OSTENTAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

Desfile de virtudes e linchamentos virtuais fazem surgir 'personas' que nunca erram. Isso é possível?

As convulsões sociais de 2020, acirradas pela frustração coletiva com a pandemia e pelo isolamento de boa parte da população, concentraram na internet discussões urgentes sobre política, comportamento e sociedade. Com tantas vozes opinando, era de se esperar que as taxas de cancelamento extrapolassem o limite do tolerável, fazendo surgir até mesmo os fiscais de quarentena. Numa espécie de 'Olimpíadas do isolamento', a disputa é por quem exibe mais consciência. O chumbo cruzado tem sido perene e, com ele, a cultura do cancelamento ganhou força. De onde ela vem?

Tudo leva a crer que "cancelar" alguém — e não um contrato — surgiu nos EUA, a reboque do movimento #MeToo. Segundo uma reportagem do jornal The New York Times, ativistas negros cobravam posturas críticas de celebridades em relação ao racismo e subiam hashtags com o termo "cancel". Há um caráter performático em "cancelar": amplifica-se no debate público um tema e, só com isso, o cancelamento pode surtir efeito.

Tudo está sujeito ao cancelamento, desde que alguém levante a lebre ou enxergue um erro que ninguém havia percebido. Quem levanta a mão primeiro ganha destaque, e é seguido e replicado num efeito manada incontrolável. O lançamento em agosto do álbum visual "Black is King", de Beyoncé, deixou perplexa a crítica cultural tradicionalmente conduzida por brancos e levantou a questão: quem deve opinar sobre o quê?

"Devemos chamar de cancelamento o que acontece com uma pessoa branca cuja fala está desqualificada para debater um assunto, já que os indígenas e os negros estão desqualificados há 500 anos para debater qualquer coisa?", questiona Lia Vainer, professora de psicologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), autora de "Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo - Branquitude, Hierarquia e Poder na Cidade de São Paulo". "Essas mesmas pessoas se sentem autorizadas a falar sobre raça sem entender o que é o processo de racialização, sem nenhum critério acadêmico."

As fronteiras entre crítica e linchamento virtual estão cada vez mais borradas e esbarram em um efeito paradoxal próprio da era digital. As redes, que pareciam ser o lugar de exercitar liberdades, passam a ser povoadas por 'alecrins dourados', canceladores, cancelados e gente tentando entender a treta da vez, gerando interações com pouca troca e escuta.

ALECRIM DOURADO

Hoje existem dois tipos de pessoa: as que escreveram nas redes algo como "Só eu me sinto trouxa de obedecer isolamento?" e as que leram esse tipo de mensagem. Não importa de qual lado você esteja: todos vivemos em situação de meme do alecrim dourado — em que alguém responde "Sim, só você, o alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado" para o virtuoso.

Na visão do psicanalista Christian Dunker, a ostentação da consciência virou um mecanismo para se construir (e destruir) reputações. "A ideia de que o militante (particularmente, o progressista) tem de se colocar como uma alma superior atrapalha. Práticas de cancelamento e hipercriticismo produzem uma imagem inautêntica, pouco fiel às nossas incoerências", diz ao TAB.

Assim, o cancelador contumaz é alguém que começa não apenas a reagir no coletivo baseado em indignação local. Ele extrai gozo ao culpar o outro e se sentir um pouco mais limpo, explica Dunker. Essa atitude tende a se reproduzir, levando o sujeito a querer mais. "Por outro lado, uma vez que eu cancelo várias pessoas, o tamanho do meu mundo vai diminuindo", opina.

Algumas vozes se destacam no ativismo online e acabam virando referência no assunto da vez. Frequentemente, isso acontece quando elas "cancelam" alguém. Conforme o assunto perde força, o sujeito que virou referência também tem sua relevância ameaçada e, de cancelador, corre o risco de ser o "cancelado do dia".

"É mais interessante quando a gente produz uma certa tolerância ao vacilo, ao deslize e a tudo o que faz de nós sujeitos divididos", opina Dunker. "Esse ideal elevado alimenta circuitos de culpa e ódio, denúncias e acusações. A lógica é a dissolução de coletivos."

