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Opinião: Assange vira símbolo de uma era de esperança que não se realizou

Julian Assange - Getty Images
Julian Assange Imagem: Getty Images

Leandro Beguoci

Colaboração para o TAB, em São Paulo

18/04/2019 04h02

2010 parecia um ano muito bom para os otimistas com a internet. Nessa categoria, a dos otimistas, estavam as pessoas que acreditavam num futuro no qual os cidadãos teriam mais poder sobre as suas vidas, os governantes teriam de abraçar políticas honestas e responsáveis e as empresas viveriam sob rigoroso escrutínio. Além disso, surgiam sinais vigorosos de uma futura economia do compartilhamento, que parecia desafiar o capitalismo de grandes corporações, com mais trocas entre as pessoas, e o fim das barreiras para a circulação de cultura, com notícias, livros e músicas circulando, legal e ilegalmente, mas sempre em abundância, por todos os recantos da internet.

Foi nesse cenário que o mundo descobriu o Wikileaks. Em abril de 2010, Julian Assange se transformaria numa celebridade global por uma série de façanhas. Naquele mês, o planeta descobriria os malfeitos das forças armadas dos EUA na guerra do Iraque, com um vídeo mostrando o assassinato aleatório de civis no país árabe, então ocupado pelos americanos. Foi o primeiro de uma série de revelações que abalaram governos mundo afora, inclusive aqueles que pareciam imperturbáveis. Muitos analistas, por exemplo, atribuem ao site o início da Primavera Árabe, entre 2010 e 2011 - o grupo mostrou documentos sobre a corrupção da família que governava a Tunísia.

Embora o Wikileaks tenha sido fundado em 2006 e divulgado uma série de documentos relevantes antes de 2010, foi apenas no começo desta década que o projeto ganhou status de símbolo de uma era. Entre 2007 e 2009, a plataforma havia se dedicado a publicar dados internos da igreja da cientologia, e-mails da candidata republicana à vice-presidência dos EUA em 2008, Sarah Palin, e a lista de membros do partido de extrema-direita britânico. O impacto fora razoável, mas nada surpreendente. Em 2010, contudo, Assange conseguiu algo diferente. Usando um termo caro a startups, ele conseguiu "escalar" o impacto da sua organização.

Julian Assange durante teleconferência em 2016, na embaixada do Equador em Londres - Frank Augstein/AP - Frank Augstein/AP
Imagem: Frank Augstein/AP

Ele organizou um conjunto global de jornais e revistas, dos EUA e da Europa, dispostos a publicar e interpretar os documentos obtidos por uma rede então anônima de informantes. Um site feito por um hacker ativista era prestigiado por instituições como "The Guardian", "The New York Times" e "Le Monde". Uma colaboração altamente improvável poucos anos antes se tornou, naquela época, possível. E seus efeitos, devastadores.

Parecia o coroamento das teses de Yochai Benkler, professor de direito e pesquisador da Universidade de Harvard, nos EUA. Num livro publicado em 2006, chamado "A riqueza das redes" (é possível ler o primeiro capítulo de graça aqui), ele desenhava um futuro de colaboração intensa entre as pessoas, desafiando as formas tradicionais de circulação de dados e recursos. Um mundo colaborativo e transparente parecia possível. Mais do que isso, parecia ser uma realidade inadiável. Governos e instituições tradicionais deveriam se adaptar para não morrer.

Porém, a realidade logo se mostraria pouco permeável a mudanças tão drásticas. E, em parte, a culpa também é de Assange. A história do hacker ativista, mocinho, lutando contra as grandes organizações do mal, as vilãs, não parava em pé. E o Wikileaks, no fim das contas, dependia tanto dos seus informantes quanto da própria reputação.

Julian Assange no momento em que é levado da embaixada do Equador pela polícia britânica, em Londres - Reprodução / Ruplty - Reprodução / Ruplty
Julian Assange no momento em que é levado da embaixada do Equador pela polícia britânica, em Londres
Imagem: Reprodução / Ruplty

O herói caído

Assange não é uma pessoa fácil. Todas as pessoas que trabalharam com ele, de alguma forma, foram testemunhas dessa natureza. Num dos seus primeiros perfis, publicado no auge da glória, em 2010, ele era descrito como um sujeito apaixonado pela própria imagem e pela sua aura de herói. Também adorava destruir seus críticos na internet e usar um tom de voz profético nas aparições televisivas, como descreve um perfil publicado em 2010 pela conceituada revista "The New Yorker". Quem trabalhou com ele também o descreve como um sujeito muito inteligente e, ao mesmo tempo, fã de teorias da conspiração.

Bill Keller, então diretor-executivo do "The New York Times", abriu o jogo num artigo de 2011. Assange não queria colaboração, segundo o diretor do Times. Ele queria que os veículos fizessem tudo o que ele queria, nos seus próprios termos - e isso incluía colocar nas reportagens links para documentos que poderiam expor pessoas, transformando cada uma delas em alvo de governos ou grupos terroristas no Iraque e no Afeganistão. Seu espírito missionário era de abertura total, independentemente das consequências.

Esse comportamento colocou o ativista em choque com as instituições. Embora a coragem de Assange seja louvável, ele não era exatamente um sujeito responsável. Afinal, o papel de organizações jornalísticas é filtrar e publicar apenas aquilo que é extremamente relevante, de preferência evitando que suas fontes de informação ou cidadãos inocentes sofram consequências indesejadas no processo. Nenhum veículo de comunicação tem a pretensão ou o objetivo de publicar tudo nem de divulgar documentos sem checá-los. Eles avaliam os prós e contras da sua divulgação, balanceando todos os tons de cinza da realidade. Já Assange, como muitos ativistas da sua geração, via o mundo em preto e branco, e sempre colocava empresas e governos claramente no lado errado do mundo...

Assange era uma das "caras" da liberdade de expressão no auge do prestígio do Wikileaks - Reprodução - Reprodução
Assange era uma das "caras" da liberdade de expressão no auge do prestígio do Wikileaks
Imagem: Reprodução

O resultado desse conflito veio rápido. Os veículos diminuíram sua colaboração com Assange, a ponto de alguns pararem de trabalhar com ele. Benckler, o professor, fez um artigo muito interessante sobre o caso em 2011, avaliando que, apesar dos problemas entre o Wikileaks e os jornais, um novo modelo estava, sem dúvidas, surgindo. Ativistas e jornalistas teriam de arrumar um jeito de trabalhar juntos porque, simplesmente, não havia outra opção no futuro.

Bem, o futuro não é necessariamente aquilo que desejamos nem o mundo é um eterno progresso. O Wikileaks se isolou institucionalmente e, mais fraco, começou a sofrer uma série de ataques. A Amazon retirou o site dos seus servidores. Bancos se recusaram a intermediar doações para a plataforma. O site antissistema percebeu, no final das contas, que ele dependia do sistema para sobreviver. E, apesar da divulgação crescente de documentos, que poderia fortalecê-lo, Assange e o Wikileaks foram ficando cada vez mais fracos.

Uma das principais fontes militares do Wikileaks logo foi identificada e presa. E, pouco tempo depois, a aura de herói de Assange caiu. Ele foi condenado por estupro na Suécia e, em 2012, se refugiou na embaixada do Equador na Inglaterra, onde ficou por longos sete anos. O herói também não era bonzinho o tempo inteiro - muito pelo contrário.

O isolamento físico havia virado isolamento político.

Bandeira dos EUA cheia de ouvidos: o sonho de transparência resultou em hipervigilância - McDonald, El Heraldo (Tegucigalpa, Honduras)/ CartoonArts International - McDonald, El Heraldo (Tegucigalpa, Honduras)/ CartoonArts International
Bandeira dos EUA cheia de ouvidos: o sonho de transparência resultou em hipervigilância
Imagem: McDonald, El Heraldo (Tegucigalpa, Honduras)/ CartoonArts International

O fim de uma era

A promessa do Wikileaks teve um leve suspiro em 2013, quando o ex-espião Edward Snowden também revelou uma série de segredos americanos, com uma ampla rede de arapongagem que ligava empresas de tecnologia ao governo americano. Parecia que agora, sem a figura polêmica de Assange, a colaboração voltaria à tona.

Embora tenha sido feita de forma muito mais coordenada do que o Wikileaks, as revelações de Snowden mostraram que várias das promessas da internet, como transparência, eram inviáveis. Pelo contrário, a rede poderia ser uma ferramenta poderosa para governos e corporações se intrometerem na vida dos seus cidadãos, numa máquina de destruição maciça de privacidade.

Quando eu entrevistei Snowden, em 2013, notei uma diferença muito grande em relação a Assange. Enquanto o fundador do Wikileaks estava preocupado com abertura total, o ex-espião queria defender a privacidade dos indivíduos contra o Estado e as grandes empresas. Enquanto Assange virou celebridade, Snowden desapareceu na Rússia. Não coloco minha mão no fogo pela santidade de Snowden, é claro, mas havia uma diferença fundamental de abordagem. É como se fossem pessoas de épocas muito diferentes, mas separadas por apenas três anos.

