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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pós-pandemia, filmes do Oscar capturaram o espírito das relações devastadas

A atriz Michelle Yeoh é Evelyn em "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo" - Divulgação/A24
A atriz Michelle Yeoh é Evelyn em 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' Imagem: Divulgação/A24

Colunista do UOL

12/03/2023 04h01

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Quando a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia do coronavírus, em 11 de março de 2020, não faltou quem viesse a público dizer que a crise sanitária seria uma chance ampla, geral e irrestrita de reconexão.

Confinados por um tempo indeterminado, pais ganharam a chance de ver crescerem os filhos; o trabalho remoto transformaria nossas casas em um universo em expansão.

A forma como o mundo pré-pandemia se expandia, em modelos de produção insustentável e deslocamento de corpos acelerados, também seria confrontada.

Estávamos condenados a viver em comunidades e isso, diziam, não necessariamente era ruim.

Daríamos mais atenção a produtores locais, abandonaríamos vícios e hábitos deletérios, cuidaríamos da saúde, evitaríamos riscos. A noção de tempo e espaço passava por uma nova orientação.

O uso de máscara e o distanciamento social seriam provas de amor.

A presença do "outro" era a presença de um risco recíproco, e cuidar de um era cuidar de todos — ao menos até que a cura ou vacina fosse descoberta.

Tudo não passava de pensamento desejoso.

Ao longo da pandemia, as divisões de uma sociedade já suficientemente fragmentada por crises anteriores levaram ao limite a noção de enfrentamento e sobrevivência. Em vez de solidariedade, a pandemia revelou o lado mais sombrio de boa parte dos habitantes desta Terra.

Houve um boom de divórcios. Uma explosão de violências. A saúde mental entrou em colapso.

A ânsia pela retomada criou celeumas e distanciamentos muito além do recomendado pela OMS. Famílias foram destroçadas por não conseguirem chegar a um consenso mínimo sobre uso de máscaras.

Seitas antivacina surgiram aos montes, e o pouco caso com os mortos e seus familiares revelou o pior que o ser humano pode produzir, inclusive no poder.

O atropelo da pandemia e das máquinas de produção de afetos políticos ativados durante o período deixou marcas permanentes nas costas dos sobreviventes.

Quando saímos às ruas, tudo parecia igual; mas nada mais seria o mesmo.

A cerimônia do Oscar de 2023 acontece, neste domingo (12), três anos e um dia após a declaração de guerra da OMS contra o inimigo comum.

E a impressão é que, embora não tratem diretamente desse momento histórico, os personagens dos filmes favoritos à estatueta principal incorporam muitos dos dilemas de uma sociedade que, passado o pior momento da crise, agora luta para reconstituir os laços esgarçados do mundo pós-pandemia.

É isso o que parecem representar os amigos afastados em "Os Banshees de Inisherin", filme que se passa na Irlanda do início do século passado mas que dialoga diretamente com o estado implícito das guerras internas mais contemporâneas. Elas começam com pequenas desconfianças e interdições, são alimentadas por incompreensão e se desdobram em mutilações simbólicas e literais. A exemplo dos protagonistas, não teve amigo na plateia que não estranhou e se afastou de amigos quando a guerra da covid começou.

"Triângulo da Tristeza" é um filme dedicado aos sobreviventes. Não tem referencial de autoridade ali que não esteja em crise, a começar pelo capitão breaco do iate de luxo.

Como num confinamento inevitável, a viagem no cruzeiro deveria servir para a reconstituição de um relacionamento, apresentado logo no início do filme, entre personagens que se desprezam, mas que entram em um acordo tácito para vender nas redes uma projeção de felicidade e riqueza que não existem. Estão todos tão ocupados em se digladiar e se entorpecer que não percebem o naufrágio iminente.

O restart numa ilha deserta deveria produzir exatamente o que os arautos do otimismo pandêmico prometiam em 2020. Mas ele muda apenas a posição de patentes e soldados na mesma guerra de todos contra todos — inclusive o casal incapaz de dialogar.

Favorito ao prêmio principal, "Tudo em todo lugar ao mesmo tempo" conseguiu transformar a relação fragmentada entre mãe e filha numa viagem (quase lisérgica) pelo multiverso. Não importa para qual mundo fugimos: o acerto de contas é uma perseguição implacável e nos revela fraquezas e habilidades com as quais sabemos e não sabemos lutar.

As mesmas ferramentas são também forjadas pelas mãos das personagens violentadas de "Entre Mulheres" e que colocam em cena uma palavra de ordem no mundo pós-pandemia e numa Hollywood atropelada por denúncias contra seus produtores revelados como predadores: responsabilização. Não é bem uma vingança. É mais que isso.

Os personagens dos filmes favoritos a levar a estatueta principal surgem à tela com o desafio de lidar com relações destroçadas no campo afetivo, familiar e profissional.

E, assim como o público de "Tár", sobre as ambiguidades das pequenas e grandes estruturas de poder, ninguém sabe muito bem como lidar com antigos ídolos e referências que se mostraram demasiado humanos (e desumanos) para honrar o pedestal. (Ao menos no Brasil, o combo pandemia + eleição expôs o lado mais perverso de quem até outro dia inspirava apenas admiração. Nem os ídolos da música passaram imunes).

Passado o pior momento da crise sanitária, quanto mais o mundo se expande, mais notamos que há elementos que já não cabem nele. De certa forma é isso o que aponta Steven Spielberg ao fazer de "Os Fabelmans" uma ode à sua família retratada no momento mais duro de uma separação.

A mãe daquela família é a representação de uma luta constante entre o espírito da artista livre que habita nela e as dinâmicas de um confinamento do lar que a sufoca e interdita. Esse embate é capturado pelas lentes do jovem cineasta prestes a assinar um contrato vitalício com a solidão.

Nisso o filme destoa dos demais: num mundo de conflitos abertos, internos ou não, Spielberg mostra que o fim pode ser também recomeço, um registro cinematográfico sem traumas além dos inevitáveis. Embora seja sempre doloroso.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL