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Com SC em colapso, prefeitos e empresários defendem tratamento precoce

Centro de distribuição de ivermectina da prefeitura de Itajaí (SC), montado no principal espaço de eventos da cidade - Caio Cezar/UOL
Centro de distribuição de ivermectina da prefeitura de Itajaí (SC), montado no principal espaço de eventos da cidade
Imagem: Caio Cezar/UOL

Felipe Pereira

Do TAB, em Itajaí e Rancho Queimado (SC)

15/03/2021 04h01

O casal ainda não sabe, mas os testes rápidos já deram o veredito. A enfermeira "lê" os pacientes para decidir se começa pela parte boa ou ruim. Escolhe começar por Helena Marian, 40. A voz macia transmitindo acolhimento é inútil, a notícia tem o impacto de um tiro. "Seu teste deu positivo."

Helena baixa a cabeça e pisca demorado, como se a escuridão ajudasse a neutralizar o abalo. Em seguida, ergue o pescoço e busca contato visual com o marido. Antonio Florêncio, 45, desvia o olhar. Não é indiferença. Ele sabe que seus olhos entregariam os pensamentos ruins que brotam na cabeça. Mas não adiantou tentar disfarçar. Seu rosto fica vermelho, quase incandescente.

Outro enfermeiro que estava atrás do casal pede para Helena respirar enquanto ausculta seu pulmão. Ela estica o tronco, vira a cabeça para frente e puxa o ar. Antonio olha com compaixão, enquanto sincroniza sua respiração com o suspiro longo da mulher.

Conhecendo a realidade dos fundões do Brasil, o enfermeiro do centro de covid-19 de Rancho Queimado (SC) alerta que eles podem colher legumes e verduras no quintal para comer, mas nunca para vender. O casal de agricultores tem uma horta para consumo próprio e cultiva alface e morango. A cidade tem lixeiras na forma do fruto porque é a capital catarinense do morango.

Mas o título nunca rendeu notoriedade. Rancho Queimado começou a ficar famosa na pandemia, principalmente em grupos bolsonaristas do Telegram, por causa do tratamento que fornece aos pacientes com covid-19. Helena e Antonio saíram do centro de saúde com um kit completo: ivermectina, azitromicina, hidroxicloroquina, polivitamínico e zinco.

A notícia boa que a enfermeira tinha para contar era que o teste de Antonio deu negativo. Mas ele vai fazer tratamento precoce do mesmo jeito. Desde julho do ano passado, o conselho de saúde da cidade aprovou a entrega do kit para casos positivos e entre pessoas com resultado negativo que apresentem sintomas. O casal deixa o lugar satisfeito.

"Eu confio [no tratamento precoce] porque um pessoal daqui que pegou covid-19 se curou tomando esses remédios", explica Antonio.

Helena se refez do susto inicial e está tão certa da cura que planeja continuar a rotina na roça. A única diferença será trabalhar com coriza e uma leve dor de garganta. O casal é a materialização de que a crença no kit-covid chegou ao campo. A fé na hidroxicloroquina e companhia é partilhada pelo funcionário público Davi Broering, 33 anos.

Ele foi buscar o kit para mulher, que está com covid-19, e aproveitou para recarregar seu estoque de ivermectina. Davi usa o medicamento como prevenção desde maio de 2020. Na primeira vez que tomou, não encontrou o remédio na farmácia. "Comprei o de uso veterinário, que é o mesmo medicamento."

Rancho Queimado, cidade de 2,7 mil habitantes, têm 53% de moradores na área rural. Mas, em Santa Catarina, a aplicação do tratamento não reconhecido pela ciência também é defendida por instituições de maior projeção.

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Antonio Schafer e Helena Marian, diagnosticada com covid-19, no Centro de Tratamento em Rancho Queimado (RS), onde a prefeitura está distribuindo ivermectina e azitromicina - Caio Cezar/UOL (300x225)

Apoio do setor produtivo

Em 25 de fevereiro, a secretaria estadual de Saúde de Santa Catarina emitiu nota que admitia o esgotamento da capacidade de atendimento. "Estamos entrando em colapso!", lamentava um trecho do comunicado.

O governador realizou reuniões com secretários, representantes da Assembleia Legislativa, Ministério Público, Defensoria Pública e da Fiesc (Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina). Os empresários defenderam o tratamento precoce.

A posição foi reafirmada de forma mais ampla dois dias depois. Uma nota do Cofem (Conselho das Federações Empresariais de Santa Catarina) protestava contra o lockdown e pedia a implementação de avaliação médica para utilização do kit-covid. "Que sejam adotadas medidas para que a população tenha acesso ao tratamento precoce em casos de infecção", informava trecho do texto.

O Cofem é uma entidade que representa quase todo o setor produtivo de Santa Catarina. Ele é composto pelas Federações das Indústrias (Fiesc), do Comércio (Fecomércio), da Agricultura e Pecuária (Faesc), dos Transportes (Fetrancesc), das Associações Empresariais (Facisc), das Câmaras de Dirigentes Lojistas (FCDL) e das Micro e Pequenas Empresas (Fampesc).

O governo federal incentivou o uso de ivermectina e hidroxicloroquina. Em Santa Catarina, o discurso encontrou abrigo na administração pública e no setor privado.

Carolina Urbano Dias Gaban, 29 anos e Allan de Oliveira, 28 anos, após pegarem caixas de ivermectina em Itajaí (SC) - Caio Cezar/UOL (750x1)

Vacinação parou

Itajaí (SC) montou um drive-thru de vacinação na frente do centro de eventos da cidade. De tão inoperante, as grades de ferro que delimitavam o corredor para passagem dos carros foram removidas. O portal de plástico inflável teve o mesmo destino. As faixas com o símbolo da prefeitura penduradas na lateral dos toldos permaneceram, mas estão retorcidas pelo vento, o que reforça a sensação de local abandonado.

A assessoria de imprensa da prefeitura explicou à reportagem que o serviço foi interrompido por causa do esgotamento das vacinas. A cidade espera um novo carregamento para iniciar a imunização de pessoas entre 80 e 84 anos e reativar o drive-thru.

Mas o que não parou de funcionar foi a distribuição de medicamento para prevenção de covid-19. Dentro do centro de eventos, uma faixa indica as condições. Mas nem precisa preencher os requisitos para sair com um pacote de ivermectina.

A reportagem do TAB foi perguntar como funcionava a entrega e recebeu uma oferta de comprimidos. Estar sem documento não era problema. "Só precisa saber o CPF de cabeça", disse a atendente, com voz de facilitadora. Ela inseriu os dados no computador, apoiado numa mesa de plástico com um pequeno adesivo escrito "Empório Xiru", e a burocracia estava concluída.

Feito o cadastro, sem a apresentação de nenhum documento, a atendente indicou onde estava a médica. Pelo protocolo, a pessoa deveria ser pesada para determinar a dose de ivermectina. Essa etapa foi ignorada. A única orientação recebida foi tomar quatro comprimidos de uma só vez por dois dias seguidos, depois do café da manhã. Não mediram temperatura, não auscultaram o pulmão.

A médica apontou o balcão de retirada do medicamento, entregue em sacos de papel pardo com o símbolo do SUS. O atendente falou com orgulho que é um serviço da secretaria municipal de Saúde de Itajaí. A cidade tem a sexta maior população de Santa Catarina, 223,1 mil habitantes, mas o rapaz contou que a procura está baixa.

Mesmo assim, a estrutura foi mantida. O serviço de pouca demanda e não recomendado pelos cientistas consome 18 computadores, vigilantes, pessoal de limpeza e seis funcionários da saúde, incluindo uma médica. Isso numa cidade em colapso. Enquanto profissionais de saúde têm rotina frenética nos hospitais, trabalhar entregando ivermectina parece bastante tedioso.

Entre as poucas pessoas que estiveram no centro de eventos estava o garçom Gilmar Maurina, 46. Ele fez valer a viagem. Levou ivermectina para a namorada, um cunhado e uma cunhada. Sentindo-se protegido, abriu mão de usar máscara.

As chances de ser repreendido pelas forças de segurança são irrisórias. Oficiais da Polícia Militar estavam sem máscara na primeira sexta-feira do mês, dia 5 de março, quando o batalhão da corporação em Balneário Camboriú, cidade vizinha, recebeu o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Eles não colocaram máscara nem para sair na foto.

Gilmar Maurina com caixas de ivermectina, distribuídas pela prefeitura de Itajaí (SC) - Caio Cezar/UOL (750x1)

Prefeituras defendem protocolos

Youtuber alinhado ao bolsonarismo, Alexandre Garcia homenageou a prefeita de Rancho Queimado, Cleci Veronezi (MDB), no Dia Internacional da Mulher. Ela foi chamada de exemplar e sensata por adotar o tratamento precoce.

A prefeita conta que precisava tomar alguma atitude no começo da pandemia e o médico do município elaborou o protocolo de tratamento precoce. Houve anuência do conselho de saúde da cidade e a medida foi colocada em prática. Cleci considera que foi a opção mais acertada que poderia tomar.

"A avaliação é que, se tivesse de decidir novamente, repetiria a decisão. Vejo depoimentos de pessoas dizendo que para elas o tratamento precoce foi excelente."

A política de saúde pública de Rancho Queimado também rendeu críticas, mas a prefeita argumenta que não há nenhum morador internado em hospitais da região e a cidade registrou duas mortes desde o começo da pandemia. O argumento perde força porque duas cidades vizinhas, Angelina e Anitápolis, têm população maior e nenhum óbito.

Sobre a falta de eficácia, a prefeita alega que existem estudos e cita três médicos. A defesa ocorre mesmo com a principal fabricante da ivermectina afirmando que o medicamento não tem efeito contra a covid-19.

A prefeitura de Itajaí se posicionou por e-mail, enviado pela diretoria de Relações Públicas da Secretaria de Comunicação. A manifestação é uma defesa da distribuição de ivermectina. "O município partiu do princípio de que o medicamento pode contribuir como tratamento preventivo, mediante os protocolos existentes, sem provocar efeitos colaterais."

Em relação à manutenção de funcionários para entregar o medicamento, a medida é vista pela administração de Itajaí como positiva para o enfrentamento da pandemia. "O uso de ivermectina periodicamente é aliado na prevenção do coronavírus, portanto torna-se importante a manutenção de uma equipe reduzida para atendimento."

O fornecimento do medicamento não é a única medida controversa em curso em Itajaí. A cidade também integra a pesquisa de aplicação de ozônio por via retal para o tratamento de covid-19. O trabalho está em andamento.