Matheus Pichonelli

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Opinião

Existe amor em SP. Mas ele foi atropelado em frente ao posto de gasolina

Eu me lembro muito bem do dia em que cheguei: mal botei os pés, ainda não cansados nem feridos, na estação Tietê, em São Paulo, e eles se condicionaram a acompanhar o ritmo maquinal dos passos apressados de quem não quer ver a porta do metrô se fechar.

Da multidão de corpos, chamava a atenção o fato de que ninguém ali andava de mãos dadas. Casais e seus filhos afunilavam os corpos numa linha reta, para caber em cada equação da distribuição do espaço. Eles se dividiam e se alongavam em filas das escadas rolantes e plataformas. Ali ninguém anda; acelera.

Não havia tempo para nada. Nem para conversa nem para cumprimentos, tão comuns de onde eu vinha.

Mas naquelas zonas de concreto, asfalto e ferros retorcidos havia brechas de afeto como flores raras, teimosas, que brotam das trincheiras e que quase ninguém repara.

Já no vagão o menino leva o caderno da menina; a outra mão segura as alças de apoio. As mãos dela em sua cintura.

A cidade do labirinto místico dispensa cenários idílicos — uma praia, uma praça, um jardim — em suas demonstrações, raras e tímidas, de afeto. Ali as pessoas se beijam nas plataformas de ônibus; nas esquinas, perto de lixeiras, com a fumaça e as buzinas como companhia. Brotam beijos em canteiros de obras. Em protestos. Na porta da sala de aula. Na escada. No vão do Masp. No show. Na parede da banca de jornal fechada. Na mesa do lado de fora do bar — muitas vezes rápido, intenso, proibido, um olho fechado e outro alerta, para não serem flagrados. Entre nuvens de cigarro. Beijos.

Cada manifestação competia com os gritos dos muros de paredes pintadas para um (não tão) velho clipe do Criolo. "Mais amor, por favor." "O amor é importante, porra."

No último domingo, um homem e uma mulher saíram para passear com seu cão no Capão Redondo, em São Paulo.

Deles sabemos quase nada. Nem um nem outro tinha nome. Talvez fossem casados. Talvez tivessem acabado de se conhecer. Talvez estivessem ali de passagem. Talvez não pudessem estar ali. Ali, onde a rua acaba e os sonhos vão, como numa música, talvez não tivessem outro lugar para ir. Talvez.

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Não havia nada ali que lembrasse o cenário de uma música sobre um dia de domingo. Havia uma rua estreita. Carros passando. Fios de alta tensão. Um poste pintado de branco. Calçadas esburacadas. Um posto de gasolina, como tantos na paisagem de uma cidade movida a gasolina e óleo diesel.

Nada, nenhum sinal de verde, sombras, respiros, árvores em que registramos nossos nomes com canivetes quando algo brota à flor da pele, desacata a gente e é revelia.

Daquele casal que não sabemos o nome não saberemos nunca o que pensaram quando fecharam os olhos pela última vez. Ela vestia branco e andava com os cabelos amarrados. Ele estava de preto.

Não era o lugar propício para um último beijo, mas era o único que havia, numa esquina de calçada sem meio-fio, em frente às bombas de combustível.

Só um deles, ela, acordou.

Numa velocidade estúpida, um motorista movido a álcool interrompeu a cena arrastando os namorados para longe, para sempre.

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O homem morreu ali mesmo, na contramão, atrapalhando o tráfego. O cão, informa o noticiário, sobreviveu. A namorada, não se sabe.

Existia amor naquela esquina onde nada, nem o último beijo, podia ser adiado. Era uma esquina entre tantas de uma cidade que soterrou seus rios e córregos e espremeu seus moradores para o canto de calçadas para dar lugar ao automóvel, uma prioridade urbana comprada, financiada, polida e adesivada à imagem e semelhança de seus donos de duas patas.

Na obra de Nelson Rodrigues, é o acidente que precede a segunda tragédia: um beijo entre duas pessoas que choca mais a sociedade da época do que um assassinato a quatro rodas. Na cena captada pelas câmeras de um posto de gasolina em São Paulo, é o beijo que antecede o acidente.

Naquele passeio matinal, do qual assistimos a um trecho por pura bisbilhotagem, as vítimas talvez lembrassem de alguma história e sorrissem. Deles não vemos os rostos, só as costas. Talvez fizessem juras. Ou planos. De fuga. Ou de compromisso.

Depois daquele beijo não é nome de filme. É um escombro.

Naquela cidade, flores brotam como nuvens em escombros. São o gole de vida de que falava Criolo em sua famosa canção.

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Não precisa morrer pra ver Deus.

Existe amor em SP, mas ele foi atropelado.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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