistas de computação mais respeitados dos Estados Unidos. "Eles ainda não sabem o que fazer", disse-me. "O Google precisa voltar com o Adsense para mostrarmos a verdade do que se passa por aqui".

(A conversa foi resumida e editada para melhor compreensão):

Daniela Pinheiro: O que mudou nessas duas semanas, desde que nos falamos pela última vez?
Oleksandr Akymenko: Agora ficou claro que o Estado russo está financiando o terrorismo. Faz -10°C agora. Bombardeou-os sem piedade para que eles se tornassem seu exemplo de conquista. Tirou-lhes aquecimento, luz, água. Uma criança morreu desidratada ontem. O exército russo é extremamente fraco. Bombardear maternidade, hospital, igrejas é a prova cabal de que não têm estratégia, eles só querem impor medo, é aterrorizar as pessoas para que elas desistam pelo medo. Vê que eles não têm nenhum sucesso em cidades grandes? Eles focam as pequenas porque é onde conseguem. Essa é a retaliação contra a nossa resiliência e a própria incompetência deles. Vou te mostrar uma coisa.

(Nesse momento, ele tira da sala o filho Taras para que não veja as fotos que ele me mostraria a seguir, com cenas de corpos espalhados no centro da cidade e restos do que sobrou de um prédio residencial em Mariupol.)

Olhe a foto que a minha cunhada me mandou.

Eles estão mortos?

Sim. Isso é ao lado da casa da minha cunhada (silêncio). Esses corpos estão lá há dias porque há tantos bombardeios que médicos ou bombeiros não conseguem ir lá recolhê-los. Só se ouvem gritos e explosões por lá. Em outra cidade pequena, estão minhas primas que têm um pouco de gasolina num gerador, que acionam por alguns minutos por dia para usar o celular. No resto do tempo, cozinham com fogo do lado de fora de casa, com os vizinhos, no meio da neve.

Como foi seu dia hoje?

Acordamos com notícias de que a família do chefe da minha mulher tinha sido explodida por um míssil em Sumy, na fronteira com a Rússia. Duas crianças, gêmeos de 2 anos, pai, mãe, outros filhos, a família inteira morta. E essa é a única razão pela qual eles estão bombardeando as pessoas de paz, que não podem lutar contra o exército.

Sasha e a família em casa - Airbnb/Reprodução - Airbnb/Reprodução
Imagem: Airbnb/Reprodução

O que pensa de tudo isso?

Penso nas consequências catastróficas. Todas as agências de risco já desqualificaram a Rússia. Centenas de empresas estão abandonando o país. Em um dia, o McDonald's fechou 680 lojas. Coca-cola, PepsiCo, tudo indo embora. Se vocês no Brasil ainda negociam com a Rússia, estão patrocinando o genocídio na Ucrânia.

Bolsonaro visitou Putin e se faz de amigo-aliado.

Tem que parar de comprar qualquer coisa de lá. Eu sei que vocês têm a Petrobras, que petróleo não é o principal produto da balança comercial, mas fertilizantes, aparentemente é. Só parem. Qualquer empresa pode suspender os contratos com a Rússia. Nesse momento, estou trabalhando com um jornalista japonês para pressionarmos a Toyota. Eles continuam com Putin. Ninguém vai se esquecer de que lado essas empresas vão entrar para a história.

Que respostas você tem na pressão às corporações?

Estou falando com meus contatos para suspender propaganda em canais do YouTube, pelo menos. Parte deles, felizmente, já fecharam as operações com a Rússia, mas outros, como a Alphabet, ainda não sabem o que fazer. Escrevi para o John Hennessy [presidente da Alphabet, empresa-mãe do Google] dizendo para voltarem com o Adsense na Rússia, porque só assim conseguimos mostrar o que está acontecendo de verdade.

Como é isso?

O Google parou de vender publicidade on-line na Rússia, uma proibição que abrange pesquisa, YouTube e parceiros editoriais externos. Mas o fez para parceiros de fora, não para os russos. Então, o povo lá ainda recebe propaganda falsa, não entende o que está acontecendo aqui. Eles ouvem a propaganda enviesada do governo e apoiam bombardeios em cidades de paz. No fim, eles são vítimas da ignorância. Então, estamos tentando que Google, pelo menos, volte com o Adsense, porque a gente conseguiria comprar anúncios e banners para combater a desinformação.

Você "alugou" seu apartamento no Airbnb no meio de uma guerra e está ganhando dinheiro com ele. Como é isso?

Li que pessoas dos EUA e da Europa estavam querendo ajudar a Ucrânia e uma das únicas maneiras era fingindo alugar a residência delas no Airbnb. O PayPal aqui é proibido. Tiramos fotos e escrevemos um post dizendo tudo isso claramente, que as pessoas não teriam acesso a nossa casa, mas aquilo era uma maneira de ajudar, era uma micro-doação, filantropia. Recebemos mais de 2 mil dólares de "aluguel", equivalente a uns dois meses de contratos inexistentes, que estamos encaminhando para organizações de ajuda a refugiados e à imprensa local. Para quem está fora, é quase nada, 10 copos de café. Aqui, faz muita diferença.

O que mais te surpreende?

A união do povo ucraniano e do exército ucraniano. Eu sabia que éramos unidos, mas não imaginava isso. Hoje, sei que qualquer vovozinha é capaz de enfrentar um russo com uma forquilha. A coisa das sanções mundiais também me surpreendeu muito. Empresas abrindo mão do lucro em nome da vida, da liberdade de um país.

Está surpreso com o presidente Zelensky?

Muito. Ele se tornou uma referência, o país inteiro espera pelo pronunciamento diário dele. Ele é um herói nacional.

Você votou nele?

Não. Nunca acreditei nele como comediante, como político, nada. Fazia um humor baixo nível. Talvez eu seja muito esnobe, mas era uma tortura ver aquilo. Agora ele é um herói. E veja: ele não está sozinho. Ele tem um time muito forte, por exemplo, para o preparo de seus discursos. Ontem ele citou Churchill no Parlamento inglês e foi aplaudido de pé. Isso não é ele sozinho, isso é o time dele — o que é incrível.

Apesar de tudo, há esperança?

Nós já ganhamos essa guerra. Não tenho dúvida sobre isso. A única pergunta que resta é: qual o tamanho do dano? O nível de destruição pode ser qualquer coisa entre matar alguns cidadãos e, por exemplo, explodir a cidade de Kiev com mísseis nucleares. Então essa é a única questão: o tamanho dos danos.

O que você acha que vai acontecer com a Rússia?

Vão ficar piores que a Coreia do Norte. Ficarão estagnados por pelo menos 20 anos por conta das sanções, da toxicidade que emana de lá. O caminho dessa nação para o completo desastre econômico, social, já está traçado. Não se verá mais turistas russos por aí. Eles ficarão isolados do mundo civilizado. Até que implorem perdão, até que mudem seu líder, serão párias para sempre.

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LEIA MAIS NA NEWSLETTER: Daniela Pinheiro fala sobre o banqueiro com Alzheimer que escreve um livro de memórias, narra seu primeiro 'volte para tua terra', ouvido num restaurante em Lisboa, e mais.

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