Topo

Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Rebolando a raba pelo preço do gás: geração Z é mais leve do que éramos?

Totô de Babalong - Reprodução / Internet
Totô de Babalong Imagem: Reprodução / Internet

Colunista do UOL

13/08/2022 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O inferno são os outros.

A frase atribuída Jean-Paul Sarte, pai do existencialismo, lembra que somos livres para sermos quem desejamos, até que nossos projetos de vida se choquem com os dos outros. A convivência e o embate com outras visões de mundo nos dão a certeza de que somos frágeis, fracos e impotentes. O resultado é uma vida içada por braços e mentes — indivíduos marcados por uma angústia sem fim.

Nessa semana, a minha carga de sofrimento levada à sessão de terapia veio da pesquisa de campo com jovens modernosos na capital paulista.

Lembrei do francês na entrada da Tokyo, boate com ares de inferninho no centro de São Paulo. Era tarde da noite de uma segunda-feira chuvosa e eu fora convidado para o lançamento do álbum de Totô de Babalong, cantor e fashion designer, filho da elite política baiana e do Paraná que, depois de rodar o mundo numa jornada de estudos e trabalho voluntário, decidira que seu ofício era cantar na maior metrópole da América do Sul.

Pelo desafio de pesquisa, topei.

Coloquei a roupa mais moderna do armário e fui. Na fila, eu e o segurança da boate percebemos que minha concepção de jovem e a dos outros frequentadores (todos com não mais de 25 anos) eram tão próximas quanto o céu é da terra. Foi quando ele me interpelou:

- O senhor está na fila certa? Aqui é a fila da boate Tokyo. A loja de empanadas é na próxima porta. Não precisa de fila para entrar lá.

- Tô na fila, respondi.

O inferno são os outros, pensei.

Àquela altura, os jovens chegavam aos montes e festejavam o encontro ainda na rua. Eram muitos. Mas, na medida em que se amontoavam na porta do estabelecimento, minha estrangeirice ficava mais evidente. Logo, meu moletom de rapper norte-americano mais lembrava o pijama dos velhinhos de um asilo do que uma roupa de balada. Eu explico.

Os frequentadores transitavam com fluidez pelos códigos do vestuário contemporâneo. As meninas pareciam ter saído do provador de um brechó do Largo do Arouche. Ou apostavam em vestidos lurex, justos, colados ao corpo como suas mães faziam nas pistas de dança das boates dos anos de 1980 à la Dancing Days, ou vestiam calças jeans largas e blusinhas minúsculas, escondidas sob casacos enormes de pelúcia inspirados no filme "O Rei Leão" (estampas de zebra, onça, vaca, urso e outros animais). Já os garotos, dado que os códigos de masculinidade são mais rígidos, rompiam de forma radical com os padrões. Sustentavam óculos com lentes coloridas sobre o olhos, blusinhas regatas transparentes, calças justas de lycra, meias coloridas até os joelhos.

Um dos ícones da noite chegou quando eu já estava na pista de dança vendo a multidão inebriada, ao som As Travesti, quicando sobre os próprios joelhos, a mandar Jair Bolsonaro baixar o preço do gás.

Esse Menino, humorista, influenciador, famoso pelo vídeo da "Pafaizer", chegou com um espesso bigode sobre a boca, um vestido com estampa Pucci em tons de azul e uma bota branca, de cano longo, comuns nos tempos em que Xuxa ainda era a rainha dos baixinhos. Com autoestima invejável, atravessou o salão. Equilibrando-se no salto, sustentou o look, agarrado a uma bolsinha vintage colada ao corpo.

Meu sentimento de inadequação amenizou enquanto ia me lembrando de conceitos fundamentais à compreensão do comportamento dos jovens da geração Z — os nascidos entre 1995 e 2010.

Há tempos falamos como a mistura de referências temporais, de gênero, classe e de estilo de vida diferentes é onipresente na construção de identidade dos mais jovens. A mashup culture, essa sabedoria de misturar lé com cré de um jeito particular, moderno e contemporâneo é um dos resultados do intenso processo de digitalização do cotidiano — vivido de forma intensa pelos Zs desde a tenra idade.

Nas plataformas digitais ou nas redes sociais, referências muito distintas aparecem na mesma tela, juntas e misturadas. Desse modo, não é de se espantar que o modelo mental apreendido no digital se concretize no real como um estilo de vida e consumo.

Se, para mim, nascido nos anos de 1980, a harmonização estética, moral e ética depende de uma combinação harmônica entre referências similares (moletom com uma pegada streetwear), de forma a sustentar uma identidade, os mais jovens apostam em um caleidoscópio de múltiplas referências para mostrar conhecimento, capacidade de trânsito por diversos universos sociais e jogo de cintura. O cenário se repete no território da moda, mas com desdobramentos em outros campos como o do gênero e o da sexualidade.

Descobri depois que a mistura de traços tipicamente masculinos e femininos, recorrente no vestir naquela noite na Tokyo, tem nome, intencionalidade e missão. Chama-se genderfuck. Isto é, um movimento rebelde, político e estético que busca misturar expressões identitárias com o intuito de bagunçar/expandir as concepções binárias de gênero.

O termo é do começo dos anos de 1970. Ganhou o mundo a partir do crescimento do movimento pelos direitos civis LGBTQIA+ em São Francisco, na Califórnia. Christopher Lonc, ativista e artista, foi um dos porta-vozes do movimento. Em um artigo publicado no jornal Gay Sunshine, "Genderfuck and Its Delights", clamava para que homens se vestissem com roupas comumente atribuídas às mulheres para "acabar, de uma vez por todas, com toda a cosmologia restritiva de gênero".

O convescote na boate Tokyo (será que ainda se chama boate?) bagunça mais um campo antes visto como separado e distante pelas outras gerações: a política. Paras os Zs, é se divertindo, roçando os corpos, "rebolando a raba até o chão pelo preço do gás", atiçando os hormônios que se faz política, marca-se posição, demanda-se e constrói-se um novo mundo.

O deslocamento de uma esfera à outra e os novos atravessamentos impostos pelos mais jovens nos dão a sensação de que eles são mais livres e leves do que éramos no nosso tempo. A liberdade de fazer mais escolhas, de colocar em prática um estilo de vida desejado sem levar em consideração o que os outros vão pensar nos leva a crer que as ideias de Sartre estão com os dias contados.

Ledo engano! Os Zs vivem em angústia, todo mundo já sabe — dados de depressão, ansiedade e angústia são muito maiores entre essa geração que em outras. Vai ver, a dificuldade de gente mais velha de entender o que eles fazem seja o elemento perturbador.

O sono e um cansaço imenso não me deram o direito de esperar o som baixar para perguntar. Voltei pra casa, às duas da manhã, sem a resposta. Morto!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL