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Casamenteira judia fala da vocação: 'No ginásio, promovia correio elegante'
A tarde caía morna na quinta-feira, 29 de abril, quando o escriba ritual Levi Yitzchak se ajoelhou na ponte de ferro do Parque Ibirapuera e pediu a mão da supervisora de alimentos kosher Esther Cadosh — que ele havia visto pela primeira vez quatro dias antes. Juntando as letras que decoravam 15 dos 49 brigadeiros contidos em uma caixa que ele deu a ela de lembrança, lia-se: "Quer casar comigo?".
Os dois se conheceram por intermédio do primeiro site de formação de casais judeus do Brasil — o Zivug (em tradução livre do hebraico, "cara-metade").
Em atividade desde 19 de março, o site já atraiu cerca de 400 pretendentes de oito capitais do País, com idades que vão dos 20 aos 81 anos. "Além do casamento do Levi e da Esther, que, se D'us quiser, está a caminho, já formamos por volta de 30 pares", contabiliza o rabino Yosef Benzecry, 55, que coordena o Zivug.
Sobrevivência e tradição
Diretor da congregação israelita Tsemach Tsedec, na Pompeia, zona oeste de São Paulo, o rabino explica que o site tem como objetivo garantir a sobrevivência do povo judeu, de sua cultura e tradição. "Com o tempo, pretendemos fazer uma versão em espanhol, para atrair pessoas de toda a América Latina."
Benzecry acredita que o isolamento imposto pela pandemia de covid-19 impulsionou a busca do site como alternativa para conhecer caras metades. "As pessoas não têm tido oportunidade de se verem ao vivo, em festas ou reuniões."
Levi, 23, e Esther, 20, configuram o primeiro registro de noivado do Zivug. "A informação que eu tive do perfil da Esther era bem resumida. Basicamente, a observância dos nossos preceitos, alguns detalhes sobre ela e um pouco a respeito do que pretendia. Isso me fez querer saber mais", diz Levi, que se converteu ao judaísmo há quatro anos e meio, quando morava na Austrália. Esse primeiro encontro do casal, no Sky Bar do Hotel Unique, na zona oeste de São Paulo, foi das 15h às 20h, sem nenhuma intimidade.
Até ser apresentada a Levi e aceitar seu pedido de casamento em 96 horas, Esther nunca havia sequer encostado em outro homem. "Os judeus ortodoxos não tocam em alguém do sexo oposto. Não namoram, a não ser para casar. Somos criados assim. Não temos outro método para encontrar nosso devido par, a não ser por intermédio do shadchan", explica.
Desde Adão e Eva
Shadchan (ou shadchanit, no feminino) é uma figura muito popular na cultura judaica. Trata-se da pessoa que organiza o encontro entre um homem e uma mulher, com o objetivo de casá-los. De acordo com o rabino Bezencry, seu advento remonta a tempos imemoriais. "O trabalho de apresentar um casal é muito sagrado, Divino. A Torá nos ensina que D'us criou todos os animais com seus pares, menos Adão, que foi criado sozinho e sentiu falta de uma companheira. Então, D'us criou a mulher do próprio Adão e a apresentou a ele. Assim, D'us foi o primeiro sadchan da história."
Em todas as mensagens trocadas com os participantes desta reportagem, a palavra "Deus" é grafada com um apóstrofe entre "D" e "us". "Não usamos o nome Dele nos escritos cotidianos. Somente quanto se trata de um livro sagrado", explica o rabino.
Além da alegada intuição para identificar "quem combina com quem", o shadchan se baseia em informações sobre as famílias dos mútuos pretendentes, o nível de religiosidade deles e seus costumes.
"Eu sou 'casamenteira' desde os tempos da escola", diz Nádia Levaton Stulman, 45, responsável pelo shidduch (apresentação com objetivo matrimonial) de Levi e Esther. "No ginásio, eu já promovia um correio elegante na hora do recreio. Chegava a falsificar a letra de um Fulano, que eu achava que tinha a ver com a Beltrana."
Corrente de indicações
Esther Cadosh se inscreveu no site por sugestão de Thamar Zagury Rabinowicz, 34, que também é shadchanit. Rabinowicz lembra: "A mãe dela me consultou a respeito de alguma indicação de noivo e, por coincidência, eu tinha acabado de me voluntariar no Zivug. Sugeri então que a Esther se inscrevesse. Logo em seguida, a Nadia mencionou a possibilidade de match entre ela e o Levi. Tenho um dedinho micro na união deles. Às vezes, uma pequena palavra pode levar a um noivado. E graças a D'us, deu tudo certo", acredita. Thamar, ela mesma, é casada há 12 anos com um rabino que lhe foi apresentado com pretensões maritais. O casal tem cinco filhos.
No Zivug, os inscritos não têm acesso aos perfis dos outros participantes — seus potenciais noivos ou noivas. Essas informações são restritas aos casamenteiros. A partir da análise de um pequeno questionário que inclui idade, estado civil, profissão, nível de escolaridade e de religiosidade, a shadchanit (a maior parte são mulheres) avalia as possíveis combinações. "Já teve gente que pediu: 'Ah, me mostra aí umas três garotas, para eu ver se me interesso por alguma'", lembra a gaúcha Claudia Moscovich, 55. "Eu disse que não é assim que funciona!"
As aparências não enganam
Multiversada, Moscovich se apresenta como "coach internacional, psicóloga cognitiva, professora de Torá e cabala e consultora de RH". Ela explica que a avaliação dos pretendentes começa pela foto. "Procuro equilibrar as aparências, para não haver discrepâncias e evitar surpresas", diz ela, que se orgulha de ter formado 14 casais até o momento. Segundo Moscovich, "o problema maior [entre os inscritos] é a falta de noção. Tem homem de 60 que quer mulher de 35. Às vezes, até dá para aproximar, quando a aparência do senhor é jovial."
De acordo com o rabino Benzecry, o número de mulheres em relação aos homens, nas cidades "mais avançadas", é bem maior. Na proporção de duas para um. "De uma maneira geral, as divorciadas de meia-idade buscam segurança financeira", diz.
Thamar Rabinowicz conta que, em países como os Estados Unidos e Israel, a atividade da shadchanit é remunerada. "Ela tem um arquivo de pessoas, com fotos, e ganha pra fazer o shidduch. E quanto mais velho é o pretendente, mais caro ela cobra." Nadia Stulman explica que o trabalho do shadchan toma tempo. "A gente passa horas relacionando os perfis, e muitas vezes trabalha em dupla ou grupo, quando, por exemplo, se detectam compatibilidades entre pessoas que moram em cidades diferentes. Aí, os shadchanim ou shadchaniot entram em contato e fazem a aproximação."
Não é 'Tinder judaico'
Em relação aos aplicativos disponíveis para relacionamento, o Zivug segue um sistema bem artesanal. Dir-se-ia que é de uma singeleza bíblica. "A diferença para um aplicativo como o Tinder, por exemplo, é que os casais aqui não são aproximados por GPS (geolocalização) ou algoritmos. O inscrito não vai entrar em contato com milhares de pessoas, cuja maioria não tem nada a ver com ela. Nossa base aqui é tecnológica, mas o encaminhamento é humano", explica Benzecry.
Nádia Stulman acompanhou Levi e Esther nos três encontros que eles tiveram até agora. Foi ela que providenciou a caixa de brigadeiros e o ramalhete de flores que Levi ofereceu à futura noiva. Claudia Moscovich costuma parabenizar os pretendentes que "tem a humildade de nos deixar apresentá-los uns aos outros. Isso depende puramente de nós."
Mesmo depois de apresentados e devidamente harmonizados, os casais ainda recebem supervisão dos shadchanim. "Acompanho o casal de tempos em tempos, para ver como eles estão se saindo", diz Moscovich.
Os envolvidos reconhecem que a restrição do universo de pretendentes favorece a longevidade do enlace. "Os relacionamentos hoje não são levados tão a sério. Todo aquele encanto de casar e criar uma família foi muito banalizado. Nesse sentido, o Zivug tem uma função muito importante entre os jovens. Não se trata de um Tinder de casamento religioso. É algo muito mais restrito, privado, sigiloso, regrado. Nossa intenção é formar lares judaicos."
Em relação aos mais velhos, Claudia Moscovich acredita que a importância de fazer as apresentações está ligada à influência que eles podem ter sobre as outras gerações. "Um exemplo vale mais que mil palavras."
Obediência e fé
Stulman explica que, caso uma das partes comece a achar que não tem a ver com a outra, ela ajuda a pessoa "a enxergar o que não está vendo". No caso de Levi e Esther, diz ela, um dos segredos do sucesso foi os dois serem obedientes, terem fé e confiarem nela. "O primeiro encontro normalmente dura de uma a quatro horas. O deles durou cinco, e o segundo, oito. A gente já sentiu que fluiu bem."
Em sua obediência e fé no shidduch, Esther conta que sentiu uma conexão imediata com Levi. "Foi como se já nos conhecêssemos da vida inteira. É difícil dizer uma única coisa que tenha me agradado nele. Com certeza, a percepção do mundo e o jeito de falar sobre a vida."
À medida que os casais vão se formando, os nomes dos pretendentes listados no site são grifados de vermelho pelos shadchan, como sinal de que já foram encaminhados.
Diante da enorme responsabilidade de apresentar pessoas que, de acordo com os preceitos religiosos do judaísmo, devem permanecer unidos até que a morte os separe, surge a questão que não quer calar. Como o casamenteiro reage, caso a união sugerida por ele não dê certo? Não há o risco de se sentir culpado? Thamar: "A gente parte do princípio que tudo depende da divina providência. Então, o que tiver de ser, será."
Em outras palavras, que Deus conserve o shidduch.
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