CONTATO SEM CONTÁGIO

O clima tenso de viver em eterna vigilância e disciplina, teorizado por Michel Foucault, impera na vida real e no cotidiano. O Estado e a sociedade monitoram o comportamento desviante. Mas alguns pensadores chegaram a desenhar, no avanço do século 20, outro tipo de configuração. Além da lógica do "vigiar e punir", algo mais asséptico tem transformado as relações humanas.

Pode parecer ironia, numa época em que o distanciamento social ainda é a forma mais eficaz de inibir o contágio da Covid-19. Mas é esse é o espírito da era tecnológica. Serviços estão a um clique, dispensando o contato pessoal. Tudo é virtual. No campo das ideias — e dos tuítes —, também circula o que alguns chamam de "teoria da imunidade social".

"É um fenômeno cultural. Foge-se do contágio evitando relacionar-se. As construções em torno de avatares, a disseminação das redes sociais, são mecanismos de contato sem contágio", explica o sociólogo Henrique Garbellini. O perigo de se viver assim é o mesmo de uma criança isolada: quando ela sair, vai adoecer, porque não adquiriu anticorpos.

Na visão do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, autor de "Sociedade do Cansaço" (2010), a lógica do desempenho é o que rege nossa vida digital. Desempenho: muitos likes. "Se eu não preciso enfrentar o outro porque estou falando de mim, passo a concorrer comigo mesmo. A hora de encarar o outro é a hora do cancelamento. É um estilo de vida muito fugidio", observa Garbellini.

GURUS DA CONSCIÊNCIA

A cada dia, uma polêmica inédita (ou quase isso) eclode na internet. Com ela, surgem novos "gurus da consciência" — nada a ver com filosofia indiana. Para explicar esse fenômeno, Dunker relembra o poeta e crítico Paul Valéry (1871-1945), que observou o surgimento das chamadas profissões delirantes, que dependem totalmente do que os outros acham de nós.

"Um delírio não é uma crença fora da realidade, mas uma convicção de que a realidade depende mais de nós mesmos do que dela própria. A sensação de que o reconhecimento que recebemos em espaços digitais apoia-se em bases precárias nos coloca diante do medo permanente de ver a imagem de si dissolver-se no ar", diz o psicanalista, descrevendo a "ansiedade de cancelamento".

Segundo a psicóloga social Lia Vainer, os trabalhadores de profissões delirantes podem ser, simultaneamente, algozes e vítimas. "Há pessoas que não têm emprego se não manifestarem opiniões nas redes. Quem trabalha com ativismo online acaba ficando refém da internet", aponta a pesquisadora.

Para o humorista e apresentador do "Cá entre Nós", do MOV, Yuri Marçal, passar por um cancelamento trouxe a noção de seu erro na esquete, em vídeo, sobre o caso do aborto legal de uma menina de 10 anos. O humorista retirou o vídeo do ar e publicou um texto se desculpando. A reação, entretanto, o assustou. "Foi desproporcional, ficaram falando que queriam que coisas ruins acontecessem comigo e com minha família."

Flávia Durante, criadora da feira de moda plus size Pop Plus, sabe bem como é apanhar na internet. "Do tempo que me tornei ativista por uma moda democrática e, depois, do ativismo gordo, recebo porrada de todos os lados. Quando dou entrevista para veículos mais populares, dizem: 'essas gordas feministas, sujas, feias'. Quando são veículos progressistas, insinuam: 'lógico, ela quer que todo mundo seja gordo para vender roupa'."

DESEJO DE LACRAR

"Aqui você encontra o presente perfeito para você lacrar no dia das mães." Quando o compositor Negro Leo leu essa frase na propaganda de uma loja, percebeu que muitos dos termos e comportamentos que surgiam nas redes sociais nas costas de movimentos minoritários haviam sido capturados pelo mercado. "Lacrar é uma gíria que surge na comunidade LGBTQ+ para representar o brilho, mas o que é esse brilho num país transfóbico e homofóbico? É também uma revolta. É 'atura ou surta'", observa.

Com esse argumento, passou a investigar o tema em disco, lançado em 2020. "Desejo de Lacrar" fala de uma ânsia que parece bater em todos, como algo necessário à dinâmica das redes. "Se é o comportamento da maioria, a coisa se espalha", observa.

Para o jornalista e pesquisador Ricardo Alexandre, esse processo pode ser entendido como uma busca de legitimidade. "Com a democratização da internet, o passo seguinte é ostentar significado", observa. Mas, como batalhar sentidos no meio de tanta opinião? Apelando. "Para competir com alguém tomando banho de Nutella, você vai precisar de subterfúgios, elementos do emocionalismo moral, da opinião, do enviesamento. Tudo aquilo de que as pessoas dizem, em teoria, não gostar."

Em seu novo livro "E a verdade os libertará", Alexandre reflete sobre como essa forma de comunicação definiu as eleições de 2018. "Um post perfeito é aquele que você compartilha por amor ou raiva, tem uma carga emocional e moral. Pesquisas mostram que tuítes assim vão melhor do que palavras de pacificação. Isso não é da direita, nem da esquerda. A linguagem da internet é essa."

O historiador britânico Andrew Keen, conhecido como o anticristo do Vale do Silício, diz que, na verdade, o ambiente virtual corrompe a ideia que a democracia representa. "Nós nos convencemos que estamos exercitando nosso direito de opinião e de manifestação, quando na verdade estamos refinando os algoritmos que vão nos convencer a comprar produtos, serviços e políticos", diz Alexandre.

TODO MUNDO ERRA

Os embates que nascem na internet provam que mesmo o mais desconstruído dos usuários pode se atrapalhar falando sobre alguma polêmica quente que não diga respeito aos assuntos que ele entende de verdade.

Flávia Durante já cansou de ver "aliados progressistas" sendo gordofóbicos ou etaristas. "Quando uma diva pop aparece um pouco mais gordinha, ou quando alguém envelhece, é assustador ver o tanto de gays fazendo comentários horrorosos. A gordofobia não recebe a mínima empatia de feministas brancas magras, até porque a maioria das mulheres morre de medo de engordar."

Sobre o temor de cometer deslizes, a socióloga, youtuber e autora de "Sintomas Mórbidos" (2019), Sabrina Fernandes, afirma que foca nas coisas que domina mais. "E me poupo de fazer julgamentos que podem colocar quem lê e assiste numa posição defensiva."

"É comum ver pessoas que estão na mesma militância, com pequenas divergências, brigando na internet. Freud definiu esse fenômeno como o narcisismo da pequena diferença", lembra Lia Vainer. Na teoria freudiana, pequenas diferenças estão na raiz de conflitos — do bairrismo a guerras civis sangrentas.

O embate entre aliados é um tiro no pé do ativismo. "Quando os inimigos estão muito longe — como o desmatador da Amazônia —, é possível que você produza encarnações inimigas naqueles que consegue alcançar. Enquanto isso, seu verdadeiro opositor acha graça. O pensamento progressista pode ser excessivamente conflitivo, não propositivo, crítica frequente nas falas dos conservadores", opina Dunker.

EU E O OUTRO

A cultura do cancelamento tem feito surgir reflexões cada vez mais profundas. Está tanto no coração da série "I May Destroy You" (2020), da atriz e roteirista britânica Michaela Coel, na carta aberta assinada por J.K. Rowling e outros intelectuais, publicada no site da revista Harper's Bazaar, quanto no conteúdo produzido por Spartakus Santiago, influenciador com mais de 200 mil inscritos, que passou pelo processo. "Cancelamento só gera like com base na dor alheia", disse.

Não foi diferente com o rapper Emicida. Em entrevistas, ele se questiona: e, se para cada erro seu, houvesse um cancelamento? Existiria hoje um Emicida? "O silenciamento é contraproducente. Esse clima de medo silencia todo mundo", observou, no programa "Papo de Segunda". O artista vem propondo soluções através de diálogo e afeto, algo que norteia seu último trabalho, "AmarElo" (2019), e projetos que surgiram a partir do disco. Desconstruir algo implicaria mais vozes e as redes sociais, na teoria, poderiam facilmente servir para isso.

A importância de reconhecer e ouvir o outro é do jogo. "Eu só sei que sou eu quando consigo perceber que tem eu e o outro. Antes de tudo, eu sou a partir do outro, senão seríamos todos psicóticos", observa o sociólogo Henrique Garbellini. Para ele, a chave para sair desse labirinto é... virar a chave. "A aniquilação do outro é uma vontade de poder. E assim a gente passa por uma espécie de despedida do sentido humano: a experiência da própria humanidade."

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