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Daniela Pinheiro

REPORTAGEM

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Ucraniano sobre a guerra: 'Meu filho não vai esquecer nem perdoar'

Oleksandr Akymenko, empresário e fundador da Yes&Design, com a companheira Katya e o filho Taras - Arquivo pessoal
Oleksandr Akymenko, empresário e fundador da Yes&Design, com a companheira Katya e o filho Taras Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do TAB

11/06/2022 04h01

Esta é parte da versão online da edição de sexta-feira (10) da newsletter de Daniela Pinheiro. Na newsletter completa, a colunista fala sobre a morte de uma importante artista plástica, a discussão do governo português sobre a jornada de quatro dias e mais. Você pode ler o conteúdo completo aqui (apenas para assinantes). Para se inscrever e receber o boletim semanalmente, clique aqui.

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'Esta guerra não tem 100 dias, tem 100 anos'

A guerra da Ucrânia completou 100 dias. Naquele 24 de fevereiro, uma quinta-feira, quatro horas depois do primeiro bombardeio russo ao país, conversei com Oleksandr Akymenko (aka: Sasha), fundador da Yes&Design, uma das vozes mais conhecidas da nova geração de inovadores digitais no país. Ele estava em casa, em Kiev, com a mulher, o filho, a sogra e amigos que tinham resolvido passar "por aquilo juntos".

Foi quando me disse que não largaria a cidade, que haveria uma resistência que deixaria o mundo boquiaberto, que Putin "ia queimar no inferno", que seus compatriotas iriam acabar com o inimigo em pouco tempo. Uma semana depois, quando os ataques se intensificaram, o cenário era outro. Sem qualquer perspectiva de trégua na guerra, ele decidiu deixar tudo para trás e se instalar na casa do pai, no centro do país, numa área que ainda parecia fora dos alvos russos. Ali, permaneceram por mais algumas semanas.

Escrevi sobre essa temporada aqui. Tentavam manter uma rotina de normalidade na exceção: agenda de horários parecida, o trabalho remoto, brincadeiras com o filho Taras que não aludiam à guerra, o fake-aluguel da própria casa no Airbnb para arrecadar dinheiro para o exército nacional (desde o início da guerra, milhares de pessoas reservaram e pagaram apartamentos e casas em todo país, segundo a plataforma, para ajudar os ucranianos), jantares em família.

E aí Mariupol foi devastada. E invadiram Chernobyl. E começaram os bombardeios massivos no leste ucraniano. E houve Kharkiv. E a aberração na fronteira em Lviv. Ainda nem havia acontecido a barbárie em Bucha quando decidiram que a mulher e o filho deveriam deixar o país. Numa operação que envolveu horas de viagem de carro, caronas de amigos na fronteira de três países, casas emprestadas, pouco contato telefônico, Katya e Taras chegaram a Viena, na Áustria, onde se hospedaram numa casa no meio de uma floresta, cedida por um conhecido.

Amigos foram para o front, outros para o interior, alguns, atônitos, simplesmente ficaram paralisados. Ainda instalado na casa do pai, Sasha passou a trabalhar na resistência. Como um dos idealizadores do Programa de Liderança Inovadora na Ucrânia da Universidade de Stanford, ele começou a organizar uma rede de cooperação entre o país e as melhores instituições de ensino na Europa e nos Estados Unidos para que estudantes, pesquisadores e cientistas ucranianos pudessem ir embora, aprimorar seus conhecimentos e retornarem mais qualificados para trabalhar pela reconstrução da nação. Nasceu a Ukrainian Global University (UGU), que tem como parceiros Harvard, Stanford, Sorbonne, entre outras universidades de excelência. A única contrapartida: voltar para a Ucrânia ao fim dos estudos, onde devem trabalhar por pelo menos três anos.

Na quarta-feira (8), Sasha dirigia rumo à fronteira com a Polônia, onde se encontraria com a mulher e o filho depois de dois meses e meio separados. Ele falou como está sobrevivendo, sobre a ideia de reconstrução do país, como acha que a guerra vai afetar o presente e o futuro do filho de cinco anos. O relato foi editado e condensado para melhor compreensão.

"Daqui a umas duas horas chego à fronteira da Polônia. Ali, tenho que esperar na fila de carros mais umas duas horas até ser autorizado a cruzar. Faz dois meses e meio que não vejo Katya e Taras. Decidimos que era hora de voltarem para a Ucrânia porque o cenário agora é mais previsível do que antes. Há duas ameaças prementes ainda: mísseis destruindo reservas de óleo e gás, estradas nas fronteiras e, claro, o risco de um ataque nuclear. É muito difícil que as tropas russas cheguem perto da casa do meu pai, na região central. Ainda que esteja resguardada, há toque de recolher na cidade, ouvimos sirenes duas ou três vezes por dia. Vamos ver como as coisas se passam em Kherson, no sul, onde nosso Exército está reagindo e impedindo que eles subam para o centro. O presidente Zelensky está fazendo esse apelo para que o Ocidente mande armas para cá porque sem isso o país pode não ser capaz de lidar com a ofensiva russa.

