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Michel Alcoforado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Indigestão' com o caso 'bife de ouro' é puro preconceito de classe

Colunista do UOL

10/12/2022 04h00

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Meus colegas de portal devem concordar. Não há coisa pior do que começar a escrever um texto e, antes de terminar, se dar conta de que o tema já esfriou. Em tempos digitais, as notícias viram banheiro de cachorro ou embrulho de peixe antes ainda de serem publicadas.

Dessa vez dei sorte.

Faz quase uma semana que Ronaldo Fenômeno convidou os jogadores da seleção brasileira para irem jantar num restaurante no meio do turbilhão da Copa do Mundo. A trupe se dirigiu ao Sheraton Grand Doha, um hotel cinco estrelas na capital do Qatar, pouso de um dos restaurantes do momento. Com sede em Istambul, Dubai, Nova York e outras metrópoles globais, Nusr-Et é a churrascaria do momento.

O lugar é comandado por Nusret Gokçe, chef com ares de Mister M de programa dominical que mantém o mistério de suas criações vestindo o mesmo uniforme. Sem se preocupar se é dia ou noite, carrega óculos de sol, um corpo musculoso marcado por uma camiseta branca básica e um coquinho no cabelo como se tivesse saído de uma reunião com essa gente de startup. O clímax se dá quando ele chega à mesa, se curva como um cisne sobre a iguaria e despeja um pó de pirlimpimpim (nada mais do que sal metido a besta) sobre os assados na frente dos clientes.

Os jogadores pediram o prato mais famoso do cardápio, um grande corte de "rib-eye" (bife de costela) folheado a ouro comestível 24 quilates, a um custo de aproximadamente R$ 3.300. Foi o suficiente.

O vídeo viralizou nas redes sociais e o país parou. O Brasil do presidente depressivo no Alvorada, sem dinheiro no MEC e no INSS, com milhões de famélicos pelas ruas, achou de bom-tom parar tudo e levar ao tribunais das redes sociais o jantar: podiam eles gastar uma grana dessas em um único jantar?

Deu Briga. Thiago Amparo, colunista da folha e professor de direito na FGV-SP (Fundação Getulio Vargas de São Paulo), vaticinou no Twitter: "isso não deve sequer ser digerido. É puro suco do Instagramável vazio". Walter Casagrande distribuiu bordoadas para todo lado ao criticar aquilo que já se chama da "geração da carne de ouro". André Trigueiro, jornalista das florestas, viu "a ostentação seu nível mais indigesto". Mas o melhor comentário veio de uma amiga, rica, única moradora de um apartamento nababesco na quadra da praia de um bairro nobre do Rio de Janeiro, que quis mostrar toda a sua indignação em um grupo de WhatsApp: eu odeio ostentação!

A celeuma revela os meandros do arranjo cultural brasileiro. Tolos são aqueles que acreditam que só basta ter dinheiro para comprar o que se quer. Consumir é um ato social e, assim como uma fala fora de lugar ou um comportamento indesejado, quando compramos, estamos abertos à avaliação. Nesse jogo, toda relação de crédito e débito abre uma arena de batalhas de julgamentos sobre o que se pode e não se pode, o que se deve ou não fazer.

Toda e qualquer atividade de consumo precisa de uma chancela moral, uma espécie de permissão do grupo ou da sociedade para acontecer. Caso contrário, o comprador é estigmatizado, rechaçado e mal visto e vê sua reputação jogada à sarjeta. Comprar é só o resultado da equação entre desejo e dinheiro. É, sobretudo, uma forma de conversa com outros na qual emitimos sinais sobre o que somos.

A conclusão sobre se um hábito de consumo é supérfluo, perdulário ou fruto de uma ostentação desmedida passa longe da avaliação dos economistas ou dos especialistas em finanças pessoais. Não é um cálculo matemático, mas social.

O bife do turco inebriado não fez nem cócegas na conta bancária dos convidados de Ronaldo naquela noite. Só Eder Militão, zagueiro da seleção, tem um salário anual de R$ 36 milhões e carrega no pulso um relógio Rolex avaliado em mais de R$ 3 mi. Os críticos se chocariam ainda mais ao saber que folhas de ouro comestíveis podem ser compradas na internet por menos de R$ 40 o cento. Isto é, valem menos do que hambúrguer vegano, os bowls de chia com iogurte de cabras puras, o sal rosa do Himalaia ou brigadeiros gourmet sem glúten, sem lactose, sem açúcar e sem gosto — comuns no cardápio da esquerda festiva (na qual também me incluo).

O rótulo de cafona atribuído ao jantar dos atletas ricos da seleção revela o viés moral da elite intelectual brasileira, que tende a considerar seu gosto mais legítimo e moralmente aceito do que o dos outros.

É na mesma toada que as patroas criticam os gastos das empregadas com celulares da moda, enquanto elas também se esforçam para pagar as parcelas da bolsa de grife cara ou do carro blindado. Ou os metidos a leitores que criticam a gastança dos mais pobres enquanto acumulam milhares de livros não lidos a enfeitar as estantes dos apartamentos cool, minimalistas e vintage, devendo tubos aos bancos. Ou, ainda, os empanturrados de carne bovina desde a tenra infância, que decidem que às segundas-feiras não se come mais nem um bifinho em nome da paz mundial.

Afinal, quem diz que as tanajuras bundudas vendidas a peso de ouro nos restaurantes de Alex Atala são moralmente mais aceitáveis que as iguarias gringas? Quem define que as taças cheias de vinho milionário no Fasano são mais transgressoras do que a cerveja bebida na ditadura catari? Por que o bifão do turco, com sucesso no mundo todo, foi criticado só agora quando os jogadores brasileiros comeram e pagaram com o próprio dinheiro? Quem define o quê?

Ronaldo se disse vítima de inveja. Errou. Ele tomou os seus críticos pelo próprio gosto e imaginou que nós, diante da fortuna no bolso, nos meteríamos nos mesmos buracos da sua trupe. Eu discordo. Na lógica brasileira, talvez, morrêssemos de inveja se a cena tivesse passado num encontro entre homens públicos, com canapés, lagostas e a melhor champanhe servida a bordo de um avião da FAB. Tudo de bom gosto e pago com dinheiro público.

Ali, é só o choque de ver gente de origem pobre ficar rica com o próprio esforço, gastando dinheiro como quer.

É preconceito de classe. No Brasil, isso sim é o mais difícil de digerir.