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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cai quem quer? No Brasil, o golpista está mais perto do que a gente imagina

Em 2022, o Brasil registrou 1.810.409 casos de estelionato, mais do que o triplo dos índices apurados em 2018 - Getty Images
Em 2022, o Brasil registrou 1.810.409 casos de estelionato, mais do que o triplo dos índices apurados em 2018 Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

28/07/2023 04h01

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Email inválido

Não faz muito tempo, um estelionatário se passou por meu irmão para pedir dinheiro, pelo WhatsApp, ao meu pai. Justamente porque a possível vítima não desconfiou que era um golpe, o bandido recebeu, em vez de dinheiro, o maior sermão que provavelmente já ouviu na vida.

"Você é louco, moleque? Por que diabo você acha que eu teria esse tanto de dinheiro. E se tivesse, por que te daria?"

A conversa só foi encurtada depois que o meliante chamou meu pai de "senhor".

Não tivesse mexido com a pessoa errada, dessas que não abrem a mão nem para dar tchau, o assaltante do WhatsApp poderia se gabar de ter ajudado a reforçar uma estatística apontada no último Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Em 2022, o Brasil registrou 1.810.409 casos de estelionato, mais do que o triplo dos índices apurados em 2018 (426.700). Isso significa que, no ano passado, três brasileiros foram vítimas de estelionatários a cada minuto. É muita gente.

Segundo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo anuário, os números coincidem com o período da pandemia, quando as pessoas passaram mais tempo em casa e ampliaram as interações online.

A nova dinâmica social obrigou a criminalidade a também se adaptar: em vez de pular muros ou esperar possíveis vítimas no farol, eles migraram para as perigosas esquinas do mundo online, onde já não precisam apontar armas gritando "perdeu". Muitas vezes, basta ilustrar a identidade visual e manter uma boa conversa, como os vendedores de carro e os banqueiros.

Foi na pandemia que os possíveis alvos, sem poder trabalhar ou retomar a rotina, se tornaram mais vulneráveis a golpistas que ofereciam oportunidade e dinheiro fácil.

Uma das vítimas, precisando de recursos, caiu não em uma, mas em quatro oportunidades do tipo até virar notícia. Em quase todas, os falsos agiotas exigiam uma taxa para liberar os valores solicitados. A vítima já tinha caído três vezes na conversa quando, na quarta, voltou a se iludir, encorajado por mensagens de seguidores de uma página que compartilhavam comprovantes e a satisfação com os serviços. Eram parte do esquema, cada vez mais atualizado.

A explosão de casos de estelionato é inversamente proporcional à queda em índices de roubo a transeunte, residência, carga e estabelecimento comercial apontado pela pesquisa. Em compensação, à medida que a pandemia arrefecia, aumentava também os números relacionados a roubo de celular, o espaço, afinal, onde guardamos tudo o que interessa.

Lembro do esforço de criminosos que apavoraram a rua onde morava quando era criança, no interior, para pular nossos muros, estourar nossas portas, envenenar nossos cães e sair de lá carregando videocassetes e TVs de tubo, geralmente os objetos mais valiosos disponíveis no nosso bairro. Seus sucessores devem sorrir de alívio quando ouvem histórias dessa época.

O estelionato dos dias atuais, segundo os especialistas, é o típico "crime que compensa", já que, em tese, não envolve violência contra as vítimas.

Por outro lado, a (nem tão) nova modalidade criminosa exige mais criatividade de seus autores. É uma aposta que envolve audácia e um tanto de ambição e/ou ingenuidade do outro lado — inclusive para não admitir que também pode ser alvo. Sim, estamos todos digitalmente vulneráveis.

Dias atrás, a Xuxa precisou vir a público dizer que, diferentemente do que andavam espalhando por aí, ela não estava sorteando cartões no valor de R$ 19 mil para quem entrasse em uma live com um endereço estranho. Quem clicou talvez não tenha percebido que o nome da página com a imagem da Rainha dos Baixinhos era "More coleguinhas".

O alerta era tão útil quanto insuficiente, já que até sua filha, Sasha, já caiu em armadilhas online — no caso, dos bitcoins.

Com o Pix, as moedas eletrônicas e outras invenções que não estavam em cena até pouco tempo, como os apps de relacionamento, golpistas encontraram nas estradas virtuais uma rota quase sem curvas para encher os bolsos.

Há quem se passe por filhos e conhecidos. Outros, por românticos incorrigíveis.

Em 2022, quando a Netflix lançou o documentário "O golpista do Tinder", muita gente se assombrou com a lábia do garanhão que arrancava dinheiro das vítimas com a mesma facilidade com que as encantava. Na sequência, uma sucessão de casos semelhantes, guardadas as devidas proporções, vieram a público. O golpista estava mais perto do que imaginávamos. Foi o que descobriu uma empresária de 50 anos de Vitória que só percebeu o enrosco depois de perder quase meio milhão de reais.

O "golpe do amor", como ficou conhecido, é geralmente preparado por estelionatários que ostentam uma vida fantasiosa e usam as redes sociais como cartão de visitas. Nem sempre, porém, a arapuca deixa de lado o uso da violência.

Em suas páginas, a influencer Vitória Guarizo Demito ostentava uma rotina de luxo e viagens. Inventava histórias como a de que só não participou de uma das edições do Big Brother Brasil por medo da covid.

Nesta semana, ela foi presa com um suposto comparsa sob a acusação de atrair um homem para um programa, dopá-lo e torturá-lo para arrancar R$ 40 mil de sua conta bancária.

No país dos estelionatários, é bom desconfiar de tudo. Até da mãe. Ela pode ter sido clonada.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL