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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quantas pessoas você conhece que vivem relacionamentos como o de Gal Costa?

A cantora Gal Costa, que viveu um relacionamento de trinta anos com Wilma Petrillo, sua empresária - Marcos Hermes/Divulgação
A cantora Gal Costa, que viveu um relacionamento de trinta anos com Wilma Petrillo, sua empresária Imagem: Marcos Hermes/Divulgação

Colunista do UOL

16/07/2023 04h01

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Alguém deixou a TV ligada na noite de Réveillon e, no meio dos fogos, meio que por acaso, aumentei o volume para ouvir que música era aquela interpretada por Tim Bernardes em um tributo do Brasil Jazz Sinfônica a Gal Costa.

Prestei atenção no refrão, que não conhecia, e joguei as palavras no Google. Descobri que a canção se chamava "Cuidando de Longe" e era uma composição de Gal com Marília Mendonça.

"Diga que está feliz que daqui eu vou me virando. E se eu estiver distante, não quer dizer que eu não ame. Tô ensaiando a despedida, mesmo tendo outros planos."

Como nunca ouvi aquilo antes?

A música tinha uma força que, mesmo agora, sinto dificuldade em descrever. Uma força necessária que, aos que ouvem, na dor ouvida não sentem bem: pelo contrário, cria identificação e enche de coragem quem precisa de atitude para transformar em ação o que na letra é a tradução de um mal-estar.

"Você se olha sempre no espelho e não enxerga o seu avesso."

Ouvir Gal é sempre assim. Essa força transformadora ela mesma explicou em um depoimento, certa vez, sobre o dia em que foi vaiada em um festival. Ela então olhou no olho de seu algoz e cantou, com toda a raiva do mundo, o refrão de "Divino Maravilhoso".

É essa voz que busco toda vez que me vejo em conflito e preciso enfrentar alguém.

Mas desde que li, com aflição, a reportagem da revista "piauí" sobre o relacionamento da (talvez) maior voz da música brasileira que já existiu com sua companheira, as letras têm se embaralhado um tanto. Ouço agora o início de uma música e imagino alguém tentando me dizer o que fazer o tempo todo: "Você precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina, da gasolina." Os imperativos me pegam no que eu já sei e no que eu não sei mais.

A reportagem, como se sabe, ouve uma multidão de pessoas próximas a Gal Costa que contam absurdos sobre Wilma Petrillo, sua viúva. Há detalhes das suspeitas que foram parar na Justiça e outras que ainda merecem investigações. Isso é conversa para a página policial.

Mas, como um som único produzido por diversas vozes, quase todos os entrevistados testemunham momentos em que Gal foi simplesmente humilhada pela companheira. Parece fofoca de backstage, mas é bem mais que isso. "Você não sente vergonha de estar tão gorda?", perguntou certa vez Petrillo a Gal, segundo um dos relatos.

Em outro relato, a companheira se refere a Gal como alguém que já não despertava o interesse da indústria da música. Estava envelhecida, quase liquidada. Como assim? A Gal, sabe?

Os testemunhos mostram que, em cerca de três décadas de relacionamento, Gal deixou o gerenciamento de sua carreira na mão de alguém que a convenceu de que sem aquele pulso firme ela seria simplesmente estraçalhada pelo mundo. E ela parecia convencida de que era incapaz de dar um passo sozinha e cuidar de si.

Ao longo da vida, todo mundo já testemunhou relacionamentos do tipo. Alguém se aproxima, encanta e aos poucos começa a manipular sentimentos e decisões. Começa afastando a pessoa dos amigos, de familiares e todo mundo que poderia apontar que alguma coisa errada não estava certa naquela rotina. (O famoso e perigoso "em conversa de casal, ninguém põe a colher" — e Gal era bastante reservada sobre sua vida pessoal.)

O ataque recorrente à autoestima é um clássico nos relacionamentos do tipo. Cansei de ver gente chamada de burra, gorda, velha e desastrada por quem um dia jurou eterno amor no altar ou em rede social.

Em geral são relacionamentos em que alguém do par passa a se resumir a uma força de trabalho controlada e ininterrupta usada apenas para manter no alto a régua do padrão de vida da outra pessoa. Tudo para que o dito amor, que de amor não tem nada, nem verso, dure mesmo para sempre.

É um círculo que se fecha e se comprime até que a pessoa manipulada perde contato com o mundo e deixa de desconfiar que em troca de tanto medo e esforço recebe muito pouco ou quase nada. Pudera: está convencida de que aquele mínimo é muito para o que ela merece. Ninguém mais iria querer dividir a vida com ela, afinal.

Uma das cenas mais tocantes da reportagem é o momento em que Gal se encontra com o amigo Ney Matogrosso e pergunta se ele, sumido, não gostava mais dela. Ouve de volta que ele a ama. E ambos não demoram a entender a razão do afastamento, pessoal e profissional.

Esse é outro clássico dos relacionamentos abusivos: o momento em que a pessoa se torna propriedade única e exclusiva de alguém.

Sim, é muito difícil analisar o contexto do relacionamento de uma pessoa pública quando ela não está mais aqui para dar a sua versão.

E sim: é fácil demais desbotar a imagem que temos de uma grande artista e associá-la a uma pessoa fraca, manipulável e insegura fora dos palcos. Gal detestaria ser lembrada dessa forma.

Como resumiu minha amiga Luciana Bugni, também prefiro lembrar dela como a artista lasciva, sensual, talentosa e livre que aprendemos a admirar.

Mas a exposição de sua vida a duas é quase um serviço de utilidade pública: coube ao exercício jornalístico escancarar, com inúmeras entrevistas e confronto de versões, o que um de seus produtores resumiu como mecanismo perverso das relações abusivas. Todo mundo está sujeito a isso. Até quem veio ao mundo para dar voz e impulso àquela força estranha que nos leva a cantar.

O mesmo produtor lembrou, em suas redes, que muitas vezes a pessoa não sabe que está em uma relação abusiva e, por mais que tentem, nem os amigos nem a família (a essa hora afastados) têm força para tirá-la da situação. Fora da música, nunca é muito fácil virar para alguém e dizer: "Vá, se mande, junte tudo o que você puder levar." Ou explicar que, sim, "estou tão cansado, mas não pra dizer que não acredito mais em você".

A Gal que deu voz a um mundo a ser desafiado e enfrentado, ao que tudo indica, foi também vítima de um intitulado mal secreto e tudo mais que se joga em verso.

Esteja onde estiver, ela ainda ensina que é preciso estar atento e forte. A escuridão pode morar ao lado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL