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Brasileiro é "jardineiro da fumaça" em clube canábico do Uruguai

Jonathan Jaime cheira flor de cannabis em clube oficial criado em apartamento no centro de Montevidéu (Uruguai) - Fabiana Maranhão/UOL
Jonathan Jaime cheira flor de cannabis em clube oficial criado em apartamento no centro de Montevidéu (Uruguai) Imagem: Fabiana Maranhão/UOL

Fabiana Maranhão

Colaboração para o TAB, de Montevidéu

11/04/2019 04h01

Meu primeiro contato com um pé de maconha foi quando meu irmão Guilherme decidiu plantar em um vaso no apartamento em vivíamos no centro do Recife. Minha mãe descobriu e não gostou nada. Comentou comigo, e soltei: "e se a polícia vem aqui?". Nunca aconteceu isso, claro!

Da mesma forma, a polícia nunca bateu na porta de outro Guilherme, este de Curitiba, que também plantou maconha na casa da mãe quando era mais novo. "Minha mãe dizia 'vai plantar maconha em casa? Você é louco? E se a polícia bate aqui?". Mãe é tudo igual, só muda endereço.

Não lembro quanto tempo meu irmão continuou com a pequena horta, mas hoje já não tem mais. Já o Guilherme de Curitiba traçou um caminho bem diferente: continuou plantando e uns anos depois se mudou para Montevidéu, onde hoje é jardineiro em um clube canábico.

Os clubes do THC

No Uruguai, existem atualmente 114 clubes canábicos, que possuem ao todo cerca de 3,5 mil membros. São associações que produzem maconha e só podem vendê-la para seus sócios. Para funcionar, essas entidades precisam ser registradas e seguir uma série de normas previstas na lei que foi aprovada pelo Congresso do país e sancionada pelo ex-presidente José Mujica há pouco mais de cinco anos.

A cannabis distribuída pelos clubes a seus sócios é mais cara que a vendida nas farmácias, custando o dobro ou até o triplo do valor por grama. Os membros também precisam pagar uma taxa de matrícula, que pode chegar a U$400 (cerca de R$1.500). Se é tão caro fazer parte de um clube canábico e comprar maconha por ele, por que não ficar com o da farmácia mesmo?


Uma das críticas feitas à cannabis vendida nas farmácias é em relação ao baixo nível de THC (tetra-hidrocarbinol), principal componente da planta e que é responsável pelos efeitos que provoca. O percentual dessa substância na maconha comercializada pelas farmácias é de 9%. Nos clubes é o dobro. Outra diferença é que as farmácias só oferecem duas variedades, enquanto os clubes disponibilizam às vezes mais de dez opções. Na mão dos farmacêuticos, o pacote de cinco gramas custa 213 pesos uruguaios (R$ 24) e rende uns dez cigarros.

Uma fazenda doméstica

Há cerca de cinco meses Guilherme é jardineiro em uma "casa de maconha", como ele chama o clube onde trabalha. A pedido dele, só vou chamá-lo pelo primeiro nome. Ele também não topou mostrar o rosto quando pedi para fotografá-lo. Guilherme tem medo de sofrer algum tipo de represália vinda do Brasil, onde o assunto ainda é tabu.

Guilherme vai todos os dias ao clube; "nunca é menos de cinco, seis horas de trabalho" por dia. Usa jaleco, touca, luvas, "não uso o mesmo tênis que saio, tem todo um controle de qualidade". Ele é responsável por cuidar de 99 plantas (limite estabelecido por lei), que são cultivadas dentro de uma casa de 500 metros quadrados. Não pude entrar no local por restrições estabelecidas pelo dono do clube. Por isso, marcamos de conversar em um fim de tarde às margens do rio da Prata.

O brasileiro Guilherme dá um tapa à beira do rio da Prata depois de um dia de trabalho como jardineiro de maconha - Fabiana Maranhão/UOL - Fabiana Maranhão/UOL
O brasileiro Guilherme dá um tapa à beira do rio da Prata depois de um dia de trabalho como jardineiro
Imagem: Fabiana Maranhão/UOL

"Sim, eu só trabalho plantando maconha. Mas tem quartos de floração, quartos de vegetação, quartos de clonagem, manutenção disso, manutenção daquilo, queima uma lâmpada, troca um reator. Desde a climatização que elas precisam, a nutrição, o substrato, o cuidado, a desfolhação, poda, sistema de cultivo, tudo isso eu sou responsável. Se der algum negócio errado, ninguém tocou".

Para ser um bom jardineiro, Guilherme diz que é preciso ter algo que ele odeia: disciplina. "Você precisa regar, ver se tem praga. O segredo é a rotina, e o difícil é se adequar". Por causa do trabalho, ele está com tendinite nas mãos. "É trampo, tem que gostar".

Mas nem tudo são espinhos nesse ofício. Há sempre uma fumaça entre as árvores, e não é uma nuvem de agrotóxico: Guilherme pode fumar maconha enquanto trabalha. "Eu tenho déficit de atenção e, quando eu fumo, me concentro mais, consigo focar mais. Mas cada um é cada um. O meu chefe, quando tem que fazer alguma coisa, não pode fumar. No começo, ele falava assim 'como você vai trabalhar com essa fumaceira?', mas eu sempre fumei a quantidade que eu fumo, normal. Se tem dia que eu não fumo, me perguntam o que está acontecendo".

Mudas de maconha recebem luz artificial em período de crescimento em tenda dentro de apartamento - Fabiana Maranhão/UOL - Fabiana Maranhão/UOL
Mudas de maconha recebem luz artificial em período de crescimento em tenda dentro de apartamento
Imagem: Fabiana Maranhão/UOL

"Mas você fuma a maconha do clube?", pergunto. "Eu levo meu ganja, o dono do clube leva o ganja dele, o outro parça leva o ganja dele, tem o ganja do clube, cada um faz as suas extrações e, no final, fuma todo mundo o de todo mundo. Raramente levo maconha do clube pra casa, mas não tem um controle".

Degustação na plantação

Guilherme fuma também por obrigação do trabalho. "A gente faz a degustação de tudo que colhe, de tudo que extrai. É como um sommelier".
Está brisando quem acha que é só mudar pro Uruguai para conseguir um emprego de jardineiro da fumaça. "As pessoas pensam: 'eu vou lá entregar currículo'. Isso não existe. É confiança, é preciso conhecer [as pessoas certas], é bem restrito".

No caso de Guilherme, um amigo brasileiro dele que trabalhava em uma growshop (loja que vende produtos para cultivo de maconha) o indicou para ser vendedor lá, o que ele não chegou a fazer. Trabalhou no stand da loja na Expo Cannabis, evento mais importante da indústria canábica no país, e pouco depois foi chamado pelo dono da growshop para ajudar no clube.

"Eu levo jeito porque eu cultivava na minha casa no Brasil. Uma noção eu já tinha, mas não em larga escala. Dei uma mão por dois dias, depois o cara disse 'preciso mais isso, mais aquilo'. Passaram duas semanas, e o cara falou 'olha, você pode ser o jardineiro do clube se você tiver disposição´".

Dentro do clube

Em outro clube, consegui entrar. Estive em um que fica em um prédio antigo, em um primeiro andar em uma avenida movimentada de Montevidéu.

No edifício, nada de placa, nem indicação na linha "Seja bem-vindo!". Nem campainha tinha. Tive que mandar mensagem por Whatsapp para o uruguaio Jonathan Jaime para que abrisse o portão do prédio. Fui recebida por ele, que é jardineiro e um dos donos do clube. Ele me levou até o apartamento de 80 metros quadrados onde funciona a associação.

O final da produção é a flor seca da maconha, popularmente conhecida como "camarão" - Andres Stapff/Reuters - Andres Stapff/Reuters
O final da produção é a flor seca da maconha, popularmente conhecida como "camarão"
Imagem: Andres Stapff/Reuters

Um corredor levava até a sala que era ocupada por quatro barracas retangulares gigantes. É aí onde tudo começa. Uma delas funciona como incubadora para os galhos que foram extraídos recentemente de plantas maiores e que ficam ali para enraizarem. Esse processo é chamado de clonagem. Depois, passam para as barracas da fase vegetativa, onde vão receber água, nutrientes e luz artificial durante 18 horas por dia, sob uma temperatura média de 25ºC.

"A nutrição é o mais complicado, ver a dieta de cada planta, como come, como reage a cada nutriente que damos. Elas não comem todas a mesma coisa, não se alimentam da mesma forma, têm metabolismos diferentes. É uma espécie vegetal só, mas são muitas plantas. Cada genética é como se fosse uma planta diferente. Isso é o que dá mais trabalho e que você vai aprendendo aos poucos".

O trabalho de produção de maconha em locais fechados é uma parceria entre as plantas e o jardineiro. "Vou preparando a planta como quero que fiquem para a floração. Eu defino a estrutura da planta, com poda e outras coisas. Ela faz a sua parte, mas dá para manipulá-la bastante".

Cheirando maconha

Depois de cerca de um mês e meio na etapa vegetativa (crescimento), as plantas trocam de quarto, para um mais fresquinho, com temperatura entre 18ºC e 20ºC, onde podem dormir mais horas: elas ficam 12 horas sob luz artificial e 12 horas no escuro. Essa fase é chamada de floração, quando nascem as buds, que fazem a alegria dos fãs da cannabis.

"Da clonagem até estar pronta para passar para a floração, é um mês e meio. E depois, na floração, segundo cada genética, tem plantas que são de 60 dias, tem plantas de 75, 80 dias. Isso varia. A média de um ciclo completo é de três meses."

Julio Rey tem clube na cidade de Florida, interior do Uruguai, e é dirigente dos canabicultores - Thea Severino/Folhapress - Thea Severino/Folhapress
Julio Rey tem clube na cidade de Florida, interior do Uruguai, e é dirigente dos canabicultores
Imagem: Thea Severino/Folhapress

O cheiro desse quarto era muito bom, de maconha verdinha. Cada flor que cheirei tinha um aroma diferente, às vezes mais cítrico, às vezes mais doce. Passaria horas aí cheirando cada flor (eu disse cheirando).

Jonathan mostra buds com folhinhas amareladas e ressecadas na base. É o sinal de que todos os nutrientes já foram absorvidos pela planta, que está terminando o seu ciclo. O próximo passo é a colheita da flor, que será levada para outro quartinho, o da secagem.

A experiência de Jonathan é fruto de quatro anos trabalhando como jardineiro no clube que ajudou a criar junto com amigos da faculdade. Ele é o jardineiro da associação, um dos sócios-fundadores e divide o apartamento com uma cadela e 99 plantas. "Estou quase sempre aqui com as plantas. Não fico todo o tempo trabalhando diretamente com elas, tocando nelas. Uma média de 11, 12 horas de trabalho por dia".

Amo meu trabalho
Jonathan não reclama; gosta de fumar maconha, de plantá-la e, mais ainda, de ter seu próprio negócio. "Deixei de tatuar para me dedicar às plantas. Adoro tatuar, mas hoje em dia faço mais por hobby. No começo [do clube], fiz as duas coisas porque tinha tempo, o clube não tinha o tamanho que tem hoje. Mas chegou um momento que não tinha mais tempo para tatuar".

O clube dele tem 30 sócios e produz entre 1,2 mil e 1,6 mil gramas de maconha por mês, de nove variedades diferentes. Cada sócio tem direito a comprar o limite mensal de 40 gramas, que é o mesmo para quem compra nas farmácias.

Por causa de alterações feitas no ano passado nas normas de regulamentação dos clubes canábicos no Uruguai, em breve Jonathan terá que se mudar da sua "casa da maconha". "Como vai ser viver "longe" das plantas?". "Onde for viver, vou plantar", responde na maior tranquilidade enquanto fuma seu ganja.