Pandemia: "santa ceciliers" fiscalizam e vaiam pedestres do Minhocão
"Vai para casa", gritaram dezenas de pessoas em suas janelas para L.V.*, pesquisadora e urbanista, que saiu de casa para comprar mantimentos no último domingo (22). Os gritos deram lugar às vaias, cada vez mais agressivas, até que o amigo que a acompanhava levou uma ovada vinda de um dos prédios que dão para o Elevado João Goulart, viaduto que conecta a região central de São Paulo com a zona oeste, conhecido popularmente como Minhocão.
O distanciamento social é uma das medidas recomendadas pelo Ministério da Saúde e a OMS para evitar o contágio da covid-19 e "achatar" a curva pandêmica para impedir o colapso dos sistemas de saúde, que têm da falta de leitos e equipamentos. A recomendação, portanto, é ficar em casa o máximo possível e, quando sair, evitar a aglomeração de pessoas — mantendo pelo menos 1 metro de distância dos passantes. Seguindo todas as recomendações de segurança, L.V. aproveitou o Minhocão, fechado para o trânsito de carros durante o fim de semana, para ir de bicicleta até um supermercado mais distante de sua casa, com mais opções de produtos.
"Pegamos o Minhocão pela Rua Ana Cintra [no bairro central Santa Cecília], e não tinha nenhum tapume. Deu para perceber que tinha algo errado porque estava tudo vazio, mas continuamos", relata a pesquisadora. "Teve um momento em que as pessoas começaram a gritar dos prédios, alguns gritos meio engraçados e outros muito agressivos. Seguimos, até chegar na saída da Barra Funda, e ver os tapumes altos bloqueando a saída. Tivemos que voltar".
Na volta, L.V. e seu amigo enfrentaram mais uma vez as janelas atentas dos prédios que dão para o Minhocão. Dessa vez, alguém atirou um ovo direto de um dos apartamentos, acertando em cheio seu amigo. "A via estava completamente vazia. Claramente era uma situação que não oferecia risco a ninguém. As pessoas estão despertando essa força muito forte de querer vigiar e punir os outros", critica. Na semana anterior, a pesquisadora não saiu de casa, conforme recomendado. Por causa das vaias e da ovada, acabou voltando para casa sem conseguir fazer as compras que precisava. O jeito foi fazer as compras mais tarde, naquele dia, em um mercado menor.
No mesmo dia, a analista de processos e jornalista J.B.* passou pela mesma situação. Ao lado do seu namorado, o publicitário Guilherme*, foram de bicicleta até a feira da Santa Cecília — a última permitida na cidade antes da quarentena decretada na terça-feira (24). Ambos foram de máscara e luvas para comprar mantimentos e também usaram o Minhocão fechado para voltar para casa.
"Quando subimos pela rampa de entrada (que não estava bloqueada), um casal estava saindo e avisou para a gente se preparar porque seríamos massacrados. Quando chegamos [na via], foi um barulho ensurdecedor", narra Guilherme. Na frente do publicitário e da jornalista estava um casal gay correndo pela via. Eles viraram alvos de bexigas cheias de água, atiradas pelos moradores do entorno do Minhocão. "As pessoas foram gritando, mandando a gente ir para casa e a gente estava voltando para casa, mesmo. Um dos caras que estavam correndo na nossa frente tinha cabelo grisalho e o pessoal ficou falando que ele era velho e ia morrer primeiro", lamenta.
O casal não só ouviu palavras de ordem para fazer o que já estava fazendo como também foi xingado de "arrombados". Chegando na saída da Barra Funda, viram que o acesso estava fechado por grandes tapumes de metal. Tentando sair da via, foram recebidos mais uma vez com gritos e celulares apontados para eles dos moradores do bairro. "Comecei a ficar assustada de a gente estar descumprindo alguma ordem ou regra", conta a jornalista. "A gente não saiu para nada além de comprar a comida", conta.
A jornalista postou um vídeo das vaias no Minhocão, criticando a conduta dos moradores. L. V. também fez um post no grupo de que participa, onde moradores da região postam avisos. Ambas foram atacadas por alguns internautas, que endossaram a atitude dos vigilantes informais do Minhocão. Não muito longe da entrada principal do elevado está a Praça Roosevelt — onde ainda se veem pessoas utilizando o local para caminhar com seus cachorros e fazer exercícios. Após os panelaços contra o presidente Jair Bolsonaro, que já se tornou costume diário na região, não é raro ouvir moradores dos prédios gritarem para pessoas na rua irem para casa.
Desde o último fim de semana, o Minhocão passou a ser bloqueado por tapumes após certo horário para impedir que pedestres o utilizem para fazer esportes ou caminhar e, assim, evitar a aglomeração. Parques também foram fechados. No entanto, a quarentena decretada em São Paulo não impede que pessoas caminhem nas ruas, mas aconselha que só saiam de casa apenas para fazer coisas essenciais. Muitas pessoas também não pararam de sair de casa para trabalhar, como é o caso de milhões de trabalhadores autônomos e de prestadores de serviços essenciais que ainda precisam enfrentar o transporte público lotado e outras situações do tipo para conseguirem se manter.
Vigiar e punir
A presença de pessoas na rua ainda não é (ainda) algo tão anormal de se observar na cidade. Sem um contexto individual, pode parecer absurdo que alguém ouse sair de casa, colocando seus familiares e a si mesmo em risco. Os gritos das janelas em alguns pontos de São Paulo podem até refletir uma preocupação válida com a seriedade da pandemia da covid-19, mas acabam se manifestando como uma vigilância informal — que é pouco efetiva para lidar com a crise do novo coronavírus no país.
"Há muito tempo, em torno de outras questões como o consumo de drogas, existe uma concepção de cidadania que costumo chamar de cidadão-polícia, onde todo mundo se sente policial de si e dos outros", explica Acácio Augusto, professor no Departamento de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento).
"Esse tipo de conduta policialesca obviamente tende a se intensificar quando, por algum motivo de força maior — no caso, o desencadeamento de uma epidemia — se invoca uma espécie de mobilização total em nome de um bem coletivo e que se sobrepõe a tudo. Nesses casos, todos são imediatamente responsabilizados pelo que pode acontecer de pior. Só isso, a imagem de imobilização total, já é complicada, porque ela não é real. Mesmo do pontos de vista econômico e social, é evidente que ela atinge as pessoas de maneira diferente."
Augusto diz não se surpreender com o fato de que a vigilância venha de uma região conhecida pitorescamente por ter moradores progressistas — os próprios "santa ceciliers". "Isso atinge tanto as pessoas identificadas ideologicamente com a direita quanto a esquerda. É o que o Foucault chamou de microfascismo, que está incrustado em nossa carne, nas dobras do corpo. Acho bastante complicado, porque [essa conduta] não funciona e gera mais animosidade ao que funcionaria de fato, que é a solidariedade entre as pessoas. Isso decorre da própria ideia de achar que a gente está numa guerra, o que é no mínimo ridículo. É uma guerra contra quem? Contra um vírus que não é uma força política ou militar. Quando se assume esse discurso de guerra, todo mundo se sente alistado na tarefa de manter as pessoas dentro de casa", diz.
A reação das janelas paulistanas no último fim de semana fez com que Mário Eduardo Pereira Costa, psiquiatra e psicanalista e professor do Departamento de Psiquiatria da Unicamp, se lembrasse dos "Fiscais do Sarney", um título popular instituído nacionalmente em 1986, pelo então presidente José Sarney, para que cidadãos fizessem o controle de preços nos mercados varejistas por conta do Plano Cruzado, que tabelava o preço de bens e mercadorias. Rapidamente, a medida escalou para situações esdrúxulas como a cena histórica do consumidor que fechou um supermercado em Curitiba (PR) para evitar a remarcação de preços. "Numa situação como essa, quanto mais ameaçadas as pessoas sentem com a possibilidade de que o outro rompa o pacto social, mais se desencadeiam paixões brutais. Esse tipo de situação coloca todo mundo à flor da pele o tempo todo. Você está sempre desconfiado que aquele equilíbrio está instável", comenta.
A vigilância feita por nós mesmos parece às vezes ser a única opção — especialmente quando o presidente do país minimiza os danos e mortes da covid-19 e diz que tudo deve voltar ao normal —, mesmo quando grande parte dos países afetados mostra que é muito mais efetivo ficar em casa. Porém, pouco ajuda na situação de quem está saindo de casa pela primeira vez em uma semana para fazer compras ou quem não tem opção, a não ser enfrentar as ruas. "Uma coisa é ter cuidados, outra coisa é usar a crise para agredir as pessoas e expressar seu ressentimento social", aconselha Augusto.
O Minhocão foi fechado no último fim de semana para evitar a circulação de transeuntes na via, impedindo assim aglomerações. A esperança agora é que as janelas vigilantes se acalmem por ora e o panóptico paulistano descanse um pouco até o final da quarentena.
* Os nomes e sobrenomes foram ocultados a pedido dos entrevistados.
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