Em periferia de SP sem CEP ou segurança, até mercearia vira caixa postal
Na travessa Arquiteto Professor Chaves, localizada no distrito de Cidade Tiradentes, extrema zona leste de São Paulo, a pavimentação perde o cinza lentamente até ganhar tons de terra e desaparecer na altura do número 19. O barro avermelhado toma conta da paisagem das vielas da extensa ocupação com cerca de 350 casas improvisadas, que existe no local há cerca de 7 anos, conhecida como Comunidade Maravilha 2.
Assim como o asfalto, as cartas param no número 19 e são entregues no primeiro barraco construído com pedaços de madeira, que herdou também a numeração da última casa que consta nos mapas oficiais.
Lá vive Jenifer Alves, 31, que usa uma caixa de plástico para guardar as correspondências que recebe dos Correios para os moradores da área. "É o carteiro quem entrega. As pessoas informam o número 19 para correspondência e ele deixa aqui. São em torno de 20 cartas por mês. A maioria boletos de TV a cabo, telefone e leite do programa da Prefeitura", explica ela.
Quando Alves está fora quem se encarrega de receber e ajudar a entregar as cartas aos moradores é Karla Nicomeds, 20, que também mora em uma das primeiras casas. "Quando o carteiro me vê já me entrega tudo. Eu sempre pergunto para quem tem carta e deixo em ordem para quando o pessoal vem pegar", diz.
Fora do mapa
A única maneira de receber uma carta, cartão postal, correspondência agrupada ou telegrama na porta de casa é pelos Correios. A companhia detêm o monopólio desses serviços garantido por lei desde 1978.
No entanto, a entrega domiciliar não existe em ruas não regularizadas pela Prefeitura de São Paulo, sem pavimentação, placa indicativa com nome dos logradouros, numeração nos imóveis de forma ordenada, individualizada e única e que não dispõem de caixas receptoras. Critérios estabelecidos pela Portaria 4.474 de 31/08/2018. De acordo com a empresa, nesses casos as correspondências são disponibilizadas na unidade da companhia mais próxima ao local.
Também é possível solicitar um serviço de Caixa Postal Comunitária, mas somente uma pessoa jurídica pode fazê-lo. E tem que se responsabilizar pelo equipamento e sua manutenção. Além de atender a critérios técnicos dos Correios, como a existência de população superior a quinhentos habitantes, concentrados em um raio de três quilômetros, em caso de comunidades rurais; ou em um raio de quinhentos metros, em caso de comunidades localizadas em área urbana.
Para quem está 'fora de área' para entregas resta cooperação e criatividade para receber as cartas, para assinar algum serviço, ou fazer qualquer ação em que é necessário informar um endereço fixo.
"Quando vou fazer um cadastro, ou algo assim eu sempre digo que moro no número 74, que é o ano em que eu nasci", diz com bom humor Edna Santos Capitú, 45, empregada doméstica e recém-chegada na ocupação.
Na comunidade tudo funciona de forma coletiva, desde a correspondência até a demarcação e cooperação para construção das casas. Vendedores de TV a cabo oferecem o serviço a quem estiver pelo caminho em que transitam. Garantem que não precisa se preocupar em receber o boleto. "É só dar o número do CPF na loja todo mês e pagar", afirma um deles. As antenas instaladas em diversos barracos dão sinal de boas vendas na região.
O valor de um CEP
Ainda que longe de atender os critérios estabelecidos pelos Correios, alguns barracos mostram em suas fachadas a vontade de entrar no mapa, com números grandes pintados à mão em cores vivas sobre os tapumes de madeira. Em outros, com portas sem fechaduras, a frase 'Não entre" é a única medida de segurança aparente.
"É uma forma de ajudar ao próximo. Assim não corre o risco das cartas e cartões extraviarem"
Karla Nicomeds, moradora que ajuda na correspondência
Há dois meses, Edna mora com 13 pessoas de sua família na casa de tijolos aparentes, que a livrou do aluguel que não conseguia mais pagar. "Ter um CEP registrado é importante. Em qualquer ocasião se pede isso."
Para a urbanista Isabel Barboza da Silva, da Ambiente Arquitetura, que trabalha assessorando mutirões na zona leste de São Paulo, ter um CEP vai além do que somente ter acesso às entregas postais. "Está associado a ter uma casa, um endereço. Simbolicamente é uma forma de afirmar a cidadania. Não tê-lo é não ter acesso pleno à moradia", lembra Silva.
Pães quentinhos e cartas
Também em Cidade Tiradentes, na altura do número 500 da avenida Souza Ramos a "Mercearia Pais & Filhos", também é a responsável por receber todas as cartas dos moradores da rua Particular, que começa na esquina do comércio.
Dezenas de envelopes disputam espaço com as cartelas de ovos no balcão. Quem atende aos clientes e confere se há correspondências é Aparecida Rodrigues, 39, proprietária do estabelecimento. "Há cinco anos que estamos no ponto e desde que começamos recebemos as cartas. Mesmo que a gente explique onde ficam as casas, o carteiro não vai", revela.
Encomendas e compras online também são entregues no comércio. Mas para esse tipo de correspondência Rodrigues exige que os moradores informem com antecedência. Feito o aviso, é colado um bilhete no balcão com nome do endereçado que aguarda e a característica do que será recebido. Assim a proprietária se sente mais segura para assinalar a confirmação de entrega dos Correios.
"Sempre anoto uns apelidos para lembrar quem é quem: baixinha, gordinho... É como faço para lembrar quem é a pessoa que tem de receber o que me será entregue", diz ela. É preciso atenção para lidar com a pilha de cartas. Rodrigues as organiza por data, para poder conferir rapidamente quando um morador vai checar se há alguma correspondência para receber. "Tem cartas que ninguém pega. Então eu deixo passar um tempo e devolvo para o carteiro. De quem eu tenho o contato, aviso quando algo chega", explica ela.
A rua Particular é uma travessa sem nome oficial. No entanto, uma placa improvisada afixada no poste informa o mesmo CEP da esquina. E como o nome diz, o local é de fato um terreno particular que foi loteado ao longo do tempo.
"Os carteiros deixavam tudo pendurado em um portão na entrada da rua. Quando chovia perdíamos todas as correspondências"
Aline Motta de Oliveira, universitária, relatando como era antes da mercearia virar caixa postal
Quem também reclama da ausência da entrega é o mecânico eletricista Roberto Pettinato, 48. "Pela planta da Prefeitura, esse local são apenas 3 chácaras. Mas isso foi mais de duas décadas atrás. Hoje, há dezenas de casas aqui, mas não temos CEP", diz ele que mora no local há 23 anos.
A rua pacata também conta com a coletividade. Parte do trecho cimentado da via foi feito de maneira voluntária em um mutirão entre moradores. O recapeamento na maior área é apenas com fresa (resto de asfalto) e foi preciso protocolar mais de um abaixo-assinado na subprefeitura do distrito para que a ação fosse feita no final do ano passado. Por ser um lote particular também há impeditivos para que o recapeamento público chegue ao local.
Apesar da maioria das cartas dos moradores serem entregues no comércio localizado na esquina, Pettinato relata problemas. "Nem sempre o toldo que tem o número da mercearia está aberto, e se o carteiro não vê o número leva as cartas embora. Eu perdi minha habilitação para dirigir e nem vi as multas que fizeram ela ser cassada chegarem", lamenta.
Encomendas à deriva
Para quem mora em regiões consideradas como áreas de risco pelos Correios, para receber encomendas em casa é necessário planejamento. Isso porque o prazo de entrega nessas regiões pode ser dilatado e necessita da disposição de uma escolta armada para acompanhar as equipes de entrega.
Quem passa por essa situação é o engenheiro de software Thiago Barbosa, 33, morador do bairro Parque das Cerejeiras, pertencente ao distrito do Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo.
"Há poucos meses meu bairro foi classificado como região sujeita à entrega diferenciada. Ao me informar na central de distribuição dos Correios me explicaram que era necessário ter uma escolta para acompanhar a entrega. O tempo para receber a encomenda aumentou em pelo menos dois dias da data prevista", reclama o engenheiro de software.
Com posse do CEP, é possível consultar no site dos Correios se um endereço está na lista de áreas com restrição de entrega. Mas não é possível consultar uma relação completa dos locais em que isso acontece. De acordo com a companhia por motivos de segurança.
Foi pensando na dificuldade de visualização dos locais onde a entrega é restrita, que o urbanista e analista de dados Bernardo Loureiro,29, criou um mapa da capital de São Paulo, que conta com legendas que simplificam o entendimento desse processo e transformam uma extensa lista de CEPS em um mapa dinâmico.
"Cruzei com alguns dados da Prefeitura de São Paulo e utilizei dados abertos dos Correios sobre CEPs restritos e consegui colocar isso em um mapa. Faz toda diferença comunicar isso de um jeito prático que faça com que as pessoas entendam melhor o que significa", comenta Loureiro, que dá aulas e consultorias sobre o tema no laboratório de visualização urbana Medida SP.
O mapa abastecido e dinamizado por Bernardo possibilita visualizar de maneira clara os locais onde estão as concentrações de áreas com entrega diferenciada. Sendo a maior parte delas em distritos da periferia de São Paulo. Capão Redondo na zona sul e Guaianazes na zona leste são os que lideram a lista, com 89,8% e 74,3% respectivamente.
"Não foi surpreendente constatar que a maiorias desses lugares estão na periferia de São Paulo. Mas abrimos a discussão, será que isso é justo? O acesso aos Correios é algo básico que todas pessoas precisam ter"
Bernardo Loureiro, urbanista e analista de dados
Para Barbosa, o principal problema de estar em uma área com entrega diferenciada é a incerteza. "Antes as pessoas sabiam quando a encomenda chegaria e se programavam. Agora, não sabem nem dia nem horário e deixam de cumprir com alguns compromissos para aguardar essa entrega", lamenta ele.
O levantamento disponibilizado em mapa também ajuda a encontrar desigualdades na entrega de encomendas com diferença de poucos metros. É caso da rua Brasil Nativo no distrito de Cidade Tiradentes. A assistente administrativa Aline Diniz, 23, moradora da casa número oito, diz não receber encomendas em casa há cerca de 10 anos.
De acordo com o mapa publicado no Medida SP, a rua está em área com "entrega interna", em que os produtos precisam ser retirados na agência mais próxima. As áreas marcadas com a cor roxa, estão na 'área de entrega diferenciada', e podem levar até 7 dias a mais do prazo estabelecido no momento da entrega.
Porém, grande parte da extensão da rua Milagre dos Peixes, que dá acesso à Rua Brasil Nativo recebe encomendas na porta de casa de maneira normal, sem restrições nas entregas.
"Quando compro algo pela internet, preciso retirar nos Correios em Guaianazes, apesar de existir uma unidade aqui no bairro da Companhia. É cerca de 20 minutos de carro até o bairro vizinho. Mas como trabalho, não tenho tempo de ir e sempre há filas. Então preciso pedir para alguém ir no meu lugar, e redigir uma carta de punho dizendo que autorizo. Apenas parentes de primeiro grau podem retirar só com o RG", comenta Diniz.
Apesar de não receber o produto na porta de casa, Aline afirma ser sempre cobrada pelo frete da entrega. "A intenção de pagar pelo frete é ter o conforto de receber algo em sua residência. Agora, pago caro por um frete de um produto grande e preciso me virar para trazer a encomenda de Guaianases até a minha casa", completa irritada.
Um mapa de desigualdades
Questionados pela reportagem, os Correios explicam, por nota: "As áreas com restrição de entrega são estabelecidas tendo como referência o mapa de risco fornecido pelos órgãos de segurança pública e pelo número de ocorrências contra os Correios. Essa condição é temporária e aplicada somente para a entrega de encomendas, a fim de garantir a segurança dos trabalhadores, dos clientes e a integridade dos objetos postais".
E completam que dependendo do histórico de delitos contra a empresa e o nível de criminalidade na região, a entrega pode ser feita com prazo dilatado, com escolta armada, ou por entrega interna, que é quando o objeto deve ser retirado na unidade dos Correios. Em último caso, é deixado um aviso ao destinatário, com informações para retirada do objeto postal no horário e endereço especificado.
Para o urbanista Bernardo, pelo fato dos Correios estarem em regime público deveria haver mais responsabilidades. "Eu enxergo como a mesma coisa que comparar um aplicativo de transportes que não atende a um bairro por ser perigoso com a Prefeitura dizer que não haverá ônibus em determinado local por ser uma área de risco", reflete.
Enquanto a entrega domiciliar de todos os serviços dos Correios permanece desigual entre as diferentes regiões de São Paulo, o recebimento de cartas e encomendas precisa de um esforço de quem está na última ponta, o cliente.
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