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Panelaços no Brasil e no mundo: novo coronavírus viralizou protestos?

Em tempos de isolamento social, panelaços se intensificam pelo Brasil e pelo mundo - Reprodução de vídeo
Em tempos de isolamento social, panelaços se intensificam pelo Brasil e pelo mundo Imagem: Reprodução de vídeo

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

20/03/2020 14h08

Está no dicionário: panelaço, substantivo masculino, é a "manifestação de protesto em que se batem panelas e outros utensílios de metal". O barulho é grande e, ao menos em grandes cidades, difícil quem tenha passado incólume por algum deles nos últimos anos da conturbada política brasileira.

Nesta semana, a forma de protesto voltou com tudo nas sacadas e janelas brasileiras. Em tempos de novo coronavírus — e comportamentos no mínimo inadequados do presidente Jair Bolsonaro frente à pandemia — a irritação do brasileiro encontrou no panelaço a forma de manifestação ideal: é ruidosa e, bem, pode ser feita de dentro de casa, sem aglomerações, sem romper o isolamento que o contexto exige.

O recado das varandas ao Planalto pode indicar que o jogo está virando. O barulho das panelas marcou toda a crise do governo Dilma Rousseff — o comportamento foi lançado durante o pronunciamento em cadeia nacional que a petista fez em 8 de março de 2015 e seguiu cada vez mais frequente até o impeachment, em agosto de 2016.

Mas o panelaço não foi inventado contra Dilma. Essa forma de protestar é uma instituição da política latino-americana. Batizado de "cacerolazo", o primeiro ocorreu no Chile de 1971, quando donas de casa foram às ruas batendo panelas vazias. O recado era claro: havia uma crise econômica e, no entendimento das manifestantes, a culpa era do governo do socialista Salvador Allende (1908-1973). Depois, esse jogo virou. Se o primeiro panelaço foi contra um governo de esquerda, em 1983 foi a vez da mesma arma ser utilizada contra a ditadura — de direita — comandada pelo militar Augusto Pinochet (1915-2006). Neste caso, o gesto foi feito pela primeira vez de dentro de casa, das janelas, porque havia um medo de manifestação nas ruas, já que eram tempos de repressão. No Brasil, talvez a diferença seja o fato de que, nos último anos, o panelaço foi ficando gourmet — feito da sacada ou da janela, sem movimentação nas ruas, mesmo antes do surto do coronavírus, quando não havia contraindicação de entrar em aglomerações.

Jair e Eduardo Bolsonaro em panelaço contra o PT (2015). -  Reprodução  -  Reprodução
Jair e Eduardo Bolsonaro em panelaço contra o PT (2015).
Imagem: Reprodução

Cinquenta anos de panelas ruidosas. Nesses quase 50 anos de panelaços, o que mudou mesmo foi o simbolismo. Se no princípio as panelas vazias eram símbolo da carestia, com o tempo, passaram a ser a materialização do descontentamento. "Isto mudou recentemente, tornou-se uma espécie de 'basta'", afirma ao TAB o cientista político Carlos Melo, professor do Insper. Ele lembra como isso ficou muito claro no segundo mandato da petista Dilma Rousseff. "No caso Dilma, acontecia nos momentos em que a presidente tentava se pronunciar pela televisão. De algum modo, seus opositores mandavam o recado: 'não quero ouvir, basta'". Mas panelas também fizeram barulho na Argentina — sobretudo na grave crise que os hermanos viveram em 2001. No México, aconteceu em 2006; na Venezuela, em diversos anos; no Chile, a história se repetiu em 2019. O panelaço virou um produto latino-americano de exportação: já ocorreu no Canadá (2012), no Líbano (2019), na Islândia (2008), entre outros países.

O novo coronavírus vai fazer panelas viralizarem? A pandemia tem, sim, esse efeito colateral: pode potencializar panelaços no Brasil e no mundo. Primeiro vamos ao caso brasileiro. "Os panelaços são resposta à postura com que originalmente o presidente da República tratou o tema, como sendo algo de mera histeria, mera fantasia, minimamente ouvindo seus técnicos. Em desacordo com tudo isso, o presidente, ao dar a mão a todos [na manifestação que houve em seu apoio no último domingo], não está simplesmente se colocando em risco, está colocando o país em risco, pelo exemplo que ele produz", avalia ao TAB o psiquiatra Paulo Amarante, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e autor e editor da coleção Loucura & Civilização da Editora Fiocruz. "O panelaço veio em consequência disso e, por outro lado, o próprio presidente convocou panelaços também a seu favor." Acontece que é da própria essência de uma manifestação do tipo o "ser contra", de forma que o engajamento como forma de apoio não funciona como alguns políticos esperam. Termômetro disso são as redes sociais. Conforme apontou a colunista do UOL Thais Oyama, o Twitter demonstrou isto na última quarta-feira. "Neste período, a rede social registrou 330 mil menções favoráveis a Bolsonaro contra 498 mil menções contrárias ao presidente — quase um terço a mais. Mais importante que isso foi que as críticas ao ex-capitão foram escritas por 186 mil pessoas ("autores únicos"), enquanto apenas 75 mil indivíduos se apresentaram para defendê-lo", escreveu ela, com base em levantamento da agência de análise digital Bites.

Projeção em prédio de Santa Cecília, no centro de São Paulo, durante panelaço contra Bolsonaro - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Likes, compartilhamentos, tuítes e retuítes. O panelaço não se restringe ao ato em si: existe um antes e um depois que influencia o humor do brasileiro — aquele que acontece nas redes sociais e nas mensagens de WhatsApp. Curiosamente, as mesmas ferramentas que foram decisivas na hora de informar e desinformar durante as campanhas eleitorais se tornaram a fagulha e a repercussão das manifestações. De acordo com monitoramento realizado pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV Dapp), na noite de quarta as hashtags contra o presidente somaram 220,5 mil posts no Twitter, enquanto as em defesa de Bolsonaro tiveram 152,4 mil menções. As principais hashtags utilizadas pela oposição foram #forabolsonaro, #forabolsonaros, #panelaço18m. Já os defensores do presidente utilizaram #panelaçocontraaesquerda e #respeitem57milhoesdeeleitores.

Coesão social em tempos de isolamento. Mas não foi só no Brasil que panelas foram ouvidas. Na Espanha, a barulheira tinha motivo concreto: em tempos de novo coronavírus, os cidadãos pediam que o rei Felipe VI doasse 100 milhões de euros para os hospitais. Como é uma forma de protesto que não exige a ida às ruas, a formação de aglomerações e o contato físico, os panelaços nas janelas parecem ser o modelo ideal de demonstrar insatisfação em tempos de isolamento e quarentena. É a versão raivosa das cantorias e exibições musicais que têm sido vistas nas sacadas italianas durante a quarentena. Se, por lá, a música tem sido a terapia contra o medo e o instrumento de coesão social, no Brasil a indignação contra o governo pode ser potencializada. Seria uma forma de exercer a coletividade no caos para que as pessoas estejam juntas, mesmo que cada uma fique dentro da própria casa. Não foi por acaso que os panelaços se sofisticaram com pirotecnias como projeções de imagens e frases de protesto em fachadas de edifício. "Vimos o que acontece na Itália e entendemos que são atitudes espontâneas muito importantes", comenta Amarante. "O isolamento forçado nos dá a necessidade de ter certo controle das relações. É o momento de refletirmos como tirar proveito de recuperar algumas coisas da vida, das nossas relações afetivas, nossas formas de ver o mundo. Repensar. E essas manifestações são importantes desde que sejam inspiradas em necessidades solidárias. A meu ver, neste momento, o que precisamos é exercitar a solidariedade."

Continuar batendo panela funciona? No cenário político, esta é a questão: com quantos panelaços se derruba um presidente? A ala governista precisa temer o barulho das sacadas? Cientistas políticos e especialistas acreditam que ainda é cedo para vislumbrar o que pode acontecer, mas lembram que as manifestações contra Dilma Rousseff foram aumentando gradualmente entre março de 2015 e agosto de 2016 — e esse descontentamento popular acabou sendo combustível do processo de impeachment. "[O panelaço] cria um clima de contrariedade e oposição que ainda não havia. Demonstra que 'o povo', a quem os bolsonaristas se referem, não está só numa das pontas da política. Há muita gente insatisfeita e isso quebra o discurso de Jair Bolsonaro como representante legítimo do povo", comenta o cientista político Carlos Melo. "Minha impressão é que na quarta o placar foi 9 a 1 contra Bolsonaro. Mera impressão. Mas se todos tiverem a mesma percepção, cria-se uma onda de desgaste". No livro 'Sucesos Argentinos: Cacerolazo Y Subjetividad Postestatal', o filósofo e historiador Ignacio Lewkowicz (1961-2004) afirma que os panelaços são "a condição do enunciado de exaustão frente à classe política".