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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Férias escolares são perrengue. Mas devemos registrar frustração nas redes?

Em julho, crianças tiram férias e quem precisa de suporte são os adultos: mas vale a pena expressar a queixa publicamente? - iStock
Em julho, crianças tiram férias e quem precisa de suporte são os adultos: mas vale a pena expressar a queixa publicamente? Imagem: iStock

Colunista do UOL

09/07/2023 04h01

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Meu pai está de férias e decidiu passar o mês de julho em casa.

Não sei se sobrevivo até agosto.

Nas redes sociais, tenho conversado com outros filhos que também não sabem o que fazer com os velhos nessa época do ano.

As queixas são quase todas iguais, só muda o endereço. Principalmente para quem trabalha em casa.

As demandas começam logo cedo. Mal acorda e eles, pasmem, já querem comer. Se deixar, ficam o dia de pijama. Passam a manhã vendo vídeo antigo do Datena no YouTube e comentando tudo quanto é notícia sobre o trânsito de São Paulo, onde sequer moramos.

Nessa idade, a gente tem que vigiar o tempo todo, inclusive o que veem na TV. Outro dia pisquei e ele tinha caído num debate da Jovem Pan. Precisei deixar de castigo.

Por alguma razão o adulto, quando sai de férias, tira folga também de qualquer compromisso com o fígado. Cerveja já combinamos: só depois das 11h. Torresmo também. Outro dia encontrei doce escondido no travesseiro. E uma consulta, no histórico de busca, sobre preço de escada dobrável. A gente desconfia que seja para subir no telhado e consertar a antena. Que não tenho.

O pior de tudo é quando querem conversar. Está certo que o expediente do home office começa depois das 10h. Mas eles não entendem que precisamos investir nosso tempo e cuidar da gente um pouco antes de iniciar os trabalhos.

Com eles em casa aquela caminhada matutina fica humanamente impossível (eu mesmo já devo ter engordado três quilos). Cortar o cabelo, esquece. Aquele cochilo restaurador depois do almoço também ficou inviável.

E já não tenho esperança de assistir meus programas favoritos antes do fim do mês. Não sem que o som de alguma música do Phil Collins se sobreponha às piadas em volume máximo do Choque de Cultura.

Sim, eu sei que não é certo deixar o velho com o celular na mão para se entreter. Mas vou fazer o quê? O celular é o recurso que temos para distrair a atenção dele e ganhar tempo para fazer coisas mais importantes. Como, por exemplo, escrever textão em rede social sobre como é difícil conviver com os pais durante as férias.

O convívio testa nossos diferentes papéis no mundo. Somos profissionais, maridos/esposas, vizinhos, condôminos, eleitores e também FILHOS. E isso envolve responsabilidades que nem sonhava ter a essa altura da vida.

O que queria mesmo era estar numa cadeira de praia, à beira de uma piscina de borda infinita, se possível em companhia da "conge", e fazendo inveja a todo mundo que me segue com dois ou três posts diários no Instagram enquanto finalizo algum trabalho no laptop para juntar dinheiro e pagar a primeira das 87 prestações da viagem.

Mas viajar e trabalhar diante de outra paisagem é impossível nessa época do ano. Só de pensar em colocar meu pai no avião já desanimo.

Primeiro: ele vai querer viajar com a mesma camisa furada do Palmeiras de sempre. Só porque deu sorte na campanha de 1993. E certamente vai brigar pra colocar o tênis. Nessa idade só anda de chinelo Rider.

Segundo: ele não come fora de casa. Não adianta. Chega o lanchinho da companhia aérea e ele pergunta para o comissário de bordo se não tem um ovo para fritar.

Terceiro: ele vai passar a viagem perguntando se falta muito para chegar. E, se não amarrar, é capaz de andar de poltrona em poltrona pra desovar a energia, que não sei de onde tira, conversando e fazendo perguntas para todo mundo que só quer dormir em paz.

Não tem outra solução se não passar os dias em casa, como numa trincheira, já que a recreação da terceira idade custa o olho da cara e os velhinhos maiores batem nele quando os monitores cochilam (e eles cochilam muito).

O jeito é tentar sobreviver entre combinados. Tipo "eu deixo você jogar xadrez com o pai do Gabriel se você me prometer que vai ficar em silêncio por três horas sem me pedir nada".

Mas os combinados costumam falhar nos primeiros minutos. Você deixa meu pai sozinho no quarto e ele te olha com aquela cara de cachorro que vai ser abandonado, dizendo que só quer mostrar uma nova habilidade que aprendeu com a Makita (reforço positivo que chama) ou o último vídeo que recebeu no zap. Nessas horas pergunto sempre: precisa dos meus olhos pra ver?

Pelo jeito, precisa. E quanto mais distância tomo, mais ele me chama.

Nosso convívio é uma sucessão de perguntas infinitas sobre onde está o controle remoto, como faz pra ligar o computador, que horas é a missa ou se pode ligar para o primo com meu celular.

Cada vez mais entendo minha mãe quando ela resolvia despachar meu pai para o pesqueiro do sogro nos dias de folga.

Férias de adultos são um problema, um perrengue extra pra quem mal dá conta de entregar as tarefas de jornadas duplas e triplas dos dias normais de temperatura e pressão — ou seja, quando podemos delegar ao pessoal da igreja ou do bingo a missão de entretê-los durante a semana.

Se você chegou até este parágrafo se perguntando como alguém tem coragem de escrever um negócio desses sobre o próprio pai, o estranhamento faz sentido: ninguém em sã consciência pensaria em compartilhar nada disso sobre qualquer pessoa que reconhecemos como sujeito, capaz de ouvir, falar, sentir. Até porque os adultos sabem ler e podem talvez, só talvez, se chatear com o que os filhos falam e escrevem abertamente sobre eles. Então qual a razão de falar exatamente as mesmas coisas em público sobre crianças?

Por alguma razão, as redes sociais normalizaram o hábito de se queixar em voz alta dos filhos (ou melhor: das responsabilidades que assumimos quando nos tornamos pais).

Eu mesmo já fiz muito.

Compartilhar os perrengues ajuda a criar conexões e nos leva a descobrir que não somos os únicos que queremos arrancar os cabelos ou chorar largados, em posição fetal, quando tentamos trabalhar enquanto uma criança entediada decide bater bola na sala.

Mas talvez, só talvez, seja recomendável não deixar registro por aí do tanto de frustrações envolvidas na tarefa de cuidar de quem é nosso dever cuidar. Desconfio que é melhor guardar a bronca para a terapia. Ou pra mesa de bar. Essas pequenas pessoas podem crescer um dia. Pior: podem aprender a ler.

Deve no mínimo ser estranho crescer num ambiente em que se descobre o responsável direto, único mesmo, por furar todas as potencialidades frustradas dos pais que esperavam mais a essa altura da vida do que realmente tiveram.

Talvez, e novamente só talvez, a culpa não seja deles por não termos nos tornado o alecrim dourado semeado para brilhar a essa altura do ano ou da vida. Um alecrim que, com sorte, terá dos filhos um pouco mais de consideração quando eles exigirem distância, autonomia ou decidirem postar sobre os perrengues de lidar com os pais a certa altura da vida.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL