Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Suruba ou ação de marca? Farofa da GKay é síntese da vida das celebridades
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Desconfio que todos os colunistas do UOL cogitaram escrever sobre o maior evento do país em suas recentes publicações. Seja a trupe conectada do Splash, os tarimbados jornalistas do UOL Notícias, as feministas de Universa, os modernosos de Tilt, os propositivos de Ecoa — certamente, em algum momento, passou pela cabeça de todos divagar sobre a potência criativa da Farofa da GKay. Era de se esperar.
Assim como o uso terapêutico das células-tronco, o desmatamento da Amazônia, as restrições ao aborto e a vacina contra o Sars-Cov-2 são assuntos impossíveis de serem debatidos ou questionados por pensadores de uma única editoria, a muvuca promovida por Gessica Kayane é também um dos temas híbridos produzidos pelos nossos tempos. É pauta para todo mundo, não se esgota com um só olhar e resiste a qualquer enquadramento apressado de especialista.
Bruno Latour, no livro "Jamais fomos modernos", nos ensina que, desde o século 19, a humanidade esteve preocupada em separar a vida cotidiana em caixinhas, como se os assuntos, as pessoas, as notícias e os nossos próprios problemas pudessem ser divididos em searas distintas, tratados com protocolos diferentes.
No entanto, o autor também pontua que, apesar dos esforços de ordenarmos a realidade em compartimentos, cada vez mais somos obrigados a conviver com uma imensidão de híbridos. É crescente a quantidade de temas, assuntos e problemas que resistem à classificação. Difíceis de serem rotulados ou explicados a partir de um único ponto de vista, esses fatos atravessam a realidade de ponta a ponta, de tal modo que todo mundo se sente apto a dizer algo, mas ninguém é capaz de explicá-lo sozinho.
Os avanços do capitalismo tecnológico e a onipresença das plataformas digitais e das redes sociais em nossas vidas fizeram do cotidiano uma incontrolável máquina produtora de novos híbridos.
Por se estruturar sob a lógica do "tudo num só lugar", a vida digital cria, por essência, personagens, assuntos, fatos e eventos que atravessam as antigas réguas de classificação e perturbam a maneira como pensamos o mundo. Os influenciadores de hoje são mais um desses "eventos".
Nascida em 1992, Gessica Kayane (sem acento e com G) vem de Solânea, no interior da Paraíba. Em outros tempos, teria vivido na cidade até o fim da vida, migrado para algum grande centro em busca de emprego e morreria sem que o resto do Brasil jamais soubesse de sua existência.
Inspirada nos vídeos de Whindersson Nunes (com WH e dois S) decidiu, mesmo sem estrutura, gravar vídeos no quarto da casa humilde onde morava, contanto histórias sobre o dia a dia. Ficou famosa. Hoje, com mais mais de 17 milhões de seguidores, ficou milionária por conseguir arrebatar multidões como sorteadora de iPhones. É humorista, atriz, apresentadora de TV, presença VIP, amiga da Anitta.
De modo geral, GKay fez fortuna e transita de um canto a outro pelo fato de ser uma das principais influenciadoras do país.
A profissão, por si só, já é um híbrido dos nossos tempos e recusa qualquer definição. Fruto da lógica das redes sociais, os influenciadores são pessoas que, pelo que são, atraem a atenção de milhões de pessoas dispostas a passar uma encarnação de olho no que eles comem, vestem, pensam e consomem.
Como ganham dinheiro falando sobre a própria vida, derrubam algumas importantes separações da modernidade e reafirmam a identidade híbrida. Eles lidam com outros limites entre público e privado, suas singularidades são a força de trabalho e estão sempre à venda, seus gostos e jeito de viver são pessoais, mas podem ser forjados, a depender da oferta de alguma marca ou empresa.
Como se não bastasse, também lembra Latour, os híbridos potencializam a invenção de outros.
Na última semana, GKay resolveu fazer da própria festa de aniversário algo que ainda não fomos capazes de entender. Não se sabe se a comemoração foi um festival de música, um evento publicitário, um reality show, uma ode à diversidade, um marco do entretimento nacional ou uma catarse coletiva depois de tanto tempo sem aglomeração.
A farofa da GKay aconteceu em um lugar chique de Fortaleza e reuniu por três dias as celebridades mais populares da internet. Boca Rosa, Doutora Deolane, Pequena Lo, Fiuk, Kéfera, Álvaro, Viih Tube, Valesca Popozuda e Toquinho eram alguns dos ilustres convidados dispostos a enfrentar a maratona de prazeres oferecidos pela anfitriã que começava logo cedo com atividades na piscina e atravessava a noite com shows dos maiores astros do pop nacional. No fim da festa, os convidados se enfurnaram em um dark room erótico até o nascer do sol.
Acredita-se que a reunião tenha custado algo perto de R$ 3 milhões. Para qualquer um, gastar isso em uma festa de aniversário é um prejuízo sem tamanho, mas a influenciadora paraibana rompeu mais uma vez as classificações tradicionais e fez do gasto um investimento.
A festa impactou mais de 66 milhões de pessoas nas redes sociais e um público maior começou a conhecer seu nome. Ganhou mais de 2,5 milhões de seguidores, o que aumentará o valor das parcerias pagas feitas com as empresas e marcas. Já foi sondada por vários empresários para fazer do encontro um evento de grande porte, com artistas internacionais, ingressos para o grande público e verbas publicitárias.
O dia a dia dos influenciadores nos desperta interesse pela capacidade quem têm de construir uma vida no "entre". Sem saber se estão certos ou errados, se são reais ou farsas, inalcançáveis ou gente como a gente, seguimos vidrados em suas vidas em busca de entender o que realmente são.
Quem é GKay? O que foi a farofa?
Depois de tantos dias acompanhando os passos dos influenciadores e seus amigos, ainda não somos capazes de dizer. Nem seremos. Assim são os híbridos.
De todo modo, sem respostas, seguimos de olho. Sorte a deles.
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