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Muito além de 'Pantera Negra': o que é afrofuturismo e como entendê-lo

Chadwick Boseman e Michael B. Jordan se enfrentam em cena de "Pantera Negra" - Divulgação
Chadwick Boseman e Michael B. Jordan se enfrentam em cena de "Pantera Negra"
Imagem: Divulgação

05/09/2020 04h01

Quantos personagens com superpoderes ou que viraram ícones da ficção científica têm rosto negro? Essa pergunta talvez explique a repercussão em torno da morte do ator Chadwick Boseman, aos 43 anos, vítima de câncer de cólon. O ator norte-americano personificou o primeiro super-herói negro dos quadrinhos no filme "Pantera Negra" (2018). O longa foi um divisor de águas no cinema, ao nos apresentar não apenas um herói mas também a fictícia Wakanda, nação africana que nunca foi colonizada nem escravizada — pelo contrário, desenvolveu uma sociedade ancestral altamente tecnológica.

A alegoria serviu para apresentar conceitos de afrofuturismo a um público mais amplo, muito embora essas ideias estejam na literatura, nas artes, na moda e na música pelo menos desde os anos 1960, desde quando o músico, poeta e filósofo norte-americano Sun Ra introduziu sua "filosofia cósmica" na música. Mas o que é, afinal, o afrofuturismo?

Tudo sobre afrofuturismo

O que é afrofuturismo?

O afrofuturismo é um movimento cultural, social e político, cuja produção promove o encontro entre ficção científica, tecnologia, realismo fantástico, ancestralidade, mitologia e diáspora africana negra. Essas narrativas da ficção especulativa permitem imaginar novos futuros para a população negra, reelaborar o passado — que historicamente é de desconexão com o continente africano e suas narrativas, perdidas no tempo e nas correntes da escravidão — ou fabular o presente.

Como surgiu o afrofuturismo?

O embrião do movimento está em algumas obras artísticas entre as décadas de 1950 e 1970, especialmente nas obras dos autores de ficção científica Ralph Ellison, Octavia Butler e Samuel R. Delany, e no jazz "espacial" de Sun Ra, mas o conceito (e a denominação) só surge em 1993, no artigo "Black to the Future". Escrita pelo pesquisador norte-americano Mark Dery e incluído no livro "Flame Wars: the discourse of cyberculture", a análise usa o termo para caracterizar criações artísticas que, nas palavras do próprio Dery, são "ficções especulativas que tratam de temas afro-americanos e que abordam preocupações afro-americanas no contexto da tecnocultura do século 20".

Por que o afrofuturismo está em alta?

O movimento tem sido essencial para recuperar valores dos povos africanos historicamente subjugados (seja em sua ancestralidade, mitologia ou conhecimentos científicos), mas também para projetar futuros para a população negra no contexto dos avanços tecnológicos.

Samuel R. Delany, nascido no Harlem em 1942, reflete que o afrofuturismo nasce por causa da negação da construção de um passado para as populações negras pós-escravidão — e a escassa produção de imagens de futuro destas populações, em um sentido coletivo. "Não tenho ideia de onde, na África, meus antepassados negros vieram porque, quando eles chegavam ao mercado de escravos de Nova Orleans, os registros desse tipo de coisa eram sistematicamente destruídos. Se eles falassem a sua própria língua, eles apanhavam ou eram mortos."

A pesquisadora norte-americana Lisa Yaszek analisa que o afrofurismo se dá com uma chave propositiva e positiva. "Não apenas relembrar um passado ruim, mas usar as histórias do passado e do presente para reivindicar a história do futuro."

Como o afrofuturismo atua na cultura pop?

Nos últimos anos, o afrofuturismo se tornou um movimento estético global que abrange arte, cinema, literatura, música e pesquisas acadêmicas.

Para a pesquisadora Lisa Yaszek, há três objetivos principais na realização de uma obra afrofuturista: narrar boas histórias de ficção científica; recuperar histórias negras perdidas e inspirar "novas visões do amanhã". Além disso, o movimento veio como uma possibilidade para que artistas criassem suas próprias interpretações sobre o mundo e o passado, contra a imagem por vezes pejorativa que personagens e histórias negras ganharam na história da arte.

Afroturismo na música

Antes mesmo de o termo se popularizar, Sun-Ra, pseudônimo usado pelo músico e poeta Herman Poole Blount (1914-1993), conectou seu passado com o místico e primitivo em sua música. Sun Ra acreditava que nosso mundo era impossível de mudar, então a solução para a população negra era ir para o espaço e colonizar outros planetas. O exercício de imaginação servia para mostrar o mundo perfeito, do ponto de vista negro, uma espécie de utopia afro-americana. Essa visão desaguou em mitos extraterrestres e na criação e na estética do coletivo Parliament-Funkadelic, comandado por George Clinton — que falava sobre "Afronautas certificados, capazes de 'funkitizar' galáxias".

O afrofuturismo na música foi reintroduzido nas últimas décadas pelas mãos de muitos artistas, como Flying Lotus, Outkast e, principalmente, Janelle Monáe, que desde o início da carreira explorou em clipes e álbuns conceituais um mundo de ciborgues sob os domínios da escravidão. Elementos afrofuturistas também estão presentes nas obras das cantoras Beyoncé, Solange, FKA Twigs e do duo Ibeyi. A cantora brasileira Ellen Oléria lançou em 2016 o álbum "Afrofuturista", e a rapper Karol Conká costuma associar seu figurino e estética a uma pegada futurista.

Afrofuturismo no cinema

O sucesso mundial de "Pantera Negra" fez crescer ainda mais o interesse pelo movimento. O último trabalho de Beyoncé, o álbum visual "Black is King" (2020), recriou a narrativa de "O Rei Leão" em uma imaginária África ancestral, altamente tecnológica, e uma narrativa que cruza passado, presente e futuro.

No entanto, há verdadeiras aulas de afrofuturismo em filmes mais antigos, como "Space is the Place" (1974), protagonizado por Sun-Ra, e "Nascidas em Chamas" (1983). No Brasil, essa ideia inspirou o longa-metragem "Branco Sai, Preto Fica" (2014) e o recente curta, "Negrum3" (2019).

Afrofuturismo na literatura

Os romances dos norte-americanos Samuel R. Delany e Octavia Butler são tidos como obras referenciais no afrofuturismo.

Em "Laços de Sangue", Butler propõe uma viagem no tempo, mas em vez de de entregar uma aventura divertida, como um filme feito para a "Sessão da Tarde", a experiência vivida por uma mulher negra entrega uma narrativa completamente diferente. Aqui, mais uma vez, questões de raça e gênero são cruciais para a história. Em sua pesquisa, Lisa Yazsek defende que o romance "O Homem Invisível", de Ralph Ellison, publicado em 1952, é um antecessor da literatura afrofuturista.

Autora de "Duologia Brasil 2408 [(In) Verdades e (R)Evolução]", a escritora brasileira Lu Ain-Zaila diz enxergar no movimento uma forma de construir histórias com personagens majoritariamente negros, em uma perspectiva local. "Quando escrevo um conto de fantasia que mistura maracatu e coloco como personagens principais pessoas negras, vivendo em outro planeta, em que elas fazem magia, falam iorubá... Isso é uma mudança incrível! Personagens falando uma língua de um país africano e não usando palavras nórdicas, que é o que a gente naturaliza, quando falamos em fantasia", afirma. O escritor Fábio Kabral faz isso com o livro "Caçador Cibernético da Rua 13" (2017), em que repensa mitos, ancestralidade e ficção científica, inspirado nas culturas africanas.

Afrofuturismo na política

Apesar do Afrofuturismo se comunicar por meio da estética, o movimento tem se ampliado e abarcado a política, como apontam pesquisadores e intelectuais. Entre eles está o filósofo camaronês Achille Mbembe, que defende a ideia do "afropolitanismo", uma maior conexão entre os países do continente africano para romper com os limites nacionais construídos pelo colonialismo europeu e forjar uma política local mais consistente.

Mbembe acredita que o futuro do planeta esteja justamente no continente africano e aponta que, nos próximos 30 ou 50 anos, uma em cada três pessoas na terra será africana ou afrodescendente. "O afrofuturismo deixa de ser uma questão étnica ou continental e se torna planetária, é preciso entender que o futuro negro é o futuro da Terra", afirma Kênia Freitas, pós-doutoranda em Comunicação na Unesp (Universidade Estadual Paulista) e pesquisadora de afrofuturismo. A campanha política de Ingrid LaFleur, em 2017, para a prefeitura de Detroit (EUA), tornou-se referência afrofuturista no plano político.