Taras tem cinco anos. Ele sabe perfeitamente o que está acontecendo. Desde o começo, fizemos questão de contar para ele — dentro do que seria possível ele entender, obviamente, o que estava se passando. Ele sabe que os soldados russos estão nos matando. Ele sabe que estamos em guerra. Ele aprendeu a cantar o hino do país. Ele grita, orgulhoso, 'vamos vencer, vamos vencer!'. Há tantas coisas horríveis acontecendo, mas um dia ele vai saber os detalhes. Estamos separados pela guerra, longe da nossa casa, ele sente muito minha falta. Durante todo esse tempo, nos falamos diariamente por FaceTime. Eu lia para ele na hora de dormir histórias dos livros que ele deixou para trás.

A ida deles para a Áustria foi uma operação complicada. Eles ficaram num cottage [chalé] cedido um amigo no meio de uma floresta. Passaram a maior parte do tempo sozinhos. A mãe da Katya fugiu para a Alemanha e conseguiu visitá-la. Alguns conhecidos também foram até lá. Durante todo esse tempo, estive falando com líderes e acadêmicos mundo afora buscando uma maneira de pensar na reconstrução do país. A ideia de fazer a rede de universidade e pedir bolsas e ajuda financeira me pareceu impactante. Já reunimos 55 faculdades em todo o mundo. Nos Estados Unidos, Austrália, México, Itália, Israel... Mais de 2.500 pessoas se inscreveram. Estamos na fase de aplicar testes de inglês para ver quem está apto a ganhar as bolsas. Imagino que pelo menos 500 pessoas vão se beneficiar do programa. A única exigência é que elas voltem para a Ucrânia ao final da formação e não saiam daqui por pelo menos três anos.

Desde o começo, eu não parava de pensar em como poderia ajudar. Havia duas situações óbvias: durante uma guerra, há uma fuga de cérebros. As pessoas vão embora para se salvar e costumam nunca mais voltar. A outra é que vamos precisar de gente qualificada, muita gente, para reconstruir esse país, desde arquitetos até legisladores, gente na área da saúde, da educação, mais jornalistas, gente que seja capaz de reconstruir o Estado de Direito nesse país.

Essa guerra me ensinou algumas coisas. Primeiro, como a vida é efêmera. Tenho 37 anos. Nessa idade, não pensamos muito nisso. Mas, de repente, todo mundo perdeu alguém. O cara que trabalhou a vida toda ao lado do meu pai na repartição tem um filho que foi para o front. Há duas semanas, não temos mais notícias dele. Provavelmente, não teremos mais. É desolador ver as pessoas indo embora, perdendo tudo, perdendo filhos, pais, parentes. Há quem tenha perdido a família inteira. A vida é muito frágil. Temos que passar o maior tempo possível com quem a gente ama. Outra coisa que me toca muito é ver a solidariedade do meu povo. Não há um só lar na Ucrânia onde alguém não esteja disposto a ajudar o outro. Estamos mais unidos do que nunca. Os ucranianos se mostraram mesmo os campeões do mundo. O mundo assiste a isso.

Quando a guerra começou, eu recebia dez, quinze telefonemas até num mesmo dia de pessoas de todo o mundo querendo saber notícias, como ajudar. Agora, há uma fatiga sobre esse tema na comunidade internacional. Mas as pessoas não podem esquecer que nossos soldados estão sendo assassinados, nossas mulheres e crianças estão sendo mortas e violadas por esses bárbaros russos.

As pessoas estão sendo deportadas para esses chamados "campos de filtragem", que não são nada menos do que campos de concentração, assim como Hitler fez com os judeus na Segunda Guerra Mundial. Alguém consegue conceber que, em pleno século 21, existam campos de concentração? Putin é como Hitler. Ele quer a mesma coisa, ele usa os mesmos métodos da propaganda, da mentira, da maldade. Ele quer acabar com a Ucrânia, ele quer que todos nós morramos. Para nós, é muito importante ganhar essa guerra. E a Ucrânia não vai desistir da guerra. Vou parafrasear o que disse Golda Meir a propósito do extermínio dos judeus: se os russos depuserem suas armas, a guerra terminará. Se os ucranianos depuserem suas armas, a Ucrânia terminará. Se desistirmos, não existirá mais Ucrânia.

Desde que meu filho nasceu, eu e Katya decidimos que só falaríamos com ele em ucraniano — o que não é usual. A maioria aqui, e nós, fomos criados assim também, falando russo. No jardim de infância, eles falam russo. Os livros valorizados, o cinema valorizado, tudo aqui que era valorizado era o que vinha da Rússia. E isso nos trouxe até aqui, nos colocou nessa guerra. A nossa literatura, o nosso cinema, a nossa língua é outra. Somos uma nação. Somos um país tão civilizado quanto qualquer um na Europa. Não somos russos e nunca seremos. Essa guerra não tem 100 dias. Tem 100 anos. Essa ideia de acabar com a Ucrânia já estava com Stalin, com Pedro 1º [czar russo], com Catarina.

Meu filho não vai esquecer nem perdoar. Ele vai saber tudo o que aconteceu conosco. Ele fala ucraniano, vai falar inglês e talvez outra língua — mandarim, espanhol, vamos ver. Pode sair para estudar fora por um tempo, mas vai trabalhar para transformar esse país. Ele tem que dar de volta tudo o que essa nação deu para ele."

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