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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dani Alves e horário de verão racham o país. Voltamos à programação normal?

Daniel Alves, durante treino da seleção brasileira - Lucas Figueiredo/CBF
Daniel Alves, durante treino da seleção brasileira Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

Colunista do UOL

11/11/2022 04h00

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Copa e horário de verão já mobilizam o país. Voltamos à programação normal?

Demorou, mas aconteceu: na praça onde caminho todos os dias, notei uma discussão intensa sobre a convocação de Daniel Alves para a Copa do Qatar.

Não, os rebeldes não estavam discutindo direito constitucional, código-fonte, bula de remédio ineficaz, vacinas com chip ou como iniciar a terceira guerra mundial só com curtidas de Instagram.

Estavam gastando saliva e fritando o cérebro por um lateral-direito que pode nem sequer entrar em campo no Mundial, num sinal de que morreu por asfixia aquela esperança de virada de mesa que não veio, nem das eleições nos EUA nem da cartinha das Forças Armadas, sobre a segurança nas urnas.

A sensação, confesso, foi de alívio.

E um pouco de decepção.

Não faz muito, a porteira aberta para um mundo onde todos nos tornaríamos consumidores e produtores de conteúdo e informação, sem a licença nem a mediação dos chamados veículos tradicionais, parecia ser um caminho sem volta ao fortalecimento da democracia. Quanto mais gente debatendo, melhor, não é?

Pois essa ideia caiu por terra quando os códigos-fonte do debate honesto foram infectados pelos vírus maliciosos da desinformação e da falta de preparo intelectual de debatedores como Monark, o sujeito que acredita viver em uma ditadura porque, vejam só, não pode espalhar mentiras nem correntes criminosas para uma multidão de seguidores sem ter de se responsabilizar por isso. Um absurdo, não?

Meu lado cético aponta que gente assim, tão perigosa quanto lesada, não sairá de cena. Haverá resistência, como fizeram Roberto Jefferson e os arruaceiros de Santa Catarina, ao atacarem policiais escalados para conter a escalada de uma reação armada e furiosa movida por razões políticas e ideológicas.

Mas há um outro lado que consegue entrever, aqui e ali, uma nascente e teimosa corrente de normalidade.

Esse lado desconfia que o técnico Tite seja o maior estrategista político desses tempos. Ninguém melhor que seu Adenor entendeu que não há nada mais efetivo para unir uma nação do que dar a ela um vilão. Com sua convocação, saiu de cena o discurso perigoso de demonização de países vizinhos que poderiam nos levar a uma guerra e entrou na mira um lateral de 39 anos que pode entregar a rapadura se encontrar o Mbappé em sua ala, nas quarta de final de uma Copa do Mundo.

Se era para seus conterrâneos passarem o Mundial reclamando e de cara amarrada, percebeu o treinador, era melhor direcionar o ranço para a causa correta.

Se for isso mesmo, é provável que Geraldo Alckmin, futuro vice-presidente, tenha matado a bola no peito e afastado da roda todo mundo que se acostumou a buscar entretenimento barato e sequestro do sistema de recompensa cerebral no noticiário político, transformado em um misto de arena de MMA com conteúdo adulto nos últimos quatro anos.

Como? Anunciando em tom pausado, tedioso e monocórdico, todos os componentes da equipe de transição de governo.

Não, não havia lá nenhum cover de Caco Antibes nem de chefe de propaganda nazista nem cosplay de Tia Lydia nem barbudo ou marombado, dispostos a dar porrada em juiz, nem ex-ator de "Malhação" que mudou o mindset para viver o papel de Rambo na própria novela.

Não havia, enfim, nenhum indício de que o elenco da equipe de transição irá competir com as atrações de "A Fazenda", com seus barracos e sopapos. Pelo contrário: tudo ali é normal, bem comportado e entediante, como deve ser.

Sabe aquele amigo que depois de uma briga estratosférica manda espalhar a roda de curiosos dizendo: "circula, não tem nada para ver aqui"? Foi mais ou menos isso o que o ex-governador paulista fez ao anunciar a equipe de transição.

Coincidência ou não, os caras-emburradas de sempre deram meia volta e ensaiam agora focar a revolta em querelas que realmente entendem, como a convocação da seleção, as andanças dos mocinhos da novela, a tomada de três pinos e a falta de ervilha nas empadas.

Nenhum desses debates promete mobilizar tantos amores e ódios quanto o horário de verão, um dos primeiros itens de um país desmantelado que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, dá sinais de que pretende reavivar.

Os ventos da normalidade, em 2022, vieram junto com a primavera e exigem cuidados. O novo governo não sabe o vespeiro em que está se metendo.

Eis uma discussão que realmente divide o país — no caso, entre quem passou os últimos anos com as cortinas cerradas e os olhos presos num bunker chamado WhatsApp e os que ainda não desenvolveram alergia à luz do sol e têm saudade de quando podiam sair para tomar um sorvete com as crianças na praça, tarde da noite, porque ainda era dia.

Os debates acalorados sobre horário de verão resgatam do subsolo um sabor de país antigo que conhecíamos e que se perdeu. Um país onde os líderes políticos lamentam a morte de seus grandes artistas e, em vez de silêncio ou deboche, choram junto com seu povo.

Pois até o direito ao luto no Brasil é um item a ser reformado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL