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Paulo Sampaio

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Usuária de ivermectina, pastora Sarah Sheeva cita trauma de piolho

Pastora itinerante, atualmente Sarah Sheeva se hospeda em um ex-hotel fazenda no interior de SP - Fernando Moraes/UOL
Pastora itinerante, atualmente Sarah Sheeva se hospeda em um ex-hotel fazenda no interior de SP
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Colunista do TAB

23/04/2021 04h01

A entrevista mal havia começado quando a pastora Sarah Sheeva se dirigiu à filha, Rannah Sheeva, 29, e disse: "Querida, traz a ivermectina pra mim, por favor". O pedido, feito a esmo, soou como um sinal de que Sheeva estava disposta a polemizar.

Ivermectina é um medicamento sem eficácia comprovada no combate à covid-19. Junto com a hidroxicloroquina, tornou-se uma espécie de "droga política". Se não previne ou cura, funciona como um indicador de apoio tácito ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Em uma atitude deliberada, ele ignora o consenso da comunidade científica e recomenda por conta própria o chamado "tratamento precoce".

Maconha e piolho

Bolsonarista ardorosa ("Amo! Amo!"), a pastora acredita que "muita gente desinformada deixa de se prevenir só porque não simpatiza com o jeito do presidente".

O alinhamento ideológico de Sarah com o atual governo vai muito além da recomendação emblemática da ivermectina. "Se Bolsonaro não tivesse sido eleito, que Deus te mostre isso!, o comunismo estaria instaurado e nós viveríamos uma anarquia completa", acredita a pastora, que tem 48 anos e é a mais velha dos seis filhos da cantora Baby do Brasil e do guitarrista Pepeu Gomes. Sarah nasceu no auge da ditadura militar, em um sítio em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio, onde seus pais e os outros músicos do grupo Novos Baianos compartilhavam uma experiência coletiva cultural e existencial, inspirada no movimento hippie.

Embora tenha vivido pouco no sítio, Sarah Sheeva reage à lembrança daquele período com repugnância. "Tomei horror àquela realidade. Era muita maconha, piolho, falta de banho. As pessoas hoje só lembram do lado 'paz e amor'. Ninguém conta que o povo acordava com larica e arrombava o cadeado do armário para roubar o Leite Ninho das crianças...Teve um dia em que a polícia bateu lá, e esconderam a maconha na minha fralda!"

Parece sintomático: uma das indicações da ivermectina, segundo a bula, é no combate aos piolhos.

Sarah Sheeva: depois da dose de ivermectina, ela louva a luz do fim da tarde: "Deus cura, mas não abestalha" - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Sarah Sheeva: depois da dose de ivermectina, ela louva a luz do fim da tarde: "Deus cura, mas não abestalha"
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Greve, anarquia e PT

Expansiva, dramática, contundente, Sarah Sheeva se lança em argumentações que parecem brotar em associação livre de ideias. Ao contar que estava morando no Espírito Santo em 2017, quando a paralisação da Polícia Militar gerou uma grave crise na segurança do estado, ela faz uma extravagante ligação da greve com "anarquia", "guerra civil" e "Lula". "Você acha que, se o PT tivesse ganhado a eleição, nós estaríamos sentados aqui nessa varanda, conversando com tanta tranquilidade?"

A pastora recebeu a coluna na sede de uma fazenda que fica a cerca de 100 km de São Paulo, para onde se mudou há pouco mais de três meses. Convertida desde 2001, ela explica que atualmente não está ligada a nenhuma denominação cristã específica ("Deus é um só"). Segundo diz, sua missão é pregar a palavra do Senhor em viagens pelo Brasil e o mundo.

Com um tom sinistro, ela pede para não dar detalhes da localização da fazenda — que no passado abrigou um luxuoso hotel —, porque teme ser perseguida por fãs obcecados. "Sou uma solteira famosa, e graças a Deus nunca fui feia. Quando você diz que vive em abstinência sexual, tem maluco que acha que você tá fazendo tipo e vem atrás para conferir. Já sofri perseguição de um menino em Goiás. Ele nem era do mal, mas foi um susto."

Desejos adormecidos

Sarah Sheeva afirma que não faz sexo há 19 anos. "Até os 28, fui muito promíscua", diz. Em 2011, a pastora criou um evento chamado "Culto das Princesas", dedicado a mulheres que querem seguir seu exemplo e deixar de ser "cachorras" — nas palavras dela. "Orei a Deus para adormecer os meus desejos. Pode acreditar, Ele é capaz de transformar nossa vontade."

Apesar de longeva, a imunidade de Sheeva contra impulsos sexuais não é 100% garantida. "Se eu ficar me instigando, se assistir a um filme sensual, bom, eu sou uma pessoa normal, né? Vou ficar mexida. Mas você não vai me ver aqui, parada, dizendo: 'Ai, que tesão'. Isso não existe."

A primeira apresentação do evento das princesas reuniu 100 mulheres ("a gente esperava 15"), mas logo esse número se multiplicou ("chegou a 4 mil") e foi preciso migrar para espaços maiores. Hoje, a página do evento no Facebook tem cerca de 120 mil seguidoras. Diante da enorme demanda, Sheeva transformou o culto em um curso de 12 aulas, que se estendem por três meses. Por causa da pandemia, o evento foi gravado, mas a essência é a mesma. Ela ensina as alunas a "pararem de aceitar migalhas emocionais de homens safados". "A cachorra come restos atirados ao chão. A princesa se banqueteia na mesa do rei, que é o Pai Eterno."

Convite para o "Culto das Princesas", que agora virou curso dedicado a "cachorras" arrependidas - Reprodução - Reprodução
Convite para o "Culto das Princesas", que agora virou curso dedicado a "cachorras" arrependidas
Imagem: Reprodução

Aconselhamento unissex

Liberado apenas para mulheres, o culto acabou despertando a curiosidade dos homens. A pastora então inventou o "Aconselhamento para Solteiros". Nos dois eventos, ela reafirma que o relacionamento tem de começar pela afinidade, não pela atração física. Para encorajar a audiência, cita sua própria história. Diz que a suspensão da atividade sexual não a impediu de se apaixonar, tampouco de iniciar relacionamentos afetivos.

O mais marcante foi com um cristão evangélico abstinente, que ela conhecia havia nove anos. Sem sexo nem beijo, o namoro soçobrou em "alguns meses". "Eu não defraudo homem nenhum. Nunca crio expectativas que não podem ser cumpridas", explica.

A pastora conta que terminou o relacionamento "gostando" e, por isso, cortou qualquer vínculo com o ex-futuro noivo. "Você precisa ter sangue de barata para se sujeitar a ver a pessoa que você gosta com outra." Ela sustenta que não existe amizade "sexualmente desinteressada" entre homem e mulher. "A menos que seja com o pai, o irmão ou o cabeleireiro gay dela."

O romance interrompido com o crente abstinente deve virar livro. Título: "Paixões Secretas: O Período da Autodefraudação". Anteriormente, SS publicou "Defraudação Emocional", em 2007, e "Onde Foi que Eu Errei?", 2008.

Na virada do século, com Baby, Nãnashara e Zabelê; as três irmãs formavam a banda pop SNZ - Reprodução/Instagram Baby do Brasil - Reprodução/Instagram Baby do Brasil
Na virada do século, com Baby, Nãnashara e Zabelê; as três irmãs formavam a banda pop SNZ
Imagem: Reprodução/Instagram Baby do Brasil

Epopeia contemporânea

Em si, a conversão de Sarah Sheeva remete a uma epopeia contemporânea. Tudo aconteceu a partir de uma briga com uma pessoa — ela não diz o nome — que a atingiu no rosto com um celular. "Eu fiquei catatônica, meio tonta, me encostei no primeiro muro que achei. A pessoa saiu xingando, transtornada, e eu vi o demônio pela primeira vez. Era um bicho enorme, que saía dos limites do corpo transparente dela [a pessoa]."

Na ocasião, Sarah Sheeva morava com dois irmãos em um apartamento no Alto Leblon, zona sul do Rio. O encontro com Jesus se deu no quarto dela. Por sugestão de uma amiga que tentava evangelizá-la havia 10 anos, Sheeva chamou por Ele. "No início, fiquei muito constrangida, achava aquilo ridículo. Eu pensava: 'ai, que vergonha. Ainda bem que não tem ninguém olhando...'"

Mas então, no décimo dia, Jesus atendeu ao chamado. "O Senhor apareceu e me disse: 'Sarah, eu estou aqui'. Naquele momento, o amor Dele me invadiu de uma forma tão intensa que queimava. Eu me curvei, fui rolando pela cama, caí no chão em posição fetal e chorei por quatro horas."

O choro era tão convulsivo, lembra Sheeva, que ocasionou soluços ruidosos, assustadores. "O diafragma subiu, eu comecei a perder oxigenação, meus dedos formigavam. Então, Ele disse: 'Eu vou ter de deixar você, porque o seu coraçãozinho não está aguentando'; eu respondi: 'Não, não, não!', e a verdade é que Ele nunca mais me deixou."

Baby do Brasil (à época, conhecida como Baby Consuelo) e sua filha Sarah Sheeva, no Estúdio Verde, em Laranjeiras, Rio de Janeiro, em 1995 - Alcyr Cavalcanti/Folhapress - Alcyr Cavalcanti/Folhapress
Baby do Brasil (à época, conhecida como Baby Consuelo) e sua filha Sarah Sheeva, no Estúdio Verde, em Laranjeiras, Rio de Janeiro, em 1995
Imagem: Alcyr Cavalcanti/Folhapress

Tudo sobre minha mãe

Depois do encontro com Jesus, Sheeva recuperou a oxigenação e adormeceu em posição fetal. Ao despertar, ligou para a mãe. A reação de Baby do Brasil, segundo a pastora, não foi boa. "Ela teve um ataque, me xingou de tudo o que você pode imaginar e bateu o telefone na minha cara!" De acordo com Sarah Sheeva, Baby, que também é evangélica, só se converteria dois anos depois. Nãna Shara, irmã mais nova de Sheeva, também se tornou evangélica, casou-se com um pastor e, segundo ela, vive nos EUA. As duas e Zabelê, a do meio, integraram no passado uma banda de música pop chamada SNZ.

A reportagem tentou falar com Baby do Brasil e Pepeu Gomes, sem sucesso. A própria Sarah Sheeva não pareceu empenhada em ajudar. Também não foi favorável a liberar Rannah a contar sua experiência enquanto filha de pastora influencer. "Ela não vai querer falar", presumiu Sheeva. Questionada sobre a eventualidade de Rannah também ser abstinente sexual, Sarah encerrou o assunto enigmaticamente: "O chamado dela é outro."

A pastora tampouco revela quem, afinal, a acolheu no antigo hotel-fazenda. Existe um pastor? Qual a igreja? Ela reage com uma expressão que mistura gravidade e mistério, como se fosse um Segredo de Fátima. "Por enquanto, não posso dizer nada", diz ela, enquanto ajeita a casquete fixada do lado esquerdo da cabeça, e pergunta ao fotógrafo onde ele pretende produzir a imagem.

Descemos todos para o deck instalado à margem do lago que se estende à frente da sede da fazenda.

Relacionamento retrô

O figurino da pastora reflete sua personalidade exuberante. Saia longa com estampa floral, blusa preta, cravo no ombro combinando com a casquete, e conjunto grande de colar e brincos pingentes de pérolas fantasia. Rosto grande, exótico, ela comprime os lábios carnudos para absorver o excesso de batom cor de uva. "Sou desenhista de moda autodidata", diz. "Quando resolvi fazer o 'Culto das Princesas', com a ideia de valorizar o relacionamento conservador, Deus me chamou e disse: 'Sarah, compre um tecido vermelho com bolinhas brancas, um pouco de tule, e faça um modelo anos 1950."

Figurino anos 1950, feito sob orientação de Deus; tecido vermelho com bolinhas brancas - Reprodução - Reprodução
Figurino anos 1950, feito sob orientação de Deus; tecido vermelho com bolinhas brancas
Imagem: Reprodução

A pastora diz que, por causa do isolamento, engordou 10 quilos. O assunto surge a propósito da polêmica causada por uma entrevista que Sheeva deu em 2014 e que foi recuperada por cristãos indignados. Na ocasião, em outro acesso de associação livre de ideias, ela foi do pecado da glutonaria citado na Bíblia à gordofobia em minutos. "As pessoas se convertem e pensam que não têm mais corpo e alma. Aí eu te pergunto: por que tem muito crente gordo? (...) O povo larga o sexo e engorda 20 quilos. Isso aconteceu comigo."

Em sua defesa, ela alega a proverbial "descontextualização do que foi dito". Queixa-se de que foi vítima de "gente maldosa". Em novo salto retórico, afirma que a glutonaria está associada a uma compulsão, e que não tem a ver necessariamente com o peso do pecador. "Tem gente que come loucamente e não engorda! Magros também podem estar vivendo nas trevas!"

Sem pretendentes à vista, Sarah Sheeva afirma que não tem pressa de encontrar a "pessoa certa". Deus teria garantido a ela que "vai acontecer". "Até os 95, ele aparece", ri. Enquanto aguarda, a abstinente pastora se estende em elucubrações a respeito do estilo de príncipe que a atrai: "Eu gosto do biotipo do americano. Alto, costas quadradas, pescoço largo, perna fina, bunda achatada. Bem bruto. Se o homem tiver bunda grande, eu nem saio para almoçar. Tenho horror!"

Recapitulando: namoro sem beijo nem sexo. Não aos "bundões". E que Deus abençoe o contraditório, em um momento de polarização tão radical.