Assange, o anticorporação, flertou com o populismo de Donald Trump em 2016 - AP - AP
Assange, o anticorporação, flertou com o populismo de Donald Trump em 2016
Imagem: AP

E, na prática, é isso mesmo. As mudanças sociais, econômicas e políticas dessa década aconteceram numa velocidade impressionante. A esperança de 2010 virou rapidamente distopia em 2019 - Assange, o anticorporação, flertou com o populismo de Donald Trump em 2016, para ficar num pequeno exemplo. A internet que poderia conectar as pessoas e dar transparência aos governos no final dos anos 2000 se mostrou uma máquina de monitorar cada um dos nossos passos, como os escândalos recentes do Facebook mostram de forma amarga. As eras costumavam duraram décadas - agora, resistem por meses. A tecnologia, que parecia libertar em 2010, aprisiona em 2019. Em vez de aumentarmos o nosso conhecimento real, afundamos nas realidades paralelas produzidas pelos grupos de WhatsApp, como contei em artigo recente.

Comecei este texto dizendo que 2010 parecia um ano bom para os otimistas - e eu era um otimista naquela época, devo admitir. Mas também é bom lembrar que os primeiros críticos das ilusões de transparência já existiam e escreviam naqueles anos.

Em 2011, Evgeny Morozov, ex-pesquisador sobre internet e sociedade na Universidade de Stanford, no Vale do Silício, publicou um clássico chamado "Net Delusion" (Desilusão com a Internet). Ele já alertava para o tamanho da nossa ingenuidade, tal qual a de Assange. Era mais fácil para governos saberem tudo sobre nós do que nós descobrirmos tudo sobre os governos. Ele aprofundou a tese, de forma ainda mais amarga, ao publicar em 2018 o livro "Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política". Para cada vazamento do Wikileaks, os governos produzem toneladas e toneladas de dados sobre cada um de nós. Não é à toa que Morozov é uma espécie de anti-Benkler. Onde um via esperança, outro já via o caos mais adiante.

É nesse contexto que surgem novas ameaças para direitos que pareciam consolidados. Em 2010, parecia que novos direitos seriam criados. Em 2019, arrisco dizer que eles estão em risco.

Julian Assange virou personagem de "Os Simpsons": teria Homer acreditado nele? - Reprodução - Reprodução
Julian Assange virou personagem de "Os Simpsons": teria Homer acreditado nele?
Imagem: Reprodução

Assange e a liberdade de expressão

Independentemente do que eu ache do indivíduo Assange, algo me parece claro. Se ele for deportado para a Suécia para pagar pelo crime de estupro, estou confortável. Assange não é santo e não tem imunidade para violentar mulheres porque deu contribuições importantes para o planeta.

Agora, se ele for deportado para os EUA por ter trazido segredos militares à tona, eu não fico nem um pouco confortável. A liberdade de expressão estará sob sério risco no planeta. Afinal, se o que Assange fez é crime, então a prática jornalística de revelar segredos do Estado também é - e isso é um atentado fatal ao papel da imprensa numa sociedade livre.

Governos e corporações nunca gostam de ter segredos revelados. No Brasil, nos EUA, na Inglaterra, na França, na China, todos se protegem ou tentam criminalizar o jornalismo, de alguma forma, há décadas. Vários veículos de comunicação que se uniram para coletar documentos secretos e revelá-los nos anos recentes, como no caso Panamá Papers, têm sofrido algum tipo de perseguição política ou judicial. As alegações sobre segurança nacional, tão invocadas no caso Wikileaks, começaram a engrossar uma crescente onda contra as liberdades civis mundo afora. Se em 2010 parecia ok abrir mão da nossa privacidade para jogar "Mafia Wars" no Facebook, hoje isso já é constrangedor. Estamos indo na direção oposta. Em nome da segurança, aceitamos ceder nossa liberdade a governos e grandes empresas de tecnologia.

2019 não é um bom ano para os otimistas com o futuro da internet, mas talvez ele tenha nos dado uma boa lição sobre prudência. Está claro que o mundo não é um eterno progresso e que a tecnologia não é, obrigatoriamente, uma força positiva no mundo. O que fazer nesse cenário? Algumas pessoas podem ficar cínicas. Outras, niilistas. No meu caso, prefiro me apegar ao conceito de redução de danos. Em tempos difíceis, isso significa manter as liberdades civis existentes, mesmo a um preço muito alto - e mesmo que isso signifique defender figuras das quais discordo em tantos níveis, como Assange.

Afinal, o preço da liberdade não é a eterna vigilância. O preço da liberdade é enraizá-la, de verdade, entre os nossos compromissos inegociáveis. E isso não é uma tarefa fácil, não...

Leandro Beguoci é jornalista e diretor da Nova Escola. Fez mestrado em liberdade de expressão pela London School of Economics, em Londres (ING).