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Paulo Sampaio

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Bastidores da CPI: o alvoroço no Senado no dia da prisão de Roberto Dias

Os senadores Randolfe Rodrigues e Omar Aziz falam em coletiva, em um intervalo do depoimento da da ex-coordenadora de PNI Francieli Fantinato  - Paulo Sampaio/UOL
Os senadores Randolfe Rodrigues e Omar Aziz falam em coletiva, em um intervalo do depoimento da da ex-coordenadora de PNI Francieli Fantinato Imagem: Paulo Sampaio/UOL

Colunista do TAB

11/07/2021 04h01

De repente, por volta das 18h de quarta-feira (7), um bolo de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas se amontoa à entrada do corredor das comissões no Senado, em busca de mais informações sobre o acontecimento do dia. Roberto Ferreira Dias acabava de ser preso. O ex-diretor de logística do Ministério da Saúde fora acusado de cometer perjúrio — ou prestar falso testemunho.

Convencido de que Dias não falava a verdade, o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), determinou que a Polícia Legislativa recolhesse o depoente. "Ele está mentindo desde a manhã, dei chance a ele o tempo todo. Pedi por favor, pedi várias vezes. Ele vai estar detido agora pelo Brasil, pelas vítimas que morreram."

Câmeras nos ombros, microfones em punho, gravadores e bloquinhos em mãos, a expectativa dos jornalistas era de que Dias saísse da sala e mostrasse revolta. Ou dor. Chorasse. Risse? Imaginavam-se títulos dos sonhos: "Depois de receber voz de prisão, Dias deixa a sala da CPI aos prantos e fala em se matar"; "Dias ri da decisão de Aziz, manda uma banana para Renan e chama CPI de palhaçada"; "Acuado, Dias é preso, entrega dossiê e provoca queda de Barros".

Mas Dias sequer aparece. A escolta encarregada de conduzi-lo até a delegacia legislativa, no subsolo, adota uma rota alternativa justamente para evitar a imprensa. Ele sai "pelos fundos". A gincana dos jornalistas no encalço do preso prossegue. Corre-corre, tropeções em fios, gargalhadas nervosas, troca de informações preliminares. Quem domina melhor os labirintos do prédio pega atalhos secretos. Em vão. Quando a turba descabelada chega ao subsolo, Roberto Ferreira Dias já está dentro da delegacia.

Começa então uma vigília que se estenderia por mais de cinco horas e cujo final, melhor avisar logo, seria decepcionante.

Rambo de paletó

Há três espaços com telões reservados para jornalistas que cobrem o dia a dia da CPI. Dois ficam em uma das extremidades da passagem que liga o Palácio do Congresso ao Anexo II do Senado, corredor de quase 100 m x 7 m conhecido como "túnel do tempo". O terceiro está na Ala Senador Alexandre Costa. Largos e compridos, os corredores são chamados de "alas" e têm nomes de senadores mortos.

Repórteres não estão autorizados a frequentar a sala onde ocorre a CPI, apenas fotógrafos e cinegrafistas, mas em determinado momento liberam minha entrada. Meia hora depois, sou expulso por um segurança que incorpora um Rambo de paletó.

Para quem está acostumado a assistir à transmissão pela TV, a sala parece bem menor. Dias, de sotaque inequivocamente carioca, repete para senadores incrédulos que encontrou-se despretensiosamente, em um happy hour, com um cabo da PM que ofereceu a ele 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca. O cabo, Luiz Paulo Dominghetti, o acusa de pedir propina de US$ 1 por dose. Ele nega tudo, o tempo todo.

Foto feita antes de me expulsarem da sala da CPI: Roberto Ferreira Dias (ladeado pela advogada Maria Jamile), Omar Aziz e Renan Calheiros - Paulo Sampaio/UOL - Paulo Sampaio/UOL
Foto feita antes de me expulsarem da sala da CPI: Roberto Ferreira Dias (ladeado pela advogada Maria Jamile), Omar Aziz e Renan Calheiros
Imagem: Paulo Sampaio/UOL

Audiência turbinada

Naquela quarta-feira, o canal da TV Senado no YouTube, que transmite a novela da CPI em tempo real, recebeu mais de 1 milhão de visualizações, sem contar as retransmissões. A marca é muito boa, mas falta bastante para chegar ao recorde de quase 4 milhões batidos no impeachment de Dilma Rousseff.

Em todos os gabinetes de senadores que integram a comissão (11 titulares e 7 suplentes), comemora-se o impacto nas redes sociais. "Há até pouco tempo, o Marcos Rogério [Democratas-RO] não era ninguém", comenta, baixando o tom de voz, o assessor de um senador da oposição. "Pega o número de seguidores dele no Twitter e vê como cresceu."

Senador Marcos Rogério, cujo número de seguidores no Instagram foi de 25 mil para 211 mil  - Paulo Sampaio/UOL - Paulo Sampaio/UOL
Senador Marcos Rogério, cujo número de seguidores no Instagram foi de 25 mil para 211 mil
Imagem: Paulo Sampaio/UOL

Narrativa e cercadinho

Rogério, 43, passa o tempo todo indo da sala da CPI para seu gabinete, na Ala Teotônio Vilela. Veste ternos justos e bem cortados, um look bastante fashion para os padrões vintage de alfaiataria do Senado. Está sempre ocupadíssimo. "Não posso falar agora", diz aos jornalistas, mas mesmo assim responde a todas as perguntas.

Integrante da tropa de choque do Planalto na comissão, ele repete que a oposição quer desestabilizar o governo. "Criam-se fake news o tempo todo, pulam-se etapas, constroem-se narrativas". Por sua vez, Bolsonaro "caga" para a CPI, como afirmou na live de quinta (8).

A expressão "construção de narrativas" tornou-se um hit na CPI. É utilizada por vários parlamentares como eufemismo para "viajar na maionese". Já o termo "cercadinho", como me ensina uma colega setorista no Senado, é usado em Brasília alternativamente para designar o ato sexual fortuito, também chamado de "rapidinha".

No gabinete de Rogério, uma simpática assessora, Ludmila Lucas, confirma o crescimento dos números dele nas redes sociais. Só no Twitter, a que eles não costumavam dar muita importância "porque é fraco em Rondônia", o senador foi de 10 mil seguidores para 110 mil; no Instagram, de 25 mil para 211 mil.

Mais que eleitores

Michelle Maia, assessora de Eliziane Gama (Cidadania-MA), 43, festeja uma novidade: "A senadora ganhou fãs". Embora oficialmente não haja mulheres entre os parlamentares que participam da comissão, a bancada feminina conquistou o direito de falar (não votar), e agora Gama faz parte do grupo de WhatsApp dos sete senadores suplentes. É a única mulher.

Encantada com a repercussão de seus apartes na comissão, a senadora passou a chegar mais cedo para ficar entre os primeiros inscritos na lista de inquisidores. Naquela quarta-feira, ela foi a segunda a inquirir Dias. Quanto mais cedo o parlamentar chega, mais rápido é chamado, mais chances tem de aparecer no "horário nobre" da CPI — durante o dia.

Dupla do teste

No corredor, me vejo atraído pela figura de uma jovem de branco que puxa uma mala pequena de rodinhas. Ela está acompanhada por uma "executiva" de paletó, saia justa e sapatos altos.

Trata-se da enfermeira encarregada de realizar a testagem de covid-19 nos servidores da casa. A outra é representante do laboratório contratado ("faço a parte de business"). A executiva explica que não pode se identificar nem fazer foto.

Informa que usa o método RT-PCR, que custa em média 190. As duas não puderam dizer se houve positivos, entre os cerca de 500 testes realizados no dia, porque o resultado não sai na hora. Elas voltam periodicamente para repetir a operação. Embora haja no prédio um espaço preparado para receber os servidores que farão o teste, elas vêm pessoalmente ao gabinete dos senadores porque "eles não têm como se deslocar".

Onde comer?

Sinto fome. Como já é tarde, me indicam uma máquina que cospe sanduíches naturais embalados num plástico. É o meu almoço.

Antes, por volta das 13h, eu cheguei a ir ao restaurante do Senado, único ativo durante a pandemia, mas havia uma fila de 15 pessoas. Ali, cobram-se R$ 50,67 pelo "menu executivo".

A entrada era "Mix de folhas" ou "Quibe assado e recheado com queijo". Prato principal: "Maminha assada ao molho de vinagrete com arroz branco e feijão tropeiro"; "Salmão ao azeite de ervas acompanhado de arroz com brócolis e legumes salteados"; "Risoto com cogumelos". Sobremesa: "canjica de coco com amendoim" ou "Salada de frutas".

Todos os pratos vêm com a indicação das calorias ao lado, e ainda se há glúten e lactose na composição. Há uma ala reservada só para parlamentares.

Para quem está de passagem, a vida de um senador parece bastante confortável. Mesmo sem CPI bombando, muitos circulam nos corredores cercados de assistentes. Um carrega a pasta, o outro recapitula a agenda com ele, um terceiro limpa uma poeirinha eventual na lapela do terno. Todos elogiam a humildade do chefe, sua capacidade de trabalho e a inteligência brilhante.

Parabólica gigante

"O senador é muito dinâmico, tem uma parabólica gigante na cabeça, dorme apenas 4 horas por noite. Quando quer relaxar, ouve rock. Bob Dylan, Paul McCartney, Rolling Stones. E tem uma qualidade louvável: não fala mal de ninguém", diz Leonardo Vargas, assessor de Luis Carlos Heinze (PP-RS), um dos mais aguerridos integrantes da tropa de choque do governo.

Heinze não fala mal de ninguém, penso, desde não seja índio, gay, ou lésbica, "uma gente que não presta", como ele já declarou anteriormente e reafirmou depois.

Em conversa com a reportagem na sala da presidência, o senador defende o uso de medicamentos ineficazes no combate à covid-19, como cloroquina e ivermectina, saca vários "estudos" de médicos como Didier Raoult e Vladimir Zelenko, ambos de reputação duvidosa, e exibe uma pasta de artigos de cientistas que têm, segundo ele, "índice H" altíssimo". Trata-se de uma proposta de aferição da produtividade de cientistas, de acordo com o impacto dos artigos apresentados. Enquanto fala de "ciência", evita se manifestar sobre os acusados na CPI: "Calma, eu chego lá..."

Pela insistência com que defende o kit covid e cita números mirabolantes para comprovar suas teses, as participações do senador na CPI foram apelidadas pelos jornalistas de "Bingo do Heinze".

Senador Luis Carlos Heinze, da tropa de choque do Planalto: cloroquina, Zelenko e indice H - Paulo Sampaio/UOL - Paulo Sampaio/UOL
Senador Luis Carlos Heinze, da tropa de choque do Planalto: cloroquina, Zelenko e indice H
Imagem: Paulo Sampaio/UOL

Fiança ou camburão

Depois da conversa com o senador, volto ao subsolo, mas ainda não há novidade. Já se passaram 2 horas. Ainda ficaríamos mais três à espera do "grande momento".

Enquanto isso, circula todo tipo de informação. "Conversei com um advogado agora. Soube que ele [Dias] vai ter de pagar uma fiança. Se não pagar, pode sair em um camburão e ser conduzido para uma unidade prisional comum, fora daqui", adianta um colega.

Repórteres de TV entram ao vivo o tempo todo. Seguidos pelo cinegrafista e um produtor que leva parte da parafernália de fios e suportes, eles apontam os acessos da delegacia. "Dias entrou por essa porta, preso, sim, o termo é este mesmo, preso, e a expectativa é que sua soltura aconteça a qualquer momento, mediante o pagamento de uma fiança, que ainda não foi divulgada..."

Alguns policiais musculosos, com roupas pretas, montam guarda à porta da delegacia, que fica entre duas garagens do Senado e atrás de uma cabine de vidro que faz lembrar o ambiente de um caixa eletrônico. Em dado momento, um dos policiais bate palma e pede para que os repórteres liberem aquela área para a passagem de um carro. Camburão?

A entrada principal da delegacia legislativa; Dias saiu pela dos fundos, que dá direto na garagem - Paulo Sampaio - Paulo Sampaio
A entrada principal da delegacia legislativa; Dias saiu pela dos fundos, que dá direto na garagem
Imagem: Paulo Sampaio

Envelope volumoso

Especula-se que um portador entrou na delegacia com "um envelope bastante volumoso". Alguém sugere que pode ser "o dinheiro da fiança".

Agora quem chega é um motoboy com comida. Pergunto a ele de onde é a comida, e quem pediu. Ele responde "Jamile", mas mostra-se arrependido e se afasta.

Maria Jamile José é a advogada de Dias. Pediu comida no Fran's Café. Tentei saber se quem pagou a conta foi Dias, e se usou dinheiro vivo, mas o entregador logo liga a moto e desaparece em segundos.

A entrada principal da delegacia legislativa; Dias saiu pela dos fundos, que dá direto na garagem - Paulo Sampaio - Paulo Sampaio
A entrada principal da delegacia legislativa; Dias saiu pela dos fundos, que dá direto na garagem
Imagem: Paulo Sampaio

Desespero e lucidez

Quando a vigília já passa das quatro horas, um colega desesperado e, ao mesmo tempo, lúcido, propõe a batida em retirada de todos.

(Em casos assim, ou saem todos, ou não sai ninguém. Se um fica, corre-se o risco de ele publicar aquela linha a mais que o editor dos outros vai cobrar.)

Por uma estranha obsessão inerente à categoria, ninguém vai embora.

Pedem pizzas, e riem de histórias de coberturas que os levaram ao limite da paciência. Uma repórter lembra do plantão em que passou horas esperando o então presidente Michel Temer à saída do Palácio da Alvorada, e em determinado momento afundou inadvertidamente o pé em um formigueiro (estava de sandália). Às gargalhadas, conta que pelo menos rendeu uma dispensa do editor.

Fala-se bem e mal de Brasília, enquanto o motoboy não chega com as pizzas. Citam-se os três "D", uma brincadeira alusiva ao sentimento de quem vem de fora para morar na cidade. "Primeiro, tem o 'Deslumbramento', depois a 'Decepção', e por fim a 'Depressão'".

Por volta das 23h, quando Roberto Ferreira Dias sai pela porta dos fundos e embarca em um Cruze Preto, passa quase despercebido. Exangue, o grupo estava disperso. Foi uma decepção. Antes da depressão, chamo o Uber.