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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Aprendi com Marília Mendonça que sofrência é liberdade, não sofrimento

Marília Mendonça - Reprodução / Internet
Marília Mendonça Imagem: Reprodução / Internet

Colunista do TAB

09/11/2021 04h01

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Lembro exatamente do dia em que ouvi Marília Mendonça pela primeira vez e, logo no refrão, ficou clara a força aglutinadora de sua música. Sob a toada da voz encorpada da cantora, qualquer um de nós seria capaz de fazer as pazes com o maior inimigo, tentar reatar com ex-amor, mandar a real para as amantes ou olhar com outros olhos para as prostitutas.

O ano era 2016 e eu fora convidado para fazer uma pesquisa na periferia de Salvador. O foco era entender como os jovens se divertiam, as dificuldades para ter acesso a lazer e a importância dos encontros com os amigos, entre tantas outras questões. Cheguei ao Alto de Coutos, um bairro de 5.000 habitantes, no subúrbio ferroviário da capital baiana.

Mais de 200 jovens se aglomeravam no entorno de um carro tunado com caixas de som, atentos a movimentação do baile. Eles comentavam sobre os outros frequentadores, enviavam mensagens para os contatinhos para confirmar se lá estavam, caminhavam de um canto a outro para reconhecer a freguesia da noite.

Lá pelas duas da manhã, já embriagados, aqueles que não conseguiram encontrar um parceiro caíam na sofrência. Foi nessa hora que fui apresentado a Marília Mendonça. Uma menina com não mais de 20 anos, vendo minha desconexão com o momento, se apressou em me atualizar. Aquela era a sua rainha, a rainha da sofrência.

Nas caixas de som do carro da praça, o DJ de quatro rodas ditava o modo da multidão de sofridos. Já no primeiro tom da música, eles fechavam os olhos, levavam as mãos próximas ao rosto em um transe como se tentassem abraçar o próprio tronco e dizer ao mundo que, apesar dos pesares, eram a melhor companhia para si mesmos. Fiquei espantado com o poder da música.

Quando retomavam a conexão com o mundo, tiravam os celulares dos bolsos e perdiam o interesse na praça. Agora, era a vez das telas. Eles partiam para a retomada de contatinhos com mensagens rápidas (Oi, sumido...) pelos aplicativos de mensagens ou enviavam áudios longos e melosos em que tentavam provar que jamais conseguiram esquecer os amores passados.

"Ai que saudades dos meu ex", gritou minha informante, assim que as caixas de som ecoavam o refrão música da cantora sertaneja. Os jovens da periferia de Salvador tentavam me convencer que, àquela altura, não havia nenhuma cantora no Brasil capaz de resumir com palavras, ritmo, melodia e tamanha eficácia, o sofrimento da juventude brasileira.

A sofrência é um tipo de sofrimento inerente a experiência de vida dos mais jovens na contemporaneidade e que, embora gente de outras gerações curta o som, eles não o fazem dentro da mesma lógica dos millennials (nascidos entre 1980 e 1995) e dos Zs (1995 - 2010).

Ao contrário da chamada música de corno ou de dor de cotovelo de outrora, a sofrência é um tipo sofrimento dos nossos tempos. Quando se impõe, reforça alguns dos pilares fundamentais do espírito do tempo:

1 - um acentuado peso sobre o individualismo

2 - a dor do sofrimento é uma estratégia de reconhecimento da própria humanidade

3 - A memória como arma poderosa de construção do sentido para experiência cotidiana

A sofrência é vivida isoladamente. Nesses momentos, é possível reconhecer a dor ou sofrimento do outro como válido, mas é pouco provável que sejamos capazes de compartilhar ou entender a intensidade dessa viagem sentimental. Mesmo junto de outras pessoas, é sobre o centro do próprio ego que gira a experiência, o que reforça a preponderância do indivíduo sobre as relações.

No transe da sofrência, os jovens dançam sobre o próprio eixo, reservam atenção para seus sentimentos e deslocam a maioria dos sentidos para dentro de si. Fecham os olhos para não ver os outros, se preocupam em ouvir as músicas no detalhe, ainda que haja interferências no ambiente e, com os braços e as mãos cerrados junto ao corpo, tocam a própria pele como se não houvesse nenhum outro corpo com encaixe mais perfeito.

Quando muito, se valem dos celulares para enviar mensagens apaixonadas em que só os próprios desejos importam. Enviam áudios longos para contatinhos para satisfazer a vontade de falar o que pensam, sem qualquer expectativa de resposta. Ou, ainda, telefonam como se os amores do passado tivessem a obrigação de ouvir lamúrias, juras de amor alcoolizado, no meio da madrugada. E, se não forem correspondidos, choram.

Em um mundo esvaziado de sentido, dominado pelo niilismo e pela dificuldade dos mais jovens de se recolherem, lidarem com a solidão e mapearem as próprias contradições internas (como apontam os livros do psicanalista Tales Ab'Saber), a dor do sofrimento traz à tona a complexidade do que é ser humano para quem foi treinado, educado e socializado dentro de uma lógica de vida orientada pela pasteurização e pelo pragmatismo.

Se para muitos jovens a realização dos próprios desejos é sempre possível com auxílio de um aplicativo, seguindo o passo a passo de um vídeo no YouTube, com dicas do livro de autoajuda do momento, na sofrência eles aprendem que viver é também não se satisfazer e lembram que, mesmo rodeado de máquinas e algoritmos, ainda são humanos.

Por fim, com tantas dúvidas em relação ao futuro, a melhor saída é se agarrar ao passado e à memória. O ritmo de transformação dos comportamento sociais impede que os mais jovens se valham dos projetos futuros como um chamado para ação ou como um colchão para suportar os dramas do presente. Seja no trabalho, na política ou no amor, é mais fácil sentir saudades do que se viveu do que tentar imaginar o que será da própria vida no amanhã. A sofrência desloca o indivíduo para o passado, ressignifica experiências vividas de tal forma que os problemas são apagados e só se lembra do que foi realmente bom.

Marília Mendonça transformou em música o espírito de um tempo e deu sentido à vida de muitos.

O Brasil de 2021, tão sofrido, com suas músicas, caía na sofrência e enfrentava tudo com mais leveza. Sob o impacto da notícia da sua morte prematura, é ainda difícil prever o que será de nós.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL