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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que não devemos cair no papo de que 8/1 foi uma 'loucura coletiva'?

Janelas danificadas no Palácio do Planalto nos atos criminosos de 8 de janeiro - Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Janelas danificadas no Palácio do Planalto nos atos criminosos de 8 de janeiro Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Colunista do UOL

19/03/2023 04h00

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Em seu depoimento ao Tribunal Superior Eleitoral na quinta-feira (16), o ex-ministro da Justiça Anderson Torres classificou a minuta golpista encontrada em sua casa de "lixo", "loucura" e "folclórica".

O coronel da Polícia Militar Jorge Eduardo Naime disse à CPI dos Atos Antidemocráticos da Câmara do Distrito Federal que os bolsonaristas acampados em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília, "viviam em uma bolha". Um deles, afirmou o militar responsável pelo Departamento Operacional da corporação, chegou a dizer que era um extraterrestre.

Andrei Passos, atual diretor da Polícia Federal, afirmou, em uma palestra na FGV do Rio, que golpistas presos após a invasão da sede dos Três Poderes vivem em "surto coletivo". "As pessoas, não sei se ainda creem estar no mundo virtual, mas não se dão conta de que estamos no mundo real."

Ibaneis Rocha foi na mesma linha ao reassumir o cargo de governador do DF. Para ele, o que houve em 8 de janeiro foi uma "loucura coletiva", provocada por uma parcela de eleitores do ex-presidente, e as falhas na segurança dos edifícios foram resultado de um "apagão geral". A segurança, na época, era responsabilidade de Anderson Torres, que dias antes havia viajado de férias para os Estados Unidos, onde também estava Jair Bolsonaro.

Quem assistiu às cenas de depredação e agora ouve as autoridades tem a impressão de que tudo só aconteceu porque, num ato falho, pessoas que acreditavam serem extraterrestres perderam o juízo e precisaram ser contidas numa camisa de força.

Nem parece que durante meses foram alimentadas, simbólica e literalmente, por organizações que podem ser acusadas de tudo, menos de que não sabiam o que estavam fazendo.

Em um artigo recente, o médico e escritor Drauzio Varella explicou o que é de fato um "surto coletivo" (o nome correto é doença psicogênica de massa). A partir dos estudos do psiquiatra britânico Simon Wesley, do King's College de Londres, ele lembrou que esses fenômenos podem ser definidos como agudos ou crônicos.

O primeiro é de curta duração, envolve ansiedade súbita e extrema diante da percepção de uma falsa ameaça. Costuma durar 24 horas.

Foi o que, segundo Varella, aconteceu em 19 de maio de 2022 em uma escola do Recife, onde dezenas de estudantes apresentaram ao mesmo tempo sintomas de ansiedade, com crises de choro, taquicardia, desmaios, tonturas, sudorese e falta de ar.

Os alunos estavam clinicamente saudáveis, mas passaram a sofrer (e transmitir) os sinais do surto devido à época de provas e do retorno das aulas presenciais.

O segundo tipo de "surto coletivo" é resultado, de acordo com Wesley, do "lento acúmulo de estresse reprimido" em "ambiente social intolerável", caracterizado por "dissociação, histrionismo e alteração na atividade psicomotora", como tremores, espasmos e câimbras que duram semanas.

No caso da invasão de 8 de janeiro, o suposto surto não durou 24 horas. Foi mobilizado durante meses e contou com endosso e proteção do comando do Exército na época.

Se parte dos invasores havia perdido o pé da realidade — sintoma, isso sim, da permanência em "ambiente social intolerável" dos grupos de mensagem instantânea e redes sociais —, os mandantes e financiadores, não.

Entre os invasores, ninguém parecia tremer ou sofrer com câimbras enquanto quebrava vidraças, relógios históricos ou esfaqueavam o painel de Di Cavalcanti.

Muitos foram presos e tiveram tempo de pensar no que estavam (e estão) fazendo. Foram acordados do transe? Conta outra.

O colunista do UOL Aguirre Talento mostrou, em sua coluna, que bolsonaristas detidos na ação criminosa relataram, em seus depoimentos, que igrejas de diversos estados bancaram ônibus e caravanas em direção a Brasília.

Uma das pessoas detidas pela PF detalhou como a deputada federal Coronel Fernanda (PL-MT) e dois candidatos bolsonaristas em Mato Grosso organizaram a viagem de ônibus do estado até a capital às vésperas do evento.

Loucura é pensar que tudo não passou de um surto, um conjunto de atos impensados em que os agentes perdem o juízo e o controle dos próprios corpos.

Classificar tudo o que aconteceu como "delírio" ou "coisa de ET" é uma forma de minimizar e coibir a responsabilização de quem sabia o que estava fazendo e estimulando. Os sinais já estavam dados no dia da diplomação de Lula como presidente eleito.

Chamar minuta golpista de "lixo" a essa altura é brincar com a inteligência alheia. Não foi na lixeira, mas numa gaveta bem guardada que policiais encontraram o documento com todos os passos de como os comandados de Jair Bolsonaro (PL) deveriam agir para melar as eleições.

O próprio ex-presidente tem uma coleção de declarações incriminadoras que colocaram em dúvida a legitimidade das urnas eletrônicas, do processo eleitoral e das autoridades do TSE. As incitações serviram como madeira, gasolina e fósforo para acender a fogueira. Tudo ali obedece a uma lógica racional, cronológica e violenta.

Dizer que tudo não passou de um ato tresloucado no meio de um apagão é só uma forma de fugir da responsabilidade